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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641XOn-line version ISSN 2175-3601
Rev. bras. psicanál vol.43 no.3 São Paulo Sept. 2009
ARTIGOS
A “Via Sacra” do filicídio no processo analítico1
La “Vía Sacra” del filicide en el proceso analítico
The “Via Sacra” of the child’s murder on the psychoanalytical process
Giovana BorgesI,2; Ignácio A. Paim FilhoI,II,3
ICentro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre - Porto Alegre
IISociedade Brasileira Psicanálise de Porto Alegre - Porto Alegre
RESUMO
Os autores se propõem a repensar a vigência do pensamento freudiano a respeito da importância do inconsciente do analista e, por conseguinte, sua análise pessoal no processo analítico. Diante dessa premissa, focalizam as consequências tanáticas no exercício de sua função, quando não se dá por parte do analista a aquisição de uma “determinada condição psicológica em alto grau”. Tomam como escopo o acontecer simbólico do filicídio. Postulam que o destino de toda a transferência que seja perpetuada pelo repúdio ao feminino do analista determinará o assassinato da autonomia do analisando.
Assim sendo, ratificam o caráter interminável de toda a análise e a importância de que cada analista não viva, somente, como uma injúria narcísica o seu desejo e/ou a necessidade de voltar ao divã.
Palavras-chave: Transferência; Repúdio ao feminino; Filicídio; Narcisismo.
RESUMEN
Los autores se proponen a repiensar la validez del pensamiento freudiano a cerca de la importancia del inconsciente del analista y, por lo tanto, su análisis personal en el proceso analítico. Delante de esta premisa enfocan las consecuencias tanáticas en el ejercicio de su función, cuando no ocurre por parte del analista la adquisición de una “determinada condición psicologica en alto grado”. Toman como objectivo el suceder simbólico del filicide. Demandan que la destinación de toda la transferencia, de que es perpetuada por la renegación del femenino del analista, determinará el asesinato de la autonomía del paciente en análisis. De esta forma ratifican el carácter interminable de todo el análisis y la importancia de que cada analista no viva, solamente, como una injuria narcísica su deseo y/o la necesidad de volverse al diván.
Palabras clave: Transferencia; Renegación del femenino; Filicide; Narcisismo.
ABSTRACT
The authors propose to rethink the validity of Freud’s ideas about the importance of the analyst’s unconscious and, after all, his personal analysis on the psychoanalytical process. Facing this premise, they focus on the tanatic consequences of their work, when it doesn’t happen on the analyst the acquisition of a “certain psychological condition in a high degree”. They take as a target the symbolic happening of the child’s murder. Postulate that the destination of all transference, that is perpetuated by the rejection of the analyst’s feminine, will determinate the murder of the analysand autonomy. Therefore, they enforce the endless character of every analysis and the importance that every analyst doesn’t live with the narcissic injury of his desire and/or the need to go back to the couch.
Keywords: Transference; Rejection of the feminine; Child’s murder; Narcissism.
Por mais que o analista possa ficar tentado a transformar-se num professor, modelo e ideal para outras pessoas, e criar homens à sua imagem, não deve esquecer que essa não é a sua tarefa no relacionamento analítico, que na verdade, será desleal a essa tarefa se permitir-se ser levado por suas inclinações. Se o fizer, estará apenas repetindo um equívoco dos pais, que esmagaram a independência do filho através de sua influência, e estará simplesmente substituindo a primitiva dependência do paciente por uma nova. (Freud, 1940[1938]/1969, p. 202)
Filicídio e análise, dois temas, que vem sendo nosso objeto de estudo, há um longo tempo, o que nos levou a produzir alguns escritos. Iniciamos em 2002, com o trabalho “Psicanálise hoje: escuta do vazio x escuta vazia”, escrevemos depois, em 2004, “O traumático hoje: o mais além da construção freudiana”; e por último, em 2006, escrevemos a “Contratransferência figurativa: o alucinatório encena”. Não obstante, observamos que tínhamos feito várias especulações sobre o filicídio, oriundo das figuras paternas, que tem seu grande registro nas origens do sujeito psíquico, na constituição do narcisismo primário, no Euideal. Aonde encontramos o predomínio das identificações primárias, imantada pela força do estrangeiro, ou seja, pelo desejo alienante. Porém, calamos, ou no máximo murmuramos sobre a presença dessa força tanática desde o vértice do analista. Parece-nos que nos implicar nesse processo reproduz de uma forma muito singular a expressão cunhada por Freud (1919/1969), uma “inquietante estranheza”, que desse modo nos convoca a refletir sobre a presença do analista mais além da verdade histórica, que é encenada na transferência/ contratransferência. Isto é, ocuparmo-nos com a verdade material e histórica que é emitida pelo inconsciente do analista. Portanto, temos como escopo, no presente trabalho, fazermos algumas incursões sobre esse sujeito chamado analista, sobre a força da sua pulsão de morte, e sobre o destino dela no processo de autonomia do seu analisando.
Diante dessa proposta, que consiste em pensar na “via sacra” do filicídio no processo analítico, fomos sendo invadidos por vários interrogantes: Filicídio, história mítica ou enigma na e da função analítica? Desejo do analista, princípio, ou fim de uma análise? Filicídio do analisando, narcisismo do analista?
A capacidade de produzir indagações é um diferencial fundamental para o exercício de uma boa função analítica, bem como um bom norteador no processo de criação de um texto. Contudo, entendemos que o questionado acima traz em seu nascedouro a marca da impossibilidade de se ter uma resposta peremptória. Entretanto, faremos algumas construções hipotéticas, que talvez possam lançar um pouco de luz sobre o des/conhecido poder da destrutividade do analista no processo analítico.
Como sabemos, o grande paradigma do processo analítico, desde a perspectiva de Freud, está centrado em um enquadre que tem por meta facilitar o processo regressivo, fazendo com que o inconsciente possa narrar suas histórias através da transferência e da associação livre. Freud (1912/1969) é enfático ao escrever sobre a força do inconsciente, e mais, sobre a importância do inconsciente do analista no processo da cura “[…] o inconsciente do médico (analista) é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações livres do paciente (analisando)” (p. 154). Com essa concepção, no parágrafo seguinte, agrega uma informação valiosa: “Mas se o médico (analista) quiser estar na posição de utilizar seu inconsciente desse modo, como instrumento da análise, deve ele próprio preencher determinada condição psicológica em alto grau” (p. 154).
Façamos algumas cogitações sobre essa advertência feita por Freud. Escutemos, novamente, fragmentos de sua fala “… se… quiser… utilizar seu inconsciente… como instrumento da análise… deve… preencher determinada condição psicológica em alto grau”. “Preencher determinada condição psicológica em alto grau”, proposta extremamente ousada, exigente e talvez impossível de ser cumprida, mas com certeza um grande desafio, que é retomado por ele em 1937, no capítulo VII de “Análise terminável e interminável”: “Entre os fatores que influenciam as perspectivas do tratamento analítico e se somam às suas dificuldades da mesma maneira que as resistências, deve-se levar em conta não apenas a natureza do ego do paciente, mas também a individualidade do analista” (p. 281). Freud, ao proferir essas palavras em 1937, ratifica as de 1912, quanto à importância da psique do analista, porém retifica e afasta-se definitivamente da metáfora do analista como espelho; com essa postura está determinando, inequivocamente, a responsabilidade deste no processo analítico. Não somos tão inócuos como gostaríamos de ser, nossa condição psicológica, nossa individualidade, nosso inconsciente, pode e é agente para a vida, como também para a morte. Esse é justamente nosso “calcanhar de Aquiles”. Sendo assim, nada melhor que olhar, escutarmos, pensarmos e re/conhecermos nossa vulnerabilidade, e, quem sabe, com isso termos mais recursos, diferente de Aquiles, para não sucumbirmos diante do dardo certeiro da pulsão de morte cultivado no leito de Narciso. Para tanto, se faz necessário equacionar o que seria essa “determinada condição”.
Com esse intuito tomaremos, como centelha luminosa, a questão enigmática do “repúdio da feminilidade” que foi enunciada por Freud (1937/1969, p. 286) e que consiste no caráter ocasionador do interminável de toda a análise. Postulamos que o feminino repudiado, que remete a uma das vicissitudes do complexo de castração, é o elemento central na ação filicida do analista. Assim sendo, é sobre a estreita base da inscrição simbólica da castração que esse forasteiro chamado feminino pode galgar um lugar de menor repúdio e maior assimilação, que teremos a essência dessa “determinada condição”.
Deste modo, temos agora os elementos capitais da nossa equação: repúdio ao feminino4 (incógnita), narcisismo e castração. Com isso posto, podemos inferir que nossa incógnita será a resultante da interação da plenitude de Narciso versus as renúncias de Édipo. Renunciar nos parece a palavra-chave desse grande labirinto que é o relacionamento analítico.Recordemos algumas recomendações ou, sendo mais explícito, as advertências feitas por Freud (1938/1969, epígrafe), às quais nenhum analista deveria esquecer: “ficar tentado a transformar-se” em…, não “permitir-se ser levado por suas inclinações”, “repetindo um equívoco dos pais” e por último “substituindo a primitiva dependência do paciente por uma nova”. Diante desse panorama, qual seria a grande renúncia? Parece-nos que somos remetidos ao poder da transferência, quando somos colocados, por excelência, no lugar do Eu-ideal. Nesses momentos, que não são da esfera do como se…, somos colocados de fato na vida fantasmática dos nossos analisandos como a presentificação do narcisismo primário.
A tragédia transferencial, apresentada no palco analítico como filicídio, começa a ser encenada quando o analista aceita esse convite narcísico, e passa a viver o seu desejo de completude fazendo do seu analisando apenas um veículo pelo qual é perpetuada sua demanda de perenidade. Acreditando estar investido do poder dos deuses: “criando homens à sua imagem”. Predomínio de um feminino repudiado, universo em que a castração não se fez história, marcado pela incapacidade de gestar, conter, albergar, discriminar e metamorfosear características intrínsecas ao trabalho do feminino, vinculado a uma boa resolução da sua “disposição feminina originaria” (Paim & Quadros, 2008, p. 102), condição sine qua nom para a construção da identidade do analista.
Essas advertências, tendo como foco a transferência e sua rara capacidade de despertar os “pontos cegos” (Freud, 1912/1969, p. 155), como também, o que jaz no “leito de rocha” do mundo psíquico do analista, são ressignificadas por nós, quando nos encontramos com uma carta de Freud a Pfister (5.6.1910), dizendo:
[…] a transferência, aliás, é uma cruz. O teimoso aspecto indomável da doença, devido à qual abandonamos a sugestão […] não se deixa eliminar totalmente pela psicanálise, mas apenas limitar, e seu remanescente vem à luz na transferência”. ( p. 54)
Estranha analogia, principalmente oriunda de Freud, o judeu sem deus, da transferência com a cruz. Cruz, que na mitologia do cristianismo remete ao destino traçado por Deus-pai para o judeu Jesus, marca inaugural do filicídio na cultura cristã. Transferência marca inaugural da técnica criada por Freud, que tem na sua constituição a faceta da cruz, devida ao pedido de amor eterno, pelo qual se paga qualquer preço, inclusive como Jesus, com uma imortalidade sem vida. Portanto, marca emblemática do filicídio do processo analítico, à medida que o seu trabalho transformador não for instrumentalizado pelo analista.
Cruz que Jesus carregou durante sua “via sacra”, que o fez em nome do amor do pai - “paixão de Cristo”: “O comovente amor parental, no fundo tão infantil, não é outra coisa senão o narcisismo renascido dos pais […]” (Freud, 1914/2001, p. 110). Cruz e amor que nos é delegada na transferência por esses filhos simbólicos, que esperam (quando movidos por seus aspectos pró-vida) que, diferentemente de Deus-pai, possamos nos ocupar desse deslocamento, como algo que nos pertence, não os deixando abandonados de uma adequada função analítico-paterna. Provavelmente nossa missão analítica consiste em fazer da cruz da transferência uma cruzada que possibilite que essa “via sacra” vicejante do filicídio, enquanto assassinato da alteridade do analisando, possa vir a ser uma via libertadora e criativa. Envolvendo analista e analisando, na busca do desnudamento da verdade do desejo que a transferência revela e encobre. Não esquecendo que essa luta deve ser em nome do encontro com o sujeito do inconsciente, que só se dará à medida que for possível romper e transformar, principalmente, as identificações primárias (narcísicas, alienantes). Para que se dê essa mudança psíquica é imprescindível um analista que tenha, por excelência, galgado aquela “determinada condição” de ter metabolizado e internalizado o seu complexo de castração, que o habilita a transitar pelo universo narcísico e ganhar maior intimidade com a força do feminino, onde o repúdio seja de ordem sublimatória e não filicida. Portanto, se tudo correr bem, nesse processo que está assentado sobre o paradoxo do terminável e do interminável, talvez, nossos analisandos não tenham que se manter identificados com Cristo, destinados a uma morte em vida - “esmagaram a independência do filho” - e seguir ecoando a derradeira e célebre frase bíblica: “meu pai, meu pai porque me abandonaste”.
Freud (1937/1969), sabedor dos limites e complexidades do processo analítico, também, desde o vértice do analista e de todas as proibições ao conhecimento de suas conquistas, lembra-nos que toda a análise é interminável, independente do analisando ser analista por profissão e que por isso: “Todo o analista deveria periodicamente - com intervalos de aproximadamente cinco anos - submeter-se mais uma vez à análise, sem sentir-se envergonhado por tomar essa medida” (p. 284). Eis aí uma nova e velha recomendação “submeterse mais uma vez à análise”. Esse assinalamento ganha maior magnitude na razão direta da nossa maior compreensão das questões narcísicas na constituição do sujeito psíquico, ou ainda, quando da sua materialização no filicídio e, por conseguinte, sua ação-reação na psique do analista. Portanto, poder buscar novamente o divã caracteriza uma situação paradoxal, de um lado implica em uma injúria narcísica (um término temporal) e de outro o reconhecimento dessa máxima freudiana: toda análise é interminável. De posse desse saber temos subsídios de extrema consistência para ratificarmos essa observação freudiana da importância da reanálise na história analítica da cada analista. Especialmente quando temos, acima de tudo, o compromisso ético de “não sermos desleais a essa tarefa”.
Por fim, mesmo no final da vida, o descobridor do inconsciente, do território proibido, segue sendo um pioneiro, um conquistador. “O conquistador do proibido” (Mezan, 2000), que mais uma vez instiga-nos a manter um espírito aventureiro, nessa eterna busca por conquistar a nós mesmos. Encoraja-nos a embarcar numa “via” de infinitas mãos que é o processo analítico, transformar essa cruz em cruzada, batalha pela busca da essência de cada analisando, sua alteridade. Ressaltado de forma incansável por toda a sua obra, que a arma principal do analista, nessa batalha com as profundezas do “acheronta” (Freud, 1900/1969, p. 17), é o seu próprio inconsciente.
Referências
Borges, G. & Paim Filho, I. A. Escuta vazia x Escuta do vazio. Apresentado no Simpósio do CEP de PA (Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre). Porto Alegre, 2002. [ Links ]
_____ O traumático hoje: o mais além da construção freudiana. In: Revista do CEP de PA, vol. 11. Porto Alegre, 2004. [ Links ]
_____ Contratransferência figurativa: o alucinatório encena. Apresentado, como Tema Livre, no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise. Porto Alegre, 2007. [ Links ]
Freud, S. (1969). A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J, Salomão, org., vol. 4). Rio de Janeiro: Imago. (trabalho original publicado em 1900). [ Links ]
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_____ (1969). O estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, org., vol 17). Rio de Janeiro: Imago. (trabalho original publicado em 1919) [ Links ]
_____ (1969). Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, org., vol. 23). Rio de Janeiro: Imago. (trabalho original publicado em 1937) [ Links ]
_____ (1969). Esboço de psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, org., vol. 23). Rio de Janeiro: Imago. (trabalho original publicado em 1940 [1938]) [ Links ]
Paim Filho, I. A. & Quadros, V. A guerra e o repúdio ao feminino: Tróia como paradigma. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 42, n. 4, p. 99-109. São Paulo, 2008. [ Links ]
Mezan, R. Sigmund Freud a conquista do proibido. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. [ Links ]
Endereço para correspondência
Giovana Borges
[Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre CEPdePA]
Rua Felipe Néri, 457/505
90440-150 Porto Alegre, RS
Ignácio A. Paim Filho
[Sociedade Brasileira Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA
Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre CEPdePA]
Rua Felipe Néri, 457/401
90440-150 Porto Alegre, RS
E-mail: paimiga@terra.com.br
Recebido em 26.6.2009
Aceito em 6.10.2009
1 Trabalho revisto e ampliado a partir do apresentado no Congresso da FEPAL/2008.
2 Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre CEPdePA.
3 Membro associado da Sociedade Brasileira Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA. Membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre CEPdePA.
4 Usaremos a expressão “repúdio ao feminino” e não como propõe Freud da “feminilidade”. Optamos pelo termo feminino por entendermos mais apropriado para designar o caráter inerente da sua presença em homens e mulheres, ancorada na bissexualidade. Para uma leitura mais ampla sobre esta designação e seus desdobramentos remetemos ao trabalho “A Guerra e o repúdio ao feminino: Tróia como paradigma” (Paim & Quadros, 2008).