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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.45 no.2 São Paulo abr./jun. 2011

 

RESENHAS

 

Transtornos da identidade de gênero na infância – escritos selecionados

 

 

Caroline Milman

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA

Correspondência

 

 

Autor: Roberto B. Graña
Editora: Casa do Psicólogo, 2009, 282p
Resenhado por: Caroline Milman

Quem teve o privilégio de acompanhar o desenvolvimento deste psicanalista/autor/estudioso, sabe que o tema dos transtornos da identidade de gênero o acompanham desde muito, tendo tornado Graña praticamente uma referência nessa temática. São vários anos de investigação teórico-clínica, os quais produziram uma série de artigos e trabalhos já publicados em revistas científicas e em outros livros do mesmo autor. Dez destes escritos foram selecionados para compor esta obra. A leitura atenta do livro logo informará o leitor de que não se trata de uma simples republicação - o que certamente não estimularia o autor, atraído como é pela contribuição consistente ao debate psicanalítico. A presente obra ensina muito mais do que identificar e compreender, com o que se tem até hoje de conhecimento, o espectro dos transtornos da identidade de gênero na infância. Ensina a buscar incessantemente a análise crítica e autocrítica e o exercício fundamental ao psicanalista da constante reavaliação. O autor compartilha com seus interlocutores o esforço e a coragem para revisar seu pensamento no sentido cronológico, agregando as descobertas no terreno clínico e teórico, chegando ao objeto maior de sua atenção: os aspectos éticos envolvidos na prática psicanalítica.

No capítulo 1 "Condições de gênese, organização e formas clínicas dos distúrbios identificatórios na infância", são oferecidos parâmetros básicos fundamentais, ainda vigentes, para situar esta condição que, como já revela o título do capítulo, é essencialmente constituída por falhas nos processos identificatórios, contingência esta formada tanto pela contribuição da própria fantasmática da criança quanto pela ação efetiva dos pais ou cuidadores em sua vida. As possíveis formas clínicas dos distúrbios identificatórios são listadas no sentido do maior para o menor radicalismo na inversão da identidade sexual do indivíduo. Assim, transexualismo, travestismo, fetichismo, exibicionismo/sadomasoquismo e feminilização/conduta homossexual são examinados um a um por uma detalhada revisão de literatura psicanalítica. Tal revisão, aliás, tornando-se o estilo de todo o livro, sempre partirá de uma dimensão histórico-evolutiva. Assim, autores pioneiros com destaque para Robert Stoller estarão sempre profundamente implicados no texto.

O capítulo 2 trata de examinar o imprinting como uma das possíveis explicações para os desvios sexuais. Este fenômeno foi descrito, através de pesquisas com animais, por Lorenz em 1935 e seguiu sendo fonte de estudo entre os etologistas. Constitui-se na observação de que um determinado vínculo estabelecido nas primeiras horas após o nascimento pode tornar-se um padrão fixo para toda a vida do animal. A psicologia e a psiquiatria valeram-se destas ideias para tentar explicar a fixidez e imutabilidade de determinadas psicopatologias precoces, como o autismo. Nos transtornos de identidade de gênero o imprinting explicaria o fato de a pessoa desenvolver o sexo atribuído a ela num primeiro momento, independentemente do biológico. O autor, refletindo criticamente, argumenta a favor da ideia de um processo na base da construção destas atipias e, sempre se remetendo à literatura psicanalítica, discorre sobre a sucessão de etapas até a elaboração definitiva da identidade sexual. Uma concepção histórica, dinâmica e epigenética de desenvolvimento, como conclui, torna-se incompatível com a ideia de uma "estampa" carimbada no psiquismo humano. Além disso, a psicanálise fornece suficientes referenciais para a compreensão das identificações primárias. Sem desconsiderar as contribuições da etologia ou de qualquer outro campo, o autor questiona sobre a necessidade de tomar emprestadas concepções de outras áreas de estudo, quando a psicanálise, através de seu arcabouço, fornece suas próprias explicações.

O capítulo 3 apresenta um consistente exame metapsicológico acerca dos distúrbios identificatórios em meninos. Na sequência, e justificados teoricamente, são recomendados parâmetros clínicos para o atendimento destas crianças. Apoiado em Freud, Winnicott, Lacan, e outros autores, contemporâneos, Graña percorre ideias sobre o desenvolvimento emocional primitivo e toda temática da representação psíquica da inscrição paterna, com suas falhas. Sugere-se que o tratamento analítico, mais além de sua matriz transferencial, deva lidar com a pessoa real do analista, de preferência do mesmo sexo que o menino. O analista homem, real, estará oferecendo ao seu paciente a possibilidade de experenciar uma verdadeira reconstrução ou recriação de um vínculo originalmente falho. Como nos diz o autor: "Assistiremos, então, a uma ação efetiva e permanente do real sobre o transferencial"(p. 103).

Sílvio, de quatro anos e meio é apresentado no capítulo 4. Esse menino travestista e fetichista foi considerado fronteiriço e levou seu analista a refletir sobre a extensa desorganização na personalidade das crianças com graves distúrbios de gênero. O capítulo então descreve o atendimento clínico deste paciente ao longo do primeiro semestre de psicoterapia. As defesas maníacas, o lugar atribuído ao analista e principalmente o nível de angústia apresentado (de aniquilação) sugerem uma fragilidade compatível com os quadros fronteiriços. No entanto o autor toma o cuidado de não fixar este nível de funcionamento na infância como preditivo de sua posterior estrutura psíquica. "... apenas a passagem do tempo e a sedimentação do caráter, com ou sem psicoterapia, espetaculizarão a configuração adulta daquilo que, na infância, expressou-se sob a forma de uma perturbação da identidade ou da conduta sexual" (p. 130).

O capítulo 5, "Relato do tratamento psicanalítico de uma menina precocemente masculinizada", traz o caso de Lúcia, que chega a tratamento com cinco anos de idade. Bastante desafiador, este atendimento novamente leva o autor a refletir sobre a precocidade destes distúrbios, a organização defensiva rígida, a deformação no caráter e as grandes dificuldades de abordagem e manejo, embora mais uma vez lembre de que "na infância... tudo é tendente" (p. 137). Após três anos de trabalho houve considerável evolução, tendo a menina reestabelecido sua identidade feminina. Na parte final do capítulo é feita uma revisão teórica sobre a homossexualidade feminina, com o assinalamento de que os transtornos de gênero em meninas oferecem melhores perspectivas prognósticas do que em meninos. Contribui para isto, na observação do autor, uma maior plasticidade da organização psíquica.

O capítulo 6, intitulado "A proposição transferencial do desvio sexual: posições sobre o problema da perversão na infância" traz, pela primeira vez no livro o início do debate sobre o termo "perversão" e suas implicações. Sem, naturalmente, firmar posição definitiva, o autor examina a complexidade do assunto já assumindo desde o início que a infância do perverso adulto não necessariamente incluiria desvios na identidade de gênero, assim como tais desvios na infância, mesmo que proeminentes, não caracterizarão necessariamente um adulto perverso. Parece que o maior ou menor contorno de perversão adquirido pelas perturbações identitárias teriam mais a ver com um determinado tipo de matriz familiar, principalmente no que tange ao grau de desqualificação sádica do lugar do pai no discurso da mãe. Através de duas vinhetas clínicas, o autor aponta as dificuldades do lugar transferencial em que o analista destas crianças está colocado. Um forte trabalho interno se fará necessário para tolerar a demanda imposta pelo paciente de que o analista assuma o papel de um "objeto pervertizante", repetindo assim o modelo de seus objetos originais. O analista tenderá a repudiar este lugar e facilmente poderá transparecer seu "desejo heteros-sexualizante". Sempre que o paciente detectar o analista como um agente moralizador ou acusador, o tratamento tenderá a entrar numa zona de impossibilidade.

O capítulo 7, essencialmente clínico, revela uma modalidade de contato e aproximação com o paciente utilizando como recurso o método do squiggle, ou, como foi traduzido, "jogo do rabisco". Este método foi utilizado por Winnicott em suas consultas hospitalares e consistia em construir um desenho em conjunto com o paciente, cada um fazendo um risco, até sua forma final. Winnicott entendia que esta era uma possibilidade de entrar em contato com crianças mais retraídas, de difícil acesso, além de poder diagnosticar de forma rápida, já que estes encontros eram breves. No entanto, quem se ocupa de tratar crianças sabe que o squiggle é muitas vezes um recurso técnico interessante, mesmo para casos em tratamento continuado. Foi o caso de Aldo, descrito neste capítulo e retratado pelos vários squiggles que ele e seu analista produziram.

O capítulo 8 "Algumas questões sobre a violência a partir de um caso de travestismo infantil acompanhado longitudinalmente" encaminha o leitor, primeiramente, a revisitar a carta 69 de Freud a Fliess, onde ele afirma que não acredita mais em sua "neurótica", isto querendo dizer que a violência referida pela histérica, poderia ser uma violência fantasiada e não vivenciada realmente. O autor reporta-se a Ferenczi, que persistiu na afirmação de que os relatos de seus pacientes acerca de abusos sexuais sofridos na infância deveriam ser considerados como tendo ocorrido de fato. Por esta linha o autor salienta a realidade destes abusos e os prejuízos psíquicos e corporais acarretados sobre o desenvolvimento psicossexual de crianças e adolescentes. Isto colocado, o capítulo ingressa no tema que será, afinal, o ponto nodal de todo o livro. Apesar de dividido em capítulos, cada um representando um artigo, o leitor, ao ir finalizando a leitura, tem a nítida sensação de que tudo o que veio antes se justifica pela reflexão proposta pelos capítulos finais: a questão ética. Graña relembra as palavras de Kernberg no XX Congresso Latino-Americano de Psicanálise (cujo tema foi Feminilidade e Masculinidade), alertando sobre a forma não neutra de muitos analistas ao abordar a questão da homossexualidade. Integrando as questões sobre a violência e seus impactos no psiquismo, com os desafios pessoais que o analista destes pacientes enfrenta, o autor finalmente nos apresenta o caso de Ivan, um menino com conduta travestista tratado por ele na infância. Após cerca de dez anos do ultimo encontro com o paciente, o analista lhe procura para uma entrevista de follow up. Nesta reveladora e, como diz o autor, inquietante entrevista (Ivan com 19 anos), o rapaz em algum momento, referindo-se à relação com o analista, diz que ia para as sessões sempre com a sensação de que deveria deixar de ser o que era e tornar-se um menino masculino. Achava que era isto o que seus pais e seu analista desejavam e por conta disso omitia alguns pensamentos durante o tratamento. Esta situação leva o autor a pensar na arriscada possibilidade de que o analista acabe por reproduzir a violência inicialmente sofrida pelo paciente, através da imposição (mesmo que silenciosa) de suas próprias escolhas.

O penúltimo capítulo do livro promove uma discussão acerca dos critérios diagnósticos formais dos transtornos de identidade de gênero na infância. Compara o que diz os principais manuais de diagnóstico, dsm IV e cid 10, observando a seguir as limitações destas abordagens. O autor assinala a relevância do pensamento psicanalítico para o aprofundamento da compreensão dos transtornos de gênero e inicia mais este detalhado exame crítico da teoria tendo por base inicial os autores Greenson e Stoller. A seguir propõe um sistema de classificação diagnóstica de acordo com o aspecto mais distorcido (sexualidade, agressão, corpo ou pensamento). Das contribuições teóricas recentes Graña destaca as de Richard Green. "Green, que não é um psicanalista, mas um psiquiatra infantil psicanaliticamente instruído, mostra-se cético com relação às pretensões reversionistas das psicoterapias de qualquer orientação" (p. 253). Em suas pesquisas constatou que 75% dos meninos com distúrbios de gênero se tornarão homossexuais ou bissexuais mesmo após passar por tratamento. A maior parte dos meninos não se modifica essencialmente, mas podem ajustar-se facilmente ao desejo do psicanalista, desenvolvendo uma aparência de masculinidade. Graña, focado que está em questionar os aspectos éticos destes tratamentos, indaga-se:

A serviço de quem ou de que nos colocamos quando pretendemos promover terapeuticamente tais modificações? Da sociedade? Dos pais? De insuspeitados ou mesmo conhecidos modelos compatíveis com a nossa escolha individual ... ou podemos quem sabe adotar uma outra atitude e preocupar-nos primeiramente e antes de tudo em analisar as formações do inconsciente ... para que a criança possa assentar em bases mais sólidas e verdadeiras sua própria existência ... (p. 254.)

Integrando as ideias ao longo do livro, o autor opta por encerrá-lo com o relato de um filme belga, La vie en rose, que traz como personagem um menino com transtorno de gênero. Ao longo do filme o menino passa por um tratamento psicoterápico, mas este acaba por ser interrompido. Graña analisa os possíveis entraves que se criaram neste atendimento e que acarretaram o seu insucesso. Como uma espécie de costura o filme é trazido e explorado em vários aspectos, cada um deles já enfocado em algum capítulo anterior.

Roberto Graña deixa ao leitor a responsabilidade de procurar em si mesmo as reais motivações e inclinações quando do atendimento deste tipo de organização. Convoca o leitor a questionar sua tendência normalizadora e moralizadora, adquirindo estes princípios, a real e fundamental importância. Outros aspectos, como a acuidade diagnóstica e a descoberta do melhor manejo técnico, parecem adquirir, frente ao anteriormente colocado, valor secundário, uma vez que são variáveis, imprevisíveis e no mais das vezes obscuros.

 

 

Correspondência:
Caroline Milman
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA]
Av. Carlos Gomes, 1610/202
90480-002 Porto Alegre, RS
Fone: 51 3029-3961
carolinemilman@terra.com.br

Recebido em 28/1/2011
Aceito em 1/5/2011