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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.46 no.2 São Paulo abr./jun. 2012
ARTIGOS
Complexo de Édipo e pensamento complexo
Oedipus complex and complex thought
Complejo de Edipo y pensamiento complejo
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Membro efetivo e Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP e Membro do GEP Campinas
RESUMO
Neste texto, a autora argumenta que a elaboração da situação edípica, cuja característica é promover fantasias e experiências decorrentes da percepção de um par criativo, constitui o núcleo de um princípio organizador de pensamentos e ações complexas.
Palavras-chave: complexo de Édipo, ataque aos vínculos, pensamento complexo.
ABSTRACT
In the work at hand, the author argues that the elaboration of the oedipal situation - in its singularity of promoting fantasies and experiences arisen from the perception of a creative couple - constitutes the heart of an organizing principle of complex thoughts and action.
Keywords: Oedipus complex, attacks on linking, complex thought.
RESUMEN
En el presente texto la autora argumenta que la elaboración de la situación edípica, en su característica de promover fantasías y experiencias que emergen de la percepción de una pareja creativa, constituye el núcleo de un principio organizador de pensamientos y acciones complejas.
Palabras clave: complejo de Edipo, ataque al vínculo, pensamiento complejo.
Se pegarem um copo de vinho do porto, podem ter a certeza de que nesse vinho do porto há partículas que se formaram nos primeiros segundos do Universo, ou seja, há cerca de quinze milhões de anos; há também o hidrogênio, um dos primeiros elementos a ser formado no Universo, e produto do átomo de carbono, formado quando da existência do sol anterior ao nosso. No copo do vinho do porto, há a conjugação de macromoléculas que se juntaram na terra para dar origem à vida e há ainda a evolução do mundo vegetal, do mundo animal, até o homem, e a evolução técnica que permitiu ao ser humano extrair o sumo da uva e transformá-lo... num copo de vinho do porto temos toda a história do Cosmos e, simultaneamente, a originalidade de uma bebida encontrada apenas na região do Douros. Somos filhos da natureza viva da terra e estrangeiros a nós próprios (Morin, 2005, p. 96).
Desde que Bion (1957) abordou o mito de Édipo sob um prisma que torna o crime sexual um elemento periférico de uma história, uma vez que o crime central é a arrogância de Édipo ao jurar que desvendaria a verdade a qualquer custo, houve um avanço no entendimento sobre o modo mediante o qual a situação edipiana, concebida internamente, afeta o funcionamento psíquico. A ênfase passa a recair não exclusivamente sobre o efeito que tem esse conjunto de conflitos centrais da psique humana na qualidade das relações de objeto e na natureza da ansiedade e defesas, mas em como a situação edipiana afeta a percepção e o pensamento. A fantasia do indivíduo em relação à natureza da ligação parental determinará o modo como ele próprio experiencia os pensamentos que se agrupam na mente (Feldman, 1989).
Proponho neste texto que a elaboração do complexo de Édipo - a composição do agrupamento central de impulsos conflitantes, devaneios e ansiedades decorrentes da experiência ou fantasia de uma ligação criativa - forme o núcleo de um princípio organizador de pensamentos e ações complexas.
Complexidade é uma palavra originada do latim - complexus, aquilo que é tecido conjuntamente. O Dicionário Webster define complexidade como “qualquer coisa complexa e intrincada” e define complexo como “um grupo de atividades, ideias ou coisas relacionadas que formam ou são vistas como formadoras de um todo”.
Segundo Edgar Morin (1977), o princípio da complexidade objetiva esclarecer o caminho do conhecimento e seus modelos, ao propor o pensamento complexo como maneira de ultrapassar o reducionismo e o determinismo. É um pensamento que convida à superação da lógica indutiva - dedutiva - identitária, mediante a junção dela com o sistema dialógico, ou seja, mediante um processo de união das noções antagônicas: associação de proposições reconhecidas como verdadeiras, desde que isoladas, mas que, se em contato, negam-se mutuamente.
O pensamento complexo caracteriza-se pela capacidade de raciocínio conjunto e pela união dos saberes disjuntos em um processo de não mutilação dos conjuntos, tampouco das partes (Morin, 1977). Isso implica uma concepção cíclica de pensamento, que gera um conhecimento que repensa continuamente a própria estrutura do pensamento e que retorna à sua fonte em forma de circuito interrogativo e crítico.
O pensamento complexo promove a aprendizagem, a reaprendizagem e a desaprendizagem, no entanto, a característica essencial dele é marcada pela capacidade de manter a reorganização de um sistema mental capaz de reaprender e aprender ciclicamente.
Nessas circunstâncias, o termo enciclopédia não é entendido apenas no sentido acumulativo mas também no originário - agkuklios paidea, aprendizagem que transforma o saber em ciclos. Trata-se de en-ciclo-pediar, de aprender a articular pontos de vista em ciclos ativos separados do saber (Morin, 1977).
Particularmente, pretendo argumentar que a elaboração da situação edipiana - cuja característica é promover experiências e fantasias decorrentes da percepção e do reconhecimento de um par criativo - forme o núcleo de um princípio organizador de pensamentos e ações cuja função é operar separações, articulações, interligações e interdependências.
Bion (1959) refere-se à disposição do paciente de atacar a ligação entre dois objetos - o protótipo, do qual é a ligação entre boca e mamilo e, posteriormente, entre o par sexual. A experiência ou a fantasia de ligação criativa, devido ao ódio, inveja e ciúme, por se identificar com a parte excluída, é atacada e transformada em uma sexualidade destrutiva e estéril. Nesse caso, não é possível recorrer à mente para criar elos entre os elementos da mente e tolerar as ansiedades resultantes dessas ligações.
Meltzer (1973) amplia essas noções fazendo uma conexão entre criatividade e o relacionamento que o indivíduo tem com o casal interno de pais a copular. Descreve esse processo como sendo uma presença semelhante à divindade dentro de cada pessoa, da qual deriva um senso de criatividade que pode inspirar o indivíduo a seus próprios esforços construtivos e criativos. Para Meltzer, o objeto interno derivado da percepção dos pais em coito, reconstituídos em objetos totais, com versões mais realísticas do que aquelas propiciadas pela figura parental combinada, constitui a base - senão sentida como fonte - da criatividade pessoal: sexual, intelectual e estética.
De forma interessante, Britton (1989) também formulou o triângulo edipiano na posição depressiva. O fechamento desse triângulo mediante o reconhecimento da ligação que une os pais interpõe uma fronteira, que delimita o mundo interno e cria o que ele denominou “espaço triangular”, um espaço delimitado pelas três pessoas da situação edipiana e de todas as relações potenciais.
Se a ligação entre os pais percebida no amor e no ódio puder ser tolerada na mente da criança, ela lhe proporciona um protótipo de uma relação de objeto de um terceiro tipo, no qual ela é testemunha e também participante. Uma terceira posição passa então a existir, a partir da qual as relações de objeto podem ser observadas. Assim, podemos também visualizar o ser observado. Isto nos proporciona uma capacidade de nos vermos em interação com outros e de levar em consideração um outro ponto de vista ao mesmo tempo que conservamos o nosso próprio, para refletirmos sobre nós mesmos enquanto somos nós mesmos (Britton, 1989, p.73).
Com base nessas formulações, considero que as experiências e fantasias provenientes da vivência com o objeto pais acasalados e acasalando fornecem a matriz para a condição de conjugar dois ou mais elementos do psiquismo, de modo que cada um preserve suas respectivas qualidades intrínsecas e possa, ainda, gerar vida a um novo elemento. Esse processo constitui a base e a fonte do desenvolvimento de um pensamento complexo.
Fundamento minhas argumentações em fragmentos extraídos da clínica. Vou me referir primeiramente a duas sessões, em particular, da análise de uma paciente em tratamento há alguns anos. Houve um momento em que compreendi que havia um modo de funcionamento que resultava numa quase total incapacidade de pensarmos juntas para que conseguíssemos articular nossas ideias, nossas ideias e a experiência emocional em curso, nossas ideias e seus significados.
A paciente deita-se no divã e minutos depois diz: “na sessão passada ficou comprovado o que sempre pensei sobre a psicanálise... um tratamento longo e dispendioso para nos fazer chegar ao óbvio. o que sabíamos desde o início”. E continuou: “quando a gente chega nesse ponto é hora de parar a análise, daí prá frente é hora de se conformar que a vida é assim mesmo”.
Fiquei incomodada. Perguntei-lhe sobre o que havíamos conversado que a tenha feito chegar a essa conclusão. “Lembra-se”, ela disse, “você falava a respeito da vida, do amor, do casamento. pois é, é aquilo mesmo que eu já sabia e que eu sempre soube, casamento é assim mesmo. Depois de um tempo acaba a paixão, o tesão e é assim. quem se conforma se sai melhor”.
Essa paciente estava casada há mais ou menos três anos, aos trinta e poucos anos foi viajar com um colega e acabaram transando. Começaram um namoro, em seguida ela engravidou e ele foi morar na casa dela. Quando o filho estava com um ano, eles se casaram. Um casamento seco, pouco comemorado; minha paciente sentia-se muito desconfortável com o fato de ter engravidado antes de se casar.
Quando me procurou ainda estava solteira. Buscou análise porque há anos estava com depressão e vinha sendo medicada. Tive oportunidade de acompanhar, no início da análise, o estado de turbulência emocional em que ela mergulhou quando ficou interessada por um homem que havia conhecido durante um curso de especialização. O desejo sexual que sentia por esse homem provocou nela um estado mental de intensa desorganização. Nunca conseguiu, apesar de ter tido oportunidades, viver concretamente esse erotismo.
O estado emocional da minha paciente oscilava entre a apatia e o caos. Ora apresentava-se num estado de quase total entorpecimento, ora mergulhava num estado de desorganização que a impedia de se concentrar, de trabalhar, de cuidar da casa. Dizia que, nos finais de semana, passava muito tempo desorientada sem conseguir fazer nada do que havia planejado. Esses estados fundamentavam uma limitação da originalidade e da criatividade, um sentimento difuso de irrealidade e de não realização de seus projetos.
Antes de engravidar, seu relato era centralizado na insatisfação com o trabalho e no que ela dizia ser uma incapacidade para obter alguns títulos acadêmicos que a levassem a progredir profissionalmente. Depois que teve o filho, passando por algumas ameaças de aborto que a levaram ao repouso absoluto, sua queixa passou a versar, fundamentalmente, sobre a falta de desejo sexual pelo marido.
Voltando à sessão em que a paciente formulou que “a análise leva anos para nos fazer chegar ao óbvio”, após sua fala tentei me lembrar da sessão anterior e me recordei: para mim, havia sido uma das poucas sessões ao longo do nosso trabalho em que me senti sensível e receptível às monótonas queixas dela; portanto, sensível e receptiva às projeções em busca de sentidos.
Geralmente, nossos encontros eram marcados por uma dificuldade comum em alcançar um campo reflexivo, no qual não imperasse um tom lógico ou simplista em demasia. Essa paciente tinha uma tendência exagerada de relatar fatos concretos - problemas no trabalho, aborrecimentos com o marido -, o que tornava quase inviável criar um campo onírico capaz de nos conectar com sua realidade psíquica. Ela relatava de forma sintética os fatos da realidade externa e esperava de mim conselhos para solucioná-los.
Na sessão em que ela disse algo como poder se perceber o óbvio, razão pela qual dali para frente só lhe restava acomodar-se, não tive a impressão de que havia se estabelecido entre nós um tom predominantemente concreto. Pude me recordar que em algum momento havia compartilhado com ela um poema de Antonine Maillet que eu havia lido dias antes e me emocionou. A poetisa dizia que escrevia porque tinha a impressão e o sentimento de que o mundo era inacabado, como se Deus, que criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo, não tivesse tido tempo de fazer tudo. Achava o mundo pequeno demais, a vida demasiado curta, a felicidade insuficiente. Escrevia, confessou a poeta, “para acabar o mundo, para acrescentar à criação o oitavo dia” (Reeves, 2000).
Apresentei esse poema à minha paciente na sessão em que ela relatou, uma vez mais, a falta de desejo sexual pelo marido e sua insatisfação com o casamento. Eu já havia abordado essa questão, fundamentada no que fui conhecendo ao longo da análise, sob vários prismas: seu terror em se entregar ao mundo sensorial, sua dificuldade em viver a penetração como fonte de prazer e criatividade, seu terror de se tornar uma devassa.
A impossibilidade da paciente de absorver minhas comunicações e dar continuidade ao processo analítico é uma característica dessa análise. Isso eu já havia percebido, mas o que foi esclarecedor para mim na sessão em pauta foi a forma como o processo de introjeção do objeto psicanalítico não se efetivava.
Em trabalhos anteriores (1997, 1999, 2002) discuti como o processo de não introjeção do objeto analítico ocorria por apagamento e supressão, por desqualificação e/ou por incorporação canibalística das comunicações do analista.
Em seguida à minha lembrança sobre o que havia ocorrido na sessão anterior, imaginei, como num filme de ficção que vi certa vez, minha paciente envolvida num campo magnético - uma imagem -, que pulverizava projéteis perigosos muito antes que alcançassem o alvo.
Essa imagem auxiliou-me na compreensão de como minhas informações não chegavam a alcançar minha paciente, deixando-nos num estado de quase total disjunção e desligamento. Minhas ideias eram imediatamente pulverizadas de tal forma, que à mente dela chegavam apenas estilhaços, se bem que tratados por ela como o todo. S. reduziu minha interpretação a quase nada, aumentou para menos, esvaziou o conteúdo afetivo do encontro, vendo coerência apenas na linguística da comunicação. Nessa sessão pude perceber que sua forma de dispensar o conteúdo afetivo da comunicação e reduzi-lo a uma frase seca, que obstruía o fluxo do sonho, da imaginação e do pensamento, constituía-se num padrão de comunicação dos nossos encontros.
A propósito, vou abordar dois elementos fundamentais para a compreensão desse fenômeno. Primeiro, o campo de sensibilidade/sensorialidade criado na sessão, que, penso eu, foi o desencadeante do tal campo magnético pulverizador. Segundo, a essência desse campo estilhaçador e a relação que ele produz com a natureza de pensamentos e ações.
Uma parte central do mito de Édipo, como assinala Bion, é o episódio da luta com a Esfinge, que lhe abre caminho para Tebas e para o leito de Jocasta. Lembra-nos Mezan (2002) que os estudos dos helenistas, em particular de Delcourt, mostram que a Esfinge é antes de mais nada um monstro, ávido de sangue e sexo, que arrebata os jovens tebanos - a modo das sereias encontradas por Ulisses - para copular com eles e exauri-los até a morte.
A transformação da Esfinge em personagem que traz questões a serem decifradas é tardia. Essa mutação tardia da figura - inicialmente tida como uma alegoria da sedução, que arrasta o homem à loucura e à morte - para uma figura que desafia a inteligência testemunha uma mudança nos rumos de como o homem tece o conhecimento a respeito de sua natureza.
A mudança da Esfinge como figura que excita os sentidos para uma figura que excita a intelectualidade mostra um avanço nos processos mentais que geram conhecimento, à medida que os conceitos, lembranças e deduções adquirem importância decisiva. No entanto, o mito testemunha também que esse avanço vem em detrimento das atividades psíquicas relativas às percepções geradas pelos sentidos. A Esfinge, figura que em seu estado original excita os sentidos, destrói-se assim que o enigma formulado por ela é decifrado por Édipo.
A intelectualidade, tal qual aparece no mito de Édipo, vem marcada por uma conotação de força, de violência, denunciando não uma ligação criativa entre os sentidos e a razão, mas uma vitória brutal conquistada a partir da eliminação do que é percebido pelos sentidos. É o nascimento da intelectualidade mediante uma negação maníaca de sua conexão com o reino dos sentidos: “a esfera da teoria sendo manchada pelo sangue de uma Esfinge conduzida à morte, inapelavelmente, pela luminosidade do logos” (Mezan, 2002, p.162). Negação maníaca também do outro, como fonte de indagação, oposição, complementação, interligação e interdependência. O logos é construído mediante a eliminação do que pode ser percebido e conhecido pelo sensorial, bem como pela eliminação maníaca da percepção e do reconhecimento do outro.
Penso que esse é o logos que fundamentou a formulação de minha paciente: “a análise demora anos para nos fazer chegar ao óbvio; os que se acomodam se saem melhor”.
Assim como no mito de Édipo, minha paciente transformava o campo sensorial, o campo emocional e o campo do outro num monstro ávido de sangue e sexo, que poderia arrebatá-la a uma copulação que a enlouqueceria e a exauriria até a morte. Em consequência, surge a construção de um sistema defensivo - a pulverização de minhas informações antes de alcançarem sua mente -, que se constitui no núcleo de um sistema ideativo com características reducionistas e simplistas.
Retorno à sessão que levou minha paciente a concluir “que a análise é um tratamento longo e dispendioso para nos fazer chegar ao óbvio”.
Lembro-me que conheci o poema de Maillet por intermédio de Hubert Reeves (2000), na transcrição de uma entrevista que ele deu à Rádio Televisão Belga.
Reeves, renomado astrofísico da Universidade de Montreal, recorreu ao poema de Maillet para recolocar a atividade artística na evolução do mundo, o que lhe valeu o apelido de “o poeta da astrofísica”. Lembrei-me também que havia me sensibilizado ao encontrar na fala de Reeves seu apego e admiração por Winnicott. Gostei da forma como ele sintetizou as ideias de Winncott: “um homem para quem a importância primordial para o ser humano, de reconstruir uma realidade enriquecida e embelezada, é uma das certezas fundamentais do inconsciente” (Reeves, p.6).
Para o astrônomo, disse Reeves, o telescópio é, em certo sentido, o prolongamento do urso de pelúcia de sua infância. Ele lhe permite ser ativo em face do universo significativo, no qual nos descobrimos mergulhados, e nesse sentido, “todo ser humano, em sua esfera de atividade pequena ou grande, pode ser um artesão do oitavo dia” (Reeves, p.15).
Compartilhei com minha paciente, com entusiasmo, essas minhas rememorações e o poema de Antonine Maillet, essa bela articulação que o astrofísico fez entre poesia, psicanálise, astronomia e nossas atividades do dia a dia. Comuniquei-lhe também que o sentimento de mundo inacabado, de pequeno demais, de vida demasiado curta, de felicidade insuficiente não gerava nela o desejo de ser uma artesã do oitavo dia, mas uma revolta paralisante.
Em essência, esse foi o teor do encontro e da conversa que tivemos, reduzida por ela na sessão seguinte ao conhecimento do óbvio.
Pensando agora, em retrospectiva, considero que a apresentação do poema de Maillet citado por Reeves e a minha lembrança da ligação do astrofísico com as ideias de Winnicott funcionaram como um terceiro, na relação analítica. Testemunharam meu relacionamento com outros objetos, mais especificamente, meu relacionamento com o objeto interno psicanalítico e com a minha paixão ativa pelo tipo de conhecimento que ela me proporciona (Caper, 1997). Nesse momento da sessão, penso ter rompido a transferência narcísica (Caper, 1997), que frequentemente se estabelecia entre nós, ou seja, penso num rompimento na minha identificação com o objeto interno obstrutor de ligações criativas. Frequentemente, na relação íntima da sessão analítica identificava-me com esse objeto, com o objeto obstrutor de ligações criativas, tornando-me impossibilitada de criar elos entre as minhas ideias, entre as minhas ideias e as ideias da minha paciente, entre nossas ideias e a experiência emocional em curso, entre elas e suas significações.
Segundo Caper (1997), a identificação do analista com as projeções do paciente é parte integrante do processo, mas só quando o analista é capaz de se distanciar das projeções do paciente ele estará em posição de interpretá-las. A capacidade do analista em fazer isso depende de ele possuir elos com seus objetos internos que sobrevivem às projeções do paciente e suas manipulações inconscientes. Em especial, o elo que o analista tem com a psicanálise, uma vez que este é o elo que permite que ele trate as projeções do paciente como objetos de conhecimento e, portanto, as interprete.
Penso que a experiência, na sessão, de um analista que tinha elos com o objeto interno psicanalítico gerou, na paciente, uma experiência emocional insuportável. Identificada com S., minha possibilidade de sonhar e de transitar mais livremente comigo mesma ficava com frequência obstruída. No entanto, quando introduzo a poesia de Maillet com entusiasmo e sensibilizada pela minha lembrança do apego e admiração do poeta da astrofísica por Winnicott, está desfeita a intelectualidade sustentada na negação maníaca do outro e na eliminação do que é percebido pelos sentidos. S. reage. O que foi criado na sessão fica reduzido a uma simplista constatação do óbvio, manifestação de uma relação de oposição à gratidão e criatividade e também do terror de ser penetrada e de gerar vínculos. A possibilidade de criação e de estética está ligada às primitivas relações com o objeto pais acasalados e acasalando e um razoável equilíbrio entre as ansiedades paranoides e depressivas surgidas dessa experiência, situação não possível ainda para S.
Bion (1959) propõe que, mesmo se o indivíduo participar de uma ligação criativa, compartilhar de uma experiência emocional invejável, ele também vai se identificar com a parte excluída, com a consequente dor, inveja e ciúme. Resulta disso que uma ligação criativa é atacada e transformada em uma ligação hostil e torna o acasalamento estéril. Isso pode tomar a forma de um ataque ao estado mental do analista ou prejudicar a compreensão que pode se desenvolver entre paciente e analista. Como consequência haverá um exagerado predomínio, na parte psicótica da personalidade, de elos que parecem lógicos, quase matemáticos, mas jamais razoáveis, sensatos, do ponto de vista sensorial/emocional. Os elos que sobrevivem são perversos, cruéis, estéreis.
Tal princípio, enfatizo, opera a manutenção de uma organização mental que elimina continuamente as contradições, singularidades e articulações. É um sistema de operação que promove o simplicismo, uma vez que mutila conjuntos, distinções, particularidades e sujeitos.
Simplicismo é entendido aqui, alinhado às formulações de Morin (1977), como a disjunção de elementos em entidades separadas e fechadas cujo efeito é um reducionismo, na medida em que expulsa o que não cabe num sistema linear de conhecimento.
Esse funcionamento implica um modo fundamental de pensamento de acordo com o qual a percepção é subsidiada pela contínua eliminação do estranho, do oculto, do mistério, do acaso, do imprevisto. A ideação está a serviço da crença de que a realidade pode se reabsorver, da ideia de que o real só pode ser conhecido pela intelectualidade, não pelos sentidos. É nele que o ajuizamento está submetido ao desejo de encenar a realidade na ordem e na coerência de um sistema que se recusa a qualquer transbordamento.
Se as experiências ou fantasias de ligação criativa não puderem ser toleradas na mente, ficamos sob o jugo da figura parental combinada: “abraço mortífero que tem o poder de anular, de reduzir o Duplo, vetor da vida, ao Um, espelho da morte. O aparelho psíquico fica assim reduzido à figura do “não figurável”, do não representável, uma espécie de antissímbolo, de anticena primária, ou o tipo mesmo do não simbolizável (Ruffiot, 1980, p.40).
Os próximos momentos da análise com S. que pretendo discutir dizem respeito a uma sustentação do par edipiano criativo com expansão do pensamento.
Três anos depois de apresentar a S. a poesia de Maillet, comuniquei-lhe, depois de suas queixas habituais, que ela se colocava numa torre para não sofrer. Imediatamente ela se pôs a recitar: “quando Ismália enlouqueceu, pôs-se na torre a chorar, viu uma lua no céu, viu outra lua no mar”. “É uma poesia”, ela disse, “não sei ao certo de quem, é de um daqueles poetas antigos, mineiros (S. é mineira). Conheci essa poesia quando eu estava no ginásio, mas não me lembro do resto, só desse pedaço que é o começo”. Nessa ocasião, interpretei que ela estava demonstrando vontade de alcançar alguma compreensão sobre o seu isolamento, seu desespero, sua confusão.
Depois disso, S. voltou ao seu padrão usual de comunicação, marcado por uma fala rígida, desmoronando qualquer possibilidade de encadeamento da afetividade com o pensamento.
Dois meses depois, ela me trouxe o primeiro relato de sonho. “Estou vindo para a análise, mas é uma casa, e o divã é uma cama de casal. O meu marido e o meu ex-namorado estão deitados junto comigo. Quando você chegou, eu peguei na mão uma semente grande, redonda, que estava em cima da minha barriga. Eu abri para ver o que tinha dentro”.
Ela disse em seguida: “acho, Vera, que eu quero muito descobrir o que se passa comigo, o que se passa na minha relação com o meu marido, o que de fato aconteceu comigo aos vinte anos, com o meu ex-namorado de muitos anos, por que rompemos, o que aconteceu comigo que fui perdendo o interesse, minguando”. Enfatizei que ela estava reconhecendo que continha em seu interior muitas vivências para serem indagadas, reconhecidas e compreendidas - a semente grande e redonda em cima de sua barriga que ela pega e abre para ver o que tem dentro. Disse também que o sonho revelava que ela estava menos temerosa de realizar isso ali comigo: uma relação de privacidade e intimidade.
Na sessão seguinte, S. deita-se como sempre, com as mãos cruzadas sobre o abdome, imóvel, quase sem nenhum sinal de vida. Espero alguns minutos para ver se ela reage e fico pensando se devo ou não estimulá-la. Espero mais um pouco e então ela diz que estava muito mal - fala baixinho, é mais um gemido do que uma fala. Diz achar que era tristeza, não tinha ânimo para nada. Fica em silêncio, um longo silêncio. Depois diz: “acho que você tem razão, eu não me lembro de ninguém da minha infância, não me lembro da minha mãe, da minha irmã, do meu pai, não me lembro de brincar com a minha irmã. Acho que os meus pais saíam muito, viajavam muito, e eu ficava com a minha tia”.
Seguiu-se um longo relato sobre o quanto gostava dessa sua tia, de brincar no quintal dela, dos vasos de flores rodeando o muro, da comida que ela fazia. Lembrou-se da amiguinha que encontrava na casa da tia, do quintal enorme, de como era bom jogar bola. Foi um relato vivo que me fez conhecer um pouco de sua infância. E eu disse: “você está recuperando sua memória, S”.
Ficamos em silêncio alguns minutos. Em seguida me falou sobre uma propaganda que tinha visto na televisão. Um homem no meio de um campo florido sob um céu muito azul. Há também balões muito coloridos que vão estourando e transformando-se em nuvem cinza. Essa imagem vem acompanhada da seguinte fala: “isso é o que acontece com cada sonho que você não realiza”.
“Fico muito pensativa quando vejo essa propaganda. Acho que eu fui fazendo isso com a minha vida e agora vivo sob uma densa nuvem cinzenta... é por isso, Vera, que estou pensando muito seriamente em pegar parte da minha herança e comprar uma casa. Acho que seria muito mais feliz numa casa. Quero cozinhar para os meus filhos, enquanto eles brincam no quintal; quero pisar no chão descalça, sentar no jardim, cuidar das plantas.”
Seguiu-se uma longa descrição de todas as coisas que poderia fazer caso morasse numa casa.
Entendo essa comunicação de S. como sendo um sinal de início de desobstrução e construção de um espaço de sonho. Digo isso a ela. Depois de uma longa pausa, S. começa a descrever como é a casa de seus sonhos: não muito grande, quintal com muita grama e flores, uma piscina pequena, churrasqueira, um forno para assar seus pães de queijo. Então eu disse: “essa casa me parece muito confortável e muito agradável”. Depois disso ficamos em silêncio até o final da sessão.
Na sessão seguinte S. deita-se e fica em silêncio como de hábito. Eu aguardo sem dizer nada.
“Sonhei com você agora de manhã. Tive uma noite picada, dorme e acorda. Na hora que acordei me lembrava perfeitamente do sonho, agora não me lembro direito. Eu cheguei e você estava distribuindo um mapa para os seus pacientes, acho que era um mapa, mas não tenho certeza, talvez fosse um papel com a identificação de seus pacientes. E não estávamos só eu e você na sala, tinha mais gente, acho que uma mãe e uma filha, talvez mais gente. E daí eu pedi para você tirar essas pessoas da sala porque com todas aquelas pessoas ali não ia dar”. Pensei que S. estava me solicitando privacidade e intimidade para adentrar seu espaço de análise.
Em seguida, disse que teve um final de semana difícil, frisou que só queria dormir, um torpor. “Durante a noite, lá pelas tantas, eu peguei o livro de Fernando Pessoa e abri em qualquer página. E me dei com a página setenta e oito, e era eu, Vera. Ele falava de mim, como naquela música do Milton Nascimento: cabe tão bem em mim que não sei como não foi feita por mim. Eu até trouxe o livro para você ver, quero ler para você. E eu fiquei na tarde do domingo no quarto, num dorme e acorda e então tocou o telefone. Achei que era minha mãe, e eu disse que bom, deve ser a minha mãe, mas não era, era um primo meu e foi muito bom. O telefone me despertou e aí eu fiquei melhor”.
“Você fica fora de contato”, eu disse, “nem podendo dormir e sonhar e nem podendo acordar e usufruir da companhia do seu marido, filhos, mãe”.
“É isso mesmo, vou pegar o livro para você ver como eu sou. É só esse parágrafo, olhe!”.
Pegou o livro (O livro do desassossego) e me ofereceu para ler; primeiro eu o fiz sozinha e em seguida em voz alta:
Há sensações que são sonhos, que ocupam como uma névoa toda a extensão do espírito, que não deixam pensar, que não deixam agir, que não deixam claramente ser. Como se não tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisa de sonho, e há um torpor de sol do dia a aquecer a superfície estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não ser nada, e a vontade é um balde despejado para o quintal por um movimento indolente do pé à passagem (Pessoa, 2006, p. 107).
Eu disse: “é mesmo, cabe muito bem em você, parece que foi feita por você, S.”; e frisei, “interessante essa imagem: 'a vontade é um balde despejado para o quintal'”.
S. prosseguiu: “estou me lembrando de quando estava na faculdade e namorando o E.. Eu estava com ataque de pânico, acho eu. É uma sensação terrível, um mal-estar horroroso, e eu pedi para ele vir comigo no meu apartamento. Mas chegando lá não me senti melhor, aí queria que ele fosse embora; eu achava que era ele quem estava me provocando aquilo. Na verdade hoje eu sei que não era ele, mas eu queria me livrar daquilo que estava sentindo, uma sensação horrível. Daí eu cheguei perto da janela, tinha uma janela branca bem grande na sala do meu apartamento, e eu pensei: vou me jogar, mas eu não queria me matar, eu só queria me livrar daquilo, daquele turbilhão”.
- E você buscou sossego no torpor?
- É, Vera, logo em seguida eu dormi, mas não era um sono bom. Eu só queria dormir bem, mas o meu sono era um sono picado que não me dava sossego.
- É um falso sossego, pois na verdade você fica num lusco-fusco que não te deixa nem descansar, nem ficar acordada, nem viva e nem morta.
- Fico pensando que se eu comprasse uma casa com um belo quintal, piscina, churrasqueira, eu poderia curtir tudo dentro de casa, com meus filhos, meu marido, convidar minha mãe, minha irmã, alguma amiga; eu não precisaria ir ao shopping no domingo à tarde com os meus filhos para tirá-los de dentro do apartamento... sabe, eu estava pensando outro dia que eu só vou no Shopping Galeria porque ele é aberto, cheio de plantas e me faz pensar que eu estou num quintal.
- Você está querendo muito sair do seu torpor e adquirir uma condição mental -uma casa interna -, possível de abrigar seus gostos, desejos, sonhos, sentimentos, as pessoas que te são caras, suas memórias.
- Quando meu pai ia para a praia - ele adorava ir para a praia -, ficava depois do almoço na rede dormindo. Aí ele acordava e ia meio cambaleando para o mar e se jogava. Então ele dizia que não tinha nada melhor do que aquilo, um bom sono e depois aquele choque com a água do mar te acordando.
- Você deve neste momento estar usufruindo o prazer de estar acordando após um longo estado de torpor.
Trouxe dois momentos da análise com S. para ilustrar o argumento central do meu pensamento. A elaboração do complexo de Édipo, e a possibilidade que ele tem de sustentar o par edipiano criativo, constitui a matriz de pensamentos e ações complexas. Constitui um espaço interno capaz de abrigar desejo, sonho, imaginação, pensamento e memória, dos quais deriva um senso de criatividade que pode inspirar o indivíduo a procurar seus próprios esforços construtivos e criativos, na medida em que ele fornecer uma condição de conjugar os elementos do próprio psiquismo, de modo que cada um preserve suas respectivas qualidades intrínsecas e também possa gerar vida a um novo elemento.
Se a ansiedade associada à experiência ou à fantasia de uma ligação criativa é insuportável, consequentemente haverá uma interferência correspondente no princípio organizador de pensamentos e ações complexas. Se o amor e o ódio vivenciados na relação com um par criativo é insuportável, a concepção de interligação e interdependência não chega a ser alcançada; a experiência ou fantasia de ligação criativa é obstruída e transformada em uma ligação hostil a ser combatida. Se isso ocorrer, o indivíduo pode ser capaz de separar, imitar, igualar, aglomerar, confundir, mas não de conjugar de forma fecunda.
Penso que esse funcionamento constitui o núcleo de um princípio organizador de pensamentos e ações que mantêm operações disjuntivas/reducionistas/simplicistas. A matriz de pensamentos e ações é, ao mesmo tempo, produto de uma intelectualidade, fundamentada na negação maníaca de sua conexão com os sentidos e na negação maníaca do outro, que juntas ajudam a sustentar essa matriz.
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Recebido em 9.10.2011
Aceito em 20.12.2011
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