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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

 

EM PAUTA

 

Psicanálise a distância

 

Distance Psychoanalysis

 

Psicoanálisis a distancia

 

 

Alicia Beatriz Dorado de Lisondo

Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicanalista de crianças e adolescentes

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora questiona o uso das novas tecnologias no tratamento de pacientes de forma habitual. Aceita seu uso em situações agudas e excepcionais. Fundamenta metapsicologicamente as dificuldades para mergulhar nos Estados Mentais Primitivos, que se expressam na linguagem pré-verbal, não verbal, às vezes inacessíveis à palavra simbólica. A associação livre nasce do modelo neurótico de Freud. Na contemporaneidade, o paciente não neurótico exige uma relação inédita, íntima e presencial, na qual as manifestações sensoriais possam ser sonhadas, intuídas, compreendidas e transformadas pelo analista. A autora se opõe ao uso destas tecnologias na análise de futuros analistas. Vinhetas clínicas ilustram o trabalho.

Palavras-chave: psicanálise a distância; Estados Mentais Primitivos; formação analítica; psicanálise contemporânea.


ABSTRACT

The author questions the use of new technologies as a standard in patient treatment. She accepts their use in acute, exceptional circumstances. She metapsychologically underlies the difficulties in going deep into Primitive Sates of Mind, expressed through pre-verbal, non-verbal language, sometimes inaccessible to symbolic verbalization. Free association arises from Freud's neurotic model. Nonneurotic patients, in the contemporary world, have required an unprecedented, intimate and face-toface relationship, where sensorial manifestations can be dreamed, intuited, understood and changed by the analyst. The author is opposed to the use of these technologies by future analysts. Clinical vignettes illustrate this work.

Keywords: distance psychoanalysis; Primitive States of Mind; analytical formation; contemporary psychoanalysis.


RESUMEN

La autora cuestiona el uso de las nuevas tecnologías en el tratamiento de pacientes en forma habitual. Acepta su uso en situaciones agudas y excepcionales. Fundamenta metapsicológicamente las dificultades para profundizar en los Estados Mentales Primitivos, que se expresan en el lenguaje pre-verbal y no verbal, a veces, inaccesibles a la palabra simbólica. La libre asociación nace del modelo neurótico de Freud. En la contemporaneidad el paciente no neurótico exige una relación inédita, íntima y presencial, en la cual las manifestaciones sensoriales puedan ser soñadas, intuidas, comprendidas y transformadas por el analista. La autora se opone al uso de estas tecnologías en el análisis de futuros analistas. Ejemplos clínicos ilustran el trabajo.

Palabras clave: psicoanálisis a distancia; Estados Mentales Primitivos; formación psicoanalítica; psicoanálisis contemporáneo.


 

 

Quando consideramos quão poucas oportunidades mesmo cinco sessões por semana oferecem ao psicanalista, qualquer obstáculo à observação parece sério.

(W. R. Bion)

Actions speak louder than words.

(W. R. Bion)

 

Introdução

A tecnologia, que tanto amplia nossos horizontes para nos comunicarmos com o mundo, pode vir a ser uma perigosa tentação quando usada na clínica rotineira e indiscriminadamente. Comungo com seu uso em momentos agudos e excepcionais, como os apresentados no trabalho de Gordon et al. (2014).

As novas tecnologias não substituem o encontro humano, íntimo e presencial. Não é possível apagar as diferenças.1 O paciente precisa saber que esta nova forma de trabalho é uma tentativa pioneira, uma experiência a ser avaliada por ambos os participantes do processo. Mas é o analista o responsável por criar as condições de trabalho.

A cultura do vazio nos atravessa neste mundo pós-moderno. Um novo mal-estar é provocado (Carlisky, Eskenazi & Kijak, 2000). O imediatismo na busca de resultados, o desterro das utopias, as saídas anti-insight, com a fascinação das soluções mágicas e os atalhos lights, a preponderância massiva e permanente da imagem, o desejo de nada desejar, a perda dos ideais, a rejeição ao simbólico, a transgressão à lei são suas marcas registradas.

O desafio da psicanálise é não se submeter a esta cultura anti-Prometeu, de modo a não diluir a força revolucionária de nossa ciência-arte. O uso “impensado” das novas tecnologias para analisar pacientes, alterando os fundamentos do setting regularmente, pode levar a uma perigosa fascinação, que cega a percepção dos conluios, baluartes,2 contraidentificações, contratransferência complementar (Racker, 1959/1982), pactos recusadores da realidade.

Quinodoz (1992) alerta que o setting tem uma função como continente ativo, criativo e constante que interage com o processo analítico. Ela ressalta a importância de trabalhar as razões inconscientes, escondidas atrás das possíveis racionalizações nas alterações do setting. Importa que o analista preste atenção e discrimine as reais dificuldades objetivas no cumprimento do setting, dos usos inconscientes, das funções embutidas nos pedidos para mudar o enquadre, expressões pré-verbais da realidade psíquica: ambição, inveja, abortos simbólicos inconscientes, amputação da capacidade criativa, medos e resistências, entre outros a investigar. As dificuldades objetivas e a expressão da realidade psíquica podem ser duas faces da mesma moeda.

Os psicanalistas, pressionados pelas demandas da pós-modernidade, não estariam procurando adaptar “nosso produto” a essas demandas? Outra situação é quando a psicanálise, na esteira de seu fundador, cria, inova, reformula teorias e, com os novos modelos, expande horizontes para o tratamento de crianças, bebês, pacientes psicóticos, borderlines.

 

O setting analítico

O setting, além das normas que enquadram o processo analítico no aspecto manifesto e folclórico em contato com a realidade, tem uma polissemia de sentidos metapsicológicos. Para Winnicott (194171979b), o setting é a somatória dos detalhes da técnica, com destaque para uma “situação fixa” que permite a investigação dos processos mentais, oferecendo uma regularidade, uma constância. Ele apresenta, analogicamente, funções comparáveis às envolturas psíquicas (Anzieu, 1986), equivalentes à pele psíquica de Bick (1968), que é um espaço de fronteira entre o mundo externo e o interno. O setting condensa a função continente - o feminino puro de Winnicott - e a função paterna posta em cena dos necessários limites: a lei.

As mudanças criativas no setting permitem avançar na compreensão e na significação do processo analítico quando ancoradas em conjeturas intuitivas, imaginativas e racionais a serem avaliadas pelo setting interno do analista, que condensa vários eixos. Para Bolognini (2008), esse setting é arte do contato a ser cultivado com o próprio mundo interno. Green (2008) aborda as rupturas do enquadre com pacientes não neuróticos, aqueles que não podem associar livremente porque estão aquém da representação; assim, o setting introjetado pelo analista garante maturidade, criatividade e liberdade para lidar com os impasses e não perder a função analítica. Para o autor francês, o enquadre é o refúgio protetor, o estojo que abriga o processo, a matriz ativa, a parte dinâmica do enquadre, a joia. O enquadre não é uma couraça de ferro, mas precisa facilitar, propiciar e nutrir o processo analítico.

A elasticidade nos exige um permanente esforço de trabalho mental e de auto-observação para não lacear a ponto de desfigurar a psicanálise. Uma questão é fazer caminho ao andar, outra é perder o rumo.

O setting é o guardião do processo e a condição para a criação do objeto analítico, e também para convocar os níveis primitivos da mente (Bleger, 1967). Suas alterações são significativas e plenas de sentido: nelas dançam e se incrustam as partes embrionárias, concretas ou não nascidas da mente.

Ressalto que em nome de fatores preciosos da função analítica, como liberdade, elasticidade e criatividade (Ferro, 1998), é possível mascarar alterações e deturpações indiscriminadas do setting que diluem a especificidade da psicanálise, qual seja: o conhecimento inconsciente da mente num encontro intersubjetivo íntimo, que propicie o desenvolvimento mental do paciente e do analista.

Com Winnicott (1954/1979a), desejo problematizar que o uso das novas tecnologias não corresponde a uma alteração da “análise padrão” por necessidades de pacientes muito difíceis. Não se trata de uma expansão metapsicológica, e sim de um recurso para viabilizar um encontro virtual, no qual as limitações espaciais e temporais são sorteadas. As facetas espaciais do setting, analista e analisando sozinhos num recinto, não existem na psicanálise a distância, nem as facetas temporais são garantidas com um programa regular e fixo pela força do azar e do imprevisível, com interrupções na transmissão e a falta de linha telefônica, por exemplo.

O analista precisa ter um bom manejo da análise padrão para ser capaz de realizar “outra coisa” quando a análise padrão não é recomendada ou é impossível, e poder ir ao encontro do paciente não neurótico. Indago se este é o momento oportuno para incluir, nos programas de Teoria da Técnica, a psicanálise a distância.

 

Estados Mentais Primitivos (E.M.P.)

No início é o caos, o abismo, o vale, o primordial.

O primeiro para o grego desprovido de ordem, matéria, forma metamorfose. (Ovídio)

Os E.M.P. estão presentes na personalidade total dos seres humanos, e não são necessariamente expressão do pathos. São fonte de criatividade e acunham potencialidades a desenvolver. Os E.M.P., marcas mne-mônicas do inconsciente não reprimido da segunda tópica de Freud, não alcançaram a representação, ou seja, são pré-simbólicos, assimbólicos, e expressam-se na linguagem pré-verbal ou não verbal. Na segunda tópica de Freud, o Id alberga o impensável, o irrepresentável, o indizível no aquém e além da palavra. Os E.M.P. são prerequisites para qualquer desenvolvimento psíquico.

No início, o psíquico está colado ao soma. Por isto a linguagem corporal é tão importante. Quando não há nem repressão primária nem barreira de contato, não podemos metapsicologicamente sustentar o nome de sintomas. Os transtornos falam das dores da alma humana nos primór-dios da vida mental. Ou seja, aquém da repressão primária e da barreira de contato, aquém da palavra simbólica.

Nos E.M.P., as identificações são adesivas, superficiais, bidimensionais. O sensorial rege o mundo mental.

Ao mergulhar na mente primordial, na dimensão protomental e protoemocional, nos deparamos com terrores, angústias catastróficas, o fear of breakdown e estados de não integração.

Se a personalidade total alberga os estados mentais do psiquismo fetal, do bebê, da criança, do adolescente e do adulto, as novas tecnologias necessariamente privilegiam a palavra simbólica do modelo neurótico.

Provocativamente indago se um analista ousaria tratar uma criança usando as novas tecnologias.3 Se a resposta for negativa, é preciso aceitar que estados mentais infantis são quase inacessíveis com estas novas tecnologias.

 

A psicanálise a distância: os obstáculos

Freud acentua a importância da atenção flutuante na talking cure. Bion desenvolve, em Atenção e interpretação, as intuições do mestre. Para poder interpretar, é necessária uma escuta atenta que pode ser prejudicada na psicanálise a distância. A mente do analista pode estar parasitada com inquietações que interceptam sua atenção (Carlino, 2012), como o temor de perder a privacidade com os hackers, as dúvidas sobre a qualidade da transmissão etc.

A semiótica, como conjunto de sinais (semion), exprime sentido. Há uma estrutura semântica encarnada nela (Rezende, 1999) a ser intuída. A polissemia da dimensão sensorial e corporal perde dimensões importantes no recorte da psicanálise a distância. A sinestesia - a orquestra dos cinco sentidos -está necessariamente limitada, dificultando a experiência de consensualidade.

Como observar a riqueza da linguagem pré-verbal, as formas infraverbais e não verbais da comunicação, diante das seguintes situações?

A imagem do paciente aparece recortada pelo limite imposto pelo tamanho da tela - a parte inferior do corpo e o ambiente não aparecem quando se usa o Skype. Nos tratamentos por telefone, só se acessa o nível verbal. A webcam ou o VoIP não garantem uma boa percepção total.

Na janela, a imagem nem sempre aparece nítida para permitir a percepção de detalhes, cores, texturas, rasgos faciais, pregas, luminosidade, jogos de luzes e sombras. O chuvisco na tela obscurece a percepção.

O olfato e o tato não entram na cena analítica. A umidade das mãos molhadas por ansiedade, por exemplo, não é diretamente acessível para o analista.

A cinestesia da metade inferior do corpo não entra na cena analítica.

A escuta verbal perde nitidez, sonoridade, nuanças. As vozes do silêncio e a mudez expressiva perdem sutilezas. Como distinguir a polissemia do silêncio? Há um corte na transmissão? É um profundo silêncio de elaboração? É um silêncio, voz da resistência? Ou ele é a posta em cena do vazio mental estrutural, o irrepresentável? Trata-se de um desligamento? E se o paciente adormeceu? Como perceber e discriminar as pausas das interrupções do fluxo associativo? Scharff (2012) afirma que é possível observar alterações no tom da voz, na respiração e nas pausas, e salienta o vínculo no espaço mental. Argumento que a relação nasce no leito do sensorial e só seria possível captar essas nuanças da voz, da respiração com uma qualidade de transmissão quase perfeita.

Como distinguir analiticamente os “atos sintomáticos no uso das novas tecnologias” (como o esquecimento do encontro, o corte na comunicação, os atrasos, a imagem fora de foco) com as dificuldades que estes recursos apresentam, como o desaparecimento da imagem, interrupções na transmissão, colapsos na rede que não são da responsabilidade dos participantes?

A musicalidade da linguagem, as sutilezas da entonação, o tom da voz e suas alternâncias, o ritmo, o volume da voz são prejudicados quando há ruído na comunicação, falhas na transmissão, perda do sinal do satélite e outros fatores que perturbam o encontro virtual, assim como as finas variações dos códigos verbal, metaverbal e paraverbal.

Além e aquém das interpretações verbais, há no processo analítico ações interpretativas que não são percebidas nos encontros virtuais.

Assim como o poeta, entendo que na psicanálise não há caminhos predeterminados. Eles se fazem com o andar, mas em terreno suficientemente firme para não afundar no lodo em que os caminhos desaparecem.

 

A clínica contemporânea

A clínica contemporânea que se debruça sobre os pacientes que não podem representar nem simbolizar destaca a importância do inconsciente não reprimido da segunda tópica freudiana. O Id é o mais primitivo nesta nova tópica. Nos pacientes não neuróticos, nas patologias marcadas pelo deficit e não pelo conflito, há cisões e não repressão. Esses transtornos anteriores à repressão primária e à barreira de contato têm a primazia sobre os sintomas. A denegação impera sobre a negação. A necessidade brilha quando o desejo não aparece. A dissociação mente-corpo fratura a personalidade.

Os conceitos de campo analítico, terceiro analítico, o sonho alfa do analista, a intersubjetividade são vibrantes conquistas conceituais da psicanálise contemporânea e exigem um encontro singular, complexo, inédito, transcendente e qualificado. Como alcançar essa fina e delicada sintonia afetiva, na filigrana da relação sincrônica, quando o com-puta-dor4 entra na cena? O magnetismo do campo perde força. Cada um dos usos - Skype, e-mail, chat - acarreta distorções específicas. Na linguagem escrita há uma sucessão diacrônica, o segredo profissional pode ser violado, perde-se a espontaneidade expressiva não verbal na construção de sentido. Como não ficar ancorado no “enganoso discurso verbal” (Azevedo, 2014)? Um paradoxo. As novas tecnologias podem “facilitar” em circunstâncias excepcionais e provisórias do encontro analítico. Mas elas podem ser um obstáculo, pelas limitações que impõem, ao empobrecer e desvirtuar a essência da psicanálise.

Uma questão é alargar horizontes, outra é impossibilitar e/ou dificultar a análise, desdenhando o significado profundo do setting. A função analítica precisa ser nutrida, revigorada, fortalecida e não deturpada.

 

Criatividade versus iatrogenia

Resulta útil e necessária a discriminação conceitual entre a criatividade positiva, embalada por Eros, e a iatrogenia ou criatividade negativa, no dizer de Lutenberg (2010). Entretanto cabe distinguir um pluralismo crítico e salutar, presente na criatividade positiva, de um relativismo no qual “tudo vale” porque nada vale. Qualquer postura pode ser justificada graças a uma racionalização defensiva que não pensa razões.

Considero útil recorrer ao uso das novas tecnologias em situações excepcionalmente agudas e quando não é possível a análise com outro profissional, a exemplo de minha experiência, quando um paciente está internado em isolamento após um transplante de medula. Entretanto, critico o uso das novas tecnologias de forma habitual por alguns motivos.

Por não permitir o acesso aos Estados Mentais Primitivos, que se expressam na linguagem pré-verbal, não verbal, infraverbal, ancorados no inconsciente da segunda tópica freudiana. Os E.M.P. não têm alcançado o estatuto da palavra simbólica e estão presentes em todo ser humano. Como analisar os estados autistas em pacientes tidos como neuróticos sem o acesso à linguagem pré-verbal (Fonseca, Bornholdt, Fix & Lisondo, 2014)?

Se, com Bion (1957), concordamos com a existência de uma parte psicótica e não psicótica da mente, mesmo quando há recomendações específicas para não usar o tratamento telefônico com pacientes psicóticos (Lutenberg, 2010), como aceder a essa parte psicótica da mente, que todos temos, usando as novas tecnologias? A argumentação dos analistas que usam estas tecnologias é que não é aconselhável tratar pacientes psicóticos “de carterinha”.

Só que pacientes “sem carterinha” também têm estados psicóticos!

Será que é possível apostar na inexistência de estados psicopáticos em todo paciente? Os pacientes psicopáticos não seriam indicados para este tipo de tratamento.

E se o analista se equivoca com suas hipóteses diagnósticas, ou se elas mudam, será que o analista pode transformar o setting como em qualquer outra análise? Será que o analista que aceita um candidato para a formação analítica, usando as novas tecnologias, não está ofuscado pelo fascínio do feitiço que cega a percepção?

Será que o uso das novas tecnologias não realiza fantasias onipotentes ao pretender driblar tempos e espaços nas distâncias, coordenadas do princípio de realidade (Trotta, 2011)?

A continuidade do tratamento através das novas tecnologias, quando o paciente muda geograficamente de cidade, estado, país, não permite que se desenvolvam mecanismos maníacos para negar os lutos ante as mudanças? Carlino (2012) argumenta sobre os benefícios de seguir uma análise na língua materna, possibilidade para lidar com as perdas e os ganhos ante a nova situação. Não há uma idealização do analista conhecido? Ou é o analista que tem dificuldades de enfrentar a despedida, pelas razões mais variadas?

Com o uso das novas tecnologias não se propicia uma “pseudogratificação incondicional” urgente, intempestiva, perigosa quando o paciente não tolera a frustração e os limites impostos pela vida, a hybris grega? Não se favorece a onipotência narcísica de um ego ideal que auspicia que tudo é possível? Não há distâncias que nos separem; não há interdição, lei, discriminação nas fantasias fusionais primitivas.

Não há um privilégio dos conteúdos verbais em detrimento da função continente do encontro analítico presencial, diferente do encontro virtual? Ou seja, estes meios, além de oferecer uma ferramenta valiosa, se bem usada, podem moldar o processo do pensamento (Carr, 2011).

Ogden (2013, pp. 140-141) afirma: “O estado de rêverie do par analítico, que é um meio tão necessário para a criação e vivência do terceiro analítico, necessita de condições de privacidade absoluta, que devem ser garantidas pela técnica analítica” [itálicos nossos].5 Como criar o terceiro analítico, o espaço onírico que permite o fluxo do inconsciente, na psicanálise a distância, quando a técnica não pode garantir a privacidade absoluta?

A análise através das novas tecnologias não facilita que o analisando, num zapping hipercinético e/ou numa sobre-estimulação e excitação sensorial, deixe de se retirar e concentrar em si mesmo, seja na regressão - tal o sentido profundo do uso do divã -, seja na privação de estímulos sensoriais para criar um ambiente onírico de privacidade e intimidade (respeitoso do mistério). Carlino (2012) conta em seu livro a experiência de fazer psicanálise a distância com um paciente na mesa de um café. Mesmo quando ele alerta para a ameaça de ser um acting-out do paciente, indago se este setting fantástico oferece reais possibilidades de trabalho analítico.

Stern (1997) alerta que a integração da experiência infantil somatopsíquica, na análise, se faz na microscopia das interações. As repetições da matéria bruta sensorial podem se transformar em experiências emocionais e trabalho analítico mediante. As novas tecnologias não colocariam obstáculos que nos distanciariam da possibilidade de captar artisticamente essas delicadezas na relação? O trabalho analítico permite que o sensorial bruto se transforme em experiência emocional. Se um adolescente abraça a almofada do divã, a cheira e nela se acomoda, eu penso na maciez, no contato pele a pele, no olfato, e posso conjeturar que a forma de usar essa almofada sugere que o paciente quer encontrar um aconchego, um lugar macio, confortável, onde possa se sentir acolhido e compreendido.

O paciente pode precisar estar face a face com o analista para nele encontrar um espelho vivo, para se nutrir com sua expressividade facial, para controlar, para resistir à entrega analítica, para ilustrar fantasias fusionais, simbióticas etc. Mas, no encontro presencial corpo a corpo, os sentidos desta postura serão trabalhados no próprio processo. Outra é a situação quando o paciente não pode deitar, ou quando, por meio de um iPhone ou de um smartphone, o setting é, além de virtual, também ambulante.

Não seria arriscado afrouxar o zelo pelo rigor nas exigências da formação analítica quando é um analista quem é analisado também a distância, em nome da difusão, democratização e expansão da psicanálise? Futuros analistas precisariam ter padrões básicos e mínimos na própria formação, sustentados num setting institucional para facilitar a transmissão da análise e evitar que os futuros colegas herdem os próprios pontos cegos de seu analista. Pelas exigências solicitadas a um futuro analista, no exercício da profissão impossível e insalubre, penso não ser aconselhável realizar uma análise de formação por Skype, mesmo contemplando sessões presenciais, como comenta Canestri (2011), quando o uso destes recursos tecnológicos está na etapa de investigação do método e seus resultados.

Um setting que alterna sessões a distância e presenciais não propiciaria cisões entre elas? Um analista pode argumentar, humoristicamente, que nas primeiras analisa-se a parte neurótica do paciente e, nestas últimas, a parte primitiva. Só que ele estaria impregnado de memória e desejo, com sua mente poluída, ocupada com predeterminações, em vez de estar aberto e fazendo uso da capacidade negativa. Esse setting pode condicionar e propiciar cisões perigosas.

E se nosso paciente “virtual” é um adicto às novas tecnologias, ou se ele tem uma relação simbiótica ou autista com elas, o analista não propicia essa imersão digital patológica quando oferece ou aceita o uso destes recursos no setting, como no caso do paciente da Vinheta B?

E se, com o uso dessas novas tecnologias, o analista, em vez de editar o novo, repetir as falhas vivenciadas pelo paciente com os objetos primários, retraumatizando-o, na eterna repetição (Hartke, 2005)? Será que o paciente apresentado por Giovannetti (2011), com duas certidões de nascimento, a primeira sem o nome do pai, vive a experiência da lei paterna e dos limites ao ser tratado por Skype? Ou, na cilada transferencial, ele repete ser diferente (o trauma precoce), o quase não encontro presencial com o analista? Ambos constroem o sentido de estar “aí, num locus virtual”. Só que o espaço cibernético não tem nacionalidade, está além das exigências de identidade geográfica e jurídica (Carlino, 2012). Seria possível ter iniciado a análise de outra forma com este paciente? Não é preciso ter em conta a dimensão do inanalisável, inalcançável, do que fica fora da mira analítica, não pela essência da nossa ciência, mas pelo uso destes meios?

Quais os efeitos inconscientes, na transferência total, quando um paciente se depara com “falha na chamada”, “chamada em espera”, “Hold on while we try the call back”?

Não é um perigo lidar com um “falso self analítico” sobreadaptado às exigências e ideais deste novo mal-estar na cultura?

Como criar a matriz simbolizante do enquadre, o enquadre como terceiro, quando os ritmos próprios de continuidade-descontinuidade, comunicação-silêncio, presença-ausência, atividade-passividade, chaves para a construção do setting (Tebaldi, 2014), estão alterados na psicanálise a distância?

Os critérios e possibilidades de analisa-bilidade precisam nascer das entranhas da identidade do profissional e da relação analítica que contempla a personalidade do analista (Korbivcher, 2014), suas experiências de vida, seu momento existencial, a cultura, o nível social, econômico, antropológico, histórico, mas a eles não se submete.

 

Vinheta A

A autora como paciente: um exemplo polêmico

No dia 13 de outubro de 2008, num acidente de carro, sofro uma lesão medular e fico paraplégica. Sou internada em Campinas, cidade que não oferece os recursos necessários para a assistência adequada. O translado para a cidade de São Paulo a fim de ser atendida num hospital de excelência era uma decisão difícil pela fratura na vértebra cervical e riscos de outra lesão medular.

Minha família, em desespero, ante o impacto do trauma, escuta vários profissionais com posturas divergentes. Diante de meu pedido, meu analista argentino é avisado do acidente e com ele combinamos um encontro pelo Skype. Eu estava com colar cervical, acamada. Ele não me via concretamente, mas metaforicamente eu não me sentia vista, compreendida. A minha imagem não aparecia em sua tela para dar maior nitidez à voz, enquanto eu o via com o sofrimento no rosto. Com voz trêmula e entrecortada ante o trauma, eu falava o que ele tinha dificuldade de escutar, de compreender. Eu sabia que minha mente não estava mutilada. Eu tinha que decidir com urgência entre ficar no hospital em Campinas, a minha cidade, com recursos precários para o meu caso, ou correr o risco do translado para São Paulo, porque uma cirurgia não podia ser adiada. Também tinha consciência da irreversibilidade da lesão e chorava pelas perdas e lutos.

Mas outra decisão se impôs após esse encontro desastrado pelo Skype. Apesar da história analítica compartilhada, de minha gratidão e respeito por meu analista, de sua disponibilidade para continuar o trabalho na minha língua materna, eu precisava de uma continência, de uma qualidade de relação presencial. Precisava do espelhamento no rosto do outro para sair do estreitamento do horror, para lidar com o impensável e irrepresentável do trauma que, como um tsunami existencial, levantava e sacudia os alicerces sedimentados de meu ser. Assim, comecei a balbuciar e grafitar em pesadelos, sonhos e poesia o acidente e suas consequências. Para mim, nesse momento, o Skype era um obstáculo que congelava a imagem, dificultava a escuta que exigia precisão e nitidez, esfriava, nas interrupções e dificuldades tecnológicas, um encontro que eu precisava que fosse contínuo, caloroso, continente. Não tenho dúvidas do valor do ser do meu analista, seu compromisso comigo, seu interesse, mas o “empréstimo de sua mente” chegava com demora e, nas inúmeras barreiras tecnológicas, perdia algo precioso do valor original - como num empréstimo financeiro que, ao passar pelo caminho burocrático, com o pagamento de taxas e impostos, tivesse seu importe original reduzido.

Estaria eu ressentida, já que minha análise, naquele outro settting, não tinha evitado o acidente? E/ou estaria eu revoltada por estar privada da proximidade corporal de meu analista perfumado, alvo de fantasias edípicas e de múltiplas transferências, com aquele consultório verde, naquele bairro, com aquele café? Estaria relutante em aceitar o novo e minha condição de deficiente? Seria para mim difícil elaborar o luto ante a impossibilidade de viajar “à minha Buenos Aires querida” - letra de um tango - e continuar aquela análise nessa cidade argentina como se nada houvesse acontecido, negando a angústia de separação e todas as consequências do trágico trauma? Estaria eu sendo exigente, usando os benefícios secundários da tragédia, querendo mais daquilo que ele podia me oferecer naquelas circunstâncias? Ou estaria eu alucinando negativamente, impossibilitada mentalmente de perceber o que existia entre nós? Era o computador alvo das projeções de dor e ódio, do terror ante as mutilações sofridas? Diante de tantas mudanças vivenciadas como catástrofes, estaria eu resistindo a entrar na aldeia global e me apropriar do computador como uma migrante digital, não nascida na era do computador como os nativos digitais? Era esta mais uma exigência entre as tantas que eu tinha que aprender, como usar a cadeira de rodas.

Percebi que continuar essa análise era correr muitos riscos, como continuar em Campinas - o conhecido - em vez de ousar com outro “hospital-analista”, com outras possibilidades de acolhimento. Com esta decisão tomada, numa outra sessão, nos despedimos.

Foi possível, após vencer barreiras administrativas, que uma analista escolhida por mim, que não era do corpo médico do Hospital Albert Einstein, me atendesse regularmente durante os quatro meses de internação, trabalho que hoje prossegue. Em cada sessão, eu auscultava o rosto da minha analista, compartilhando silêncios quando não encontrava palavras. Na serenidade desse rosto expressivo, que espelhava minha dor com serenidade, eu redimensionava o horror da tragédia ao escutar a interpretação possível. Quando o choro apagava minha voz, eu sabia que ela estava ali ao meu lado.

Considero o argumento que afirma que meu caso não seria o indicado para usar o Skype: por estar com o trauma em carne viva, ante angústias catastróficas, pela minha singularidade que suplicava por presença qualificada etc. Esta experiência pretende apenas exemplificar, com o foco do lado do paciente, os limites da psicanálise a distância. Mas é importante ter em mente a nossa responsabilidade quando o sagrado da vida está em jogo. Reconheço que este recurso me permitiu comunicar ao meu analista o acidente, e dele me despedir.

 

Vinheta B

Atendi Raul em sua residência, anos atrás, quando ele tinha uma indicação de repouso absoluto por uma hérnia na coluna cervical. Desta vez, ante uma nova crise, eu estava em cadeira de rodas e sua residência é inacessível. Combinamos usar o Skype. Ele é expert no uso das novas tecnologias.

Na hora combinada, “nos conectamos”. Ele diz estar com muita dor. Está incomodado. Está com os olhos semifechados. Eu indago se é uma expressão de dor. Ele movimenta a cabeça positivamente. Eu o vejo desfocado. Um barulho de fundo infernal, que não identifico, acentua as dificuldades.

Digo-lhe que não o vejo centrado na tela e que percebo um barulho na transmissão. Ele confessa que, como sempre, está cheio de aparelhos: TV, rádio da empresa, tablet, celular, outro computador - tudo ligado. Comento que os aparelhos são seu refúgio. Indago se ele não pode estar só com um aparelho para trabalhar hoje, excepcionalmente.

- Assim não dá! E as flores? Onde a senhora está? - questiona Raul.

Indago:

- Que flores?

- As do jardim do consultório - ele responde.

Então lhe digo:

- O senhor estranha o consultório, nosso ambiente habitual. Quer saber se eu estou bem atenta. Claro que é muito diferente hoje de como nos encontramos habitualmente.

Conta-me que, indo ao médico no dia anterior, fez questão de encontrar Mário, o mendigo da rua. Ressalta que seu rosto é assustador. A metade do rosto é de pele puxada, esticada, branca, tentando dar forma a uma cara achatada. Nessa metade não tem olho. Na outra, a cor da pele é normal e tem um olho puxado.

Interpreto a vivência entre as sessões no consultório, quando nos olhamos, e a diferença com esta sessão achatada, sem o olhar presencial. Ele está incomodado. Pede para interromper a sessão. Promete estar no consultório, usando o colete cervical ortopédico, nos horários combinados.

Na sessão seguinte, ele entra devagar, sem os aparelhos, caminhando com dificuldade. Ao deitar no divã, moedas saem do bolso. Parece Cristo na cruz, com os braços cruzados sobre o peito. Ante o silêncio do isolamento, arrisco a lhe dizer:

- Tostões caindo. Perdendo dinheiro?!

Silêncio.

- A senhora é danada! - ele me devolve.

- Lá na construção do hospital, a prefeitura está querendo desapropriar o terreno porque é área reservada. Eu estava me informando na internet sobre essa história no centro da cidade enquanto conversáva-mos ontem. Se for assim, milhões perdidos!

Eu nada atinei sobre o conteúdo de sua busca na sessão virtual. Qual a construção ameaçada? Qual o investimento perdido? Qual a história a investigar? Sobre que terreno mental eu ofereço esta saída?

É verdade que eu não domino a técnica da psicanálise a distância. Também é possível apelar ao fato de que um paciente não neurótico, muito atuador, não seria indicado para esse tipo de tratamento. Mas destaco que, ao ver as moedas saindo de seu bolso, eu posso sonhar, intuir, conjeturar, conclamar a emergência do inconsciente e abrir caminhos.

 

Palavras a dizer

É preciso um acompanhamento detalhado destes tratamentos - com base empírica -que usam as novas tecnologias, por grupos psicanalíticos experientes e heterogêneos, para avaliar, em grande ângulo, estes processos. Antes desta reflexão, parece-me muito arriscado fazer uso delas para analisar futuros analistas.

Os working parties podem nos dar uma oportunidade de investigação de sessões presenciais e a distância com o mesmo par analítico, sem que o grupo nem o coordenador saibam da especificidade das sessões discutidas. Privilegiar o vértice científico com fidelidade aos fatos clínicos e à sustentação teórica que subjaz a essa experiência, para evitar o predomínio de critérios políticos, preconceituosos, ideológicos ou moralistas, é um dever ético da psicanálise. O fanatismo pode levantar bandeiras “a favor” ou “contra”, cegando o pensamento e a investigação.

Não se trata de apelar a uma ordem superegoica e dogmática, sem moral, construída por preconceitos, para escrever um código de prescrições e proibições, regras para modelar o fazer analítico. Mas a banalização técnica do método psicanalítico pode diluir os pilares de sustentação de nossa ciência. Por isto, é preciso discutir as consequências e implicações do uso das novas tecnologias na singularidade única de cada relação.

Através da formação das futuras gerações de analistas, é possível a transmissão de uma herança científica e ética a zelar, transformar e inovar sem perder os alicerces da psicanálise. A nossa mente suficientemente analisada é nossa ferramenta de trabalho na clínica. Portanto, importa que a análise do candidato, futuro analista, seja tão rigorosa e profunda quanto possível, sem os obstáculos que, a meu ver, a distância entre analista e analisando impõe mesmo no uso das novas tecnologias.

 

NOTAS

1 Considero que há um tipo de angústia que transita pelo diálogo analítico telefônico que não pode ser interpretada. [...] Neste sentido, a operatividade da interpretação telefônica tem características diferentes das interpretações próprias às sessões presenciais” (Lutenberg, 2010, p. 142).

2 O baluarte é definido pelo casal Baranger (1961) como um refúgio carregado de poderosas fantasias onipotentes.

3 Carlino (2012) comenta a possibilidade de tratar certos adolescentes, previamente diagnosticados, a distância. Não concordo com esta afirmação. Que adolescente, expert nestes recursos, os deixaria de usar para atuar, provocar, atacar, expressar a real superioridade etc. etc.?

4 Expressão de um paciente latente na sua análise.

5 Questiono o uso de rêverie para a relação entre o paciente e o analista, já que este conceito tem uma matriz corporal. No percurso da obra de Bion, em Cogitaciones (1992/1996), ele explicita o alcance do trabalho do sonho alfa do analista, que tem como fonte a matriz psíquica.

 

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Correspondência:
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo
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alicia.lisondo@uol.com.br

Recebido em 9.4.2014
Aceito em 10.10.2014

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