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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo jan./mar. 2015
EM PAUTA
Parcerias psicanalíticas com a tecnologia do víde(o)lhar no trabalho clínico: focando as relações em tempos de selfie
Psychoanalytic partnerships with video technology in clinical work: looking at relationships in times of selfie
Colaboraciones entre psicoanálisis y videotecnología en el trabajo clínico: enfocando las relaciones en tiempos de selfie
Mariângela Mendes de Almeida
Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), psicóloga e psicoterapeuta, MA pela Tavistock Clinic e University of East London, coordenadora do Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês, Setor Saúde Mental, Pediatria, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
RESUMO
Neste artigo, após tecer considerações iniciais sobre tecnologia e contemporaneidade e traçar um panorama do contato pessoal com o recurso da filmagem iluminando a relação pais-criança, a autora apresenta reflexões clínicas sobre o víde(o)lhar em sua utilização terapêutica, informada pela abordagem psicanalítica no trabalho vincular. Enfatiza a potencialidade do vídeo para aprofundar o olhar sobre a microscopia relacional, expandindo a função psicanalítica em situações de ensino, pesquisa e no contato clínico direto com pais e crianças.
Palavras-chave: psicanálise; tecnologia; função terapêutica dos recursos do vídeo; relações pais-crianças; clínica psicanalítica na contemporaneidade.
ABSTRACT
After making initial considerations on technology and contemporaneity, and providing an overview of her personal experience of filming parent-child relationship, the author presents, in this paper, her clinical thoughts on the therapeutic use of video technology, which is informed by the psychoanalytic early intervention approach. She emphasizes the potentiality of video recording in offering a deeper look into relational microscopy, expanding psychoanalytic use in teaching and researching situations, and in direct clinical contact with parents and children.
Keywords: psychoanalysis; technology; therapeutic function of video resources; parent-infant relationships; contemporary psychoanalytic clinical practice.
RESUMEN
En este trabajo, después de hacer algunas consideraciones iniciales sobre tecnología y contemporaneidad y dibujar una panorámica personal de contacto con el recurso de filmación iluminando la relación padresniños, la autora presenta reflexiones clínicas acerca de la videotecnología en su uso terapéutico, informado por el enfoque psicoanalítico vincular. Enfatiza el potencial del vídeo para profundizar la mirada a la microscopia relacional, ampliando la función psicoanalítica en situaciones de enseñanza, investigación y contacto clínico directo con padres y niños.
Palabras clave: psicoanálisis; tecnología; función terapéutica de los recursos de vídeo; relaciones padresniños; clínica psicoanalítica en la contemporaneidad.
Apresentação do roteiro: sequência de abertura
Nosso senso interno de harmonia psíquica se mostra intimamente ligado à sintonia e ao diálogo possível com as dissonâncias do que nos circunda e com o peculiar, mas também atemporal, que caracteriza a época em que vivemos. Queiramos ou não, prazerosamente desafiados ou desconfortáveis frente a novos apelos tecnológicos, não podemos negar que o mundo em que nascem nossos bebês hoje reveste-se de facetas diferentes daquelas a nós apresentadas quando iniciamos nosso percurso constitutivo.
As gerações de nossos avós, representantes da cultura anciã, tradição viva encarnada transmitida a nós desde bebês e através das gerações intermediárias, sem um tanto do embate direto dos confrontos necessários constitutivos da subjetividade, nasceram há 100 anos. Trouxeram, na experiência e na bagagem pessoal, a vivência da passagem do cinema mudo, silencioso, para a imagem em movimento também falado; das “fitas” para os filmes e grandes indústrias cinematográficas. Partindo do contato com o gramofone, o rádio, o aparelho televisor, viveram conosco o advento da televisão colorida, em salas povoadas por pelo menos três gerações em torno de eventos multinacionais de futebol, e podem ter chegado a testemunhar o aparecimento da tecnologia digital, diminuindo a necessidade de espaço de suporte físico para realocar a experiência a ser transmitida em finíssima tela de plasma, em um pequeno espaço nanotecnológico ou mesmo nas nuvens do contato virtual. Eles, como nós, viveram as agruras de, num espaço único de existência, deparar-se com as demandas do novo e com a necessidade de integrar novas referências, convivendo com descendentes e gerações mais novas seguindo ao mesmo tempo suas tradições e produzindo novos idiomas e novas traduções.
Reminiscência cultivada com a intensidade de memória afetiva, tenho o filme registrado em mente de, antes dos 5 anos, sentarmos, irmãos e amigos pequenos, em volta de um gravador de rolo, apetrecho enorme e novidade na época, trazido de fora por nosso avô, para gravarmos e ouvirmos as gravações que fazíamos. A diversão maior era ouvir o engraçado e inusitado de nossas vozes na transformação pela “máquina”, os vários tons, timbres e frequências já na diversidade do grupo. A diversão era garantida pelas interações infantis, mas a presença do adulto-pai-manejador da tecnologia, apresentador das habilidades do microfone e dos botões reguladores de intensidade, compartilhante dos momentos de descoberta e graça, completava a cena. Fotos, slides e projeções de filmes caseiros de cotidianos familiares e aventuras a serem compartilhadas também podem ter permeado momentos de interessantes encontros de subjetividades para muitos de nossa geração em nosso meio.
O que estranhamos então quando vemos nossos bebês e crianças manejando agilmente celulares e telas em imagens rápidas, mutantes ao simples tocar dos dedos? Ou quando vemos um garoto de 8 anos falar, gesticulando cenas naturais de matar, morrer, maltratar, atacar, com um brilho de realidade nos olhos e gestos carregados pelo intenso prazer da descarga do imediato toque do botão? Não está aí a qualidade de um faz de conta como nas perenes, velhas conhecidas, histórias infantis e seus derivados (e também já tachadas de “cruéis”) nem a polimorfia característica das fantasias primitivas arcaicas presentes no psiquismo. Estranhamos a escolha destes padrões de ação evacuatória para resolver conflitos e acabar com o assunto, e aí voltar a viver, com as inúmeras vidas descartáveis disponíveis em video games, voltando a fazer o mesmo, sem nenhum lampejo de envolvimento afetivo, empatia ou consequências interpessoais de qualquer ordem psíquica ou internalização emocional. Estranhamos os caminhos que estão sendo trilhados, inclusive com a possibilidade de contribuir para o entalhe das marcas e registros neurais na constituição do indivíduo em formação. A neonatologista Iole Cunha (2001) alude muito bem a estas interfaces da experiência com a constituição neurocerebral ao colocar que “as emoções esculpem o cérebro”. O que estranhamos também é principalmente a solidão, a falta de atenção compartilhada e mediação pelo humano do que pode ser, sim, muito interessante olhar junto, como qualquer inovação que se apresente, numa relação triangular.
Irmão contemporâneo da psicanálise, que trazia inovações ao falar a uma sociedade vitoriana recatada sobre sexualidade infantil e aspectos inconscientes, o cinema também se mostrou inicialmente assustador ao projetar imagens, realocando inusitadas realidades: os primeiros espectadores reagiam ao ineditismo da experiência se assustando com cenas cotidianas fílmadas por pioneiros do cinema, como trens chegando à estação vindo na direção do público “pela tela”. Contador de histórias em feixes de luz, o cinema se aproxima de nossa prática psicanalítica de iluminar oniricamente, em atividade conjunta de cocriação, cenas capturadas do cotidiano dito real ou em fantasia. O interlocutor, tanto quanto o contador, se faz também “criante” em sua recepção e transformação interna. Conversaremos aqui, como num roteiro fílmico, de possíveis utilizações terapêuticas da videotecnologia que eu chamei, desde trabalho anterior, de víde(o) lhar (Mendes de Almeida, 2007),1 principalmente no trabalho com crianças e pais, área em que tenho desenvolvido atividades clínicas, de ensino e pesquisa.
Corta!
Panorâmica de experiências com o víde(o)lhar em retrospectiva: 30 quadros por segundo
Ao buscar referências internas para o interesse pela utilização terapêutica de registros em imagem, revisito várias sequências e planos em flashback. Em tempos de formação londrina, entre 1988 e 1993, encontro documentários do casal Robertson (1952), ressoando junto ao trabalho de J. Bowlby, divulgando o impacto das separações entre adultos e crianças diante de breves episódios como nascimento de irmãos, hospitalizações e grandes intempéries sociais como a guerra. Vindos do outro lado do mundo, encontro também neste período os trabalhos americanos de Margareth Mahler, demonstrando, em sequências filmadas de poderosa naturalidade e intensidade, os processos emocionais da criança na relação com o adulto significativo, em seus vários passos em direção à possibilidade de separação e individuação. Tocantes imagens de hospitalismo e de progressão de estados de interrupção de demanda afetiva em situação de carência extrema, ligadas ao trabalho de René Spitz, completam o quadro. Em planos complementares e superpostos, visualizo também trabalhos em psicologia do desenvolvimento, filmagens da Situação Estranha (Ainsworth, 1969), que serviu de fundamento para os vários estudos e reflexões importantes sobre o apego infantil, e da investigação com Still Face (Tronick et al., 1978), que até hoje surpreende os clínicos que trabalham com bebês, ao mostrar as maneiras pelas quais bebês reagem a uma diminuição de vitalidade na face materna.
Percebo que os filmes e vídeos, imagens em lembrança, se converteram em suportes aglutinadores de informações vindas de vários canais sensoriais e experiências, de leituras, aprendizado em aulas, supervisões, discussões clínicas, contatos com pacientes. A imagem tem a qualidade onírica do sonho de condensar elementos dizíveis e indizíveis em discurso literato, permitindo assim uma experiência de transmodalidade, em que se integram os vários canais sensoriais (Stern, 1992). Ainda em Londres, vinhetas filmadas de observação de bebês, no final dos anos 80, serviram de base para polêmicas discussões em conferência acerca de diferentes “modos de ver”. Os elementos visuais e sonoros filmados e as reações dos participantes ao apresentado colocam-nos em área próxima ao elemento contratransferencial que nos é tão caro, com a possibilidade de convergir focos e examinar diferenças. Na época, alguns psicoterapeutas infantis na Tavistock Clinic iniciavam a prática de filmagem em situação clínica, principalmente de casos com transtornos graves, para enriquecer as práticas de investigação terapêutica, discussões técnicas e propósitos de pesquisa.
Nos idos das primeiras videoconferências já aqui em São Paulo, vindas de experiências londrinas com treino em observação de bebês, modelo Tavistock-Esther Bick, Magaly Marconato Callia e eu nos juntamos à oportunidade de contato com o outro lado do canal, por intermédio de Maria Cecília Pereira da Silva, em curso com o Grupo de Serge Lebovici. Em contatos a distância para discutir material clínico, grupos de diferentes lugares do mundo filmavam suas intervenções e as compartilhavam em imagens e comentários. Atendemos em trio (dois coterapeutas e um câmera-observador) uma família com uma garotinha com dificuldade de sono, atendimento que compartilhamos naquela época com grupos de outras Américas e outros centros europeus - ocasião em que, experimentando pela primeira vez a função de câmera-observadora em sessão, batizei a filmagem de víde(o)lhar. Inicio a próxima cena falando desse trabalho, levantando algumas reflexões sobre essa situação peculiar da consulta terapêutica filmada com pais e bebês.
Corta!
CENA 1
Câmera subjetiva em Mira e o seio materno: zoom na clínica e plano geral do víde(o)lhar
Mira é uma garotinha de 1 ano que, segundo contam seus pais, não consegue dormir e chora muito durante a noite. Como câmera em víde(o)lhar, em pós-reflexão sobre o caso e sobre a experiência de filmagem, recorto aqui algumas sequências.
Num segmento da primeira consulta, vemos como a mãe responde à inquietude de Mira com uma atitude de saber inquestionável, com pouco espaço para investigação quanto ao que a bebê necessita. Mira se aproxima da mãe, solicita sua atenção, tateando e se apoiando na perna da mãe, emitindo vocalizações. A conclusão vem rapidamente: “Ela quer mamar!”, diz a mãe, dirigindo-se, ela e a filha, para a presumida possibilidade de atenuação de angústia mais conhecida e garantida. Tenta-se a mamadeira, que rapidamente, quase a priori, é retirada, com a mãe dizendo: “Ela não quer!” (estando implícito: quer só o seio mesmo!). Passa-se então imediatamente ao seio, recriando-se neste momento a relação mãe-bebê, ou melhor , seio-bebê, sentida como única, insubstituível, sobre a qual eu também me debruço em zoom.
Estou em uma mesa numa extremidade da sala, mas percebo que minha mente, por meio da câmera, passeia pela sala, acompanhando os vários movimentos dos participantes. Os recursos mobilizados na tecnologia, por exemplo o zoom, acompanham meus recursos em funcionamento mental, dando forma e caminho a movimentos internos e impactos contratransferenciais. Penso na hora: “Não quero cortar a cabeça (da mãe)", mas meu quadro oscila entre um plano mais aberto ou mais fechado. Transito no campo do conteúdo transferencial da imagem que está sendo comunicada a mim pelo contexto da consulta e que quero comunicar na imagem filmada. Minha sintonia e escolha de objeto oscila entre um objeto parcial, seio/bebê, e a tentativa de busca de um objeto total, incluindo a expressão facial da mãe e as mínimas manifestações cinestésicas da bebê.
Passam partes de pessoas em frente à câmera... Terapeuta... Irmã ajudando na busca da mamadeira... Um contorno fragmentado agita-se em função da cena principal. Sem hesitar, filmo a mamada... Perco o contexto... Perco os outros na sala, excluo-os da mesma maneira que essa bebê e essa mãe se bastam e talvez não permitam mesmo, nesse momento, outras participações, alternativas intermediárias, ou algum rudimento de transicionalidade.
Num outro trecho já da primeira consulta, acompanhamos claramente a tentativa de aconchego para dormir da bebê, com a almofada no meio do espaço da sala, e seu esforço em tentar realizar algo que é dito como não podendo acontecer. A bebê mostra intenção e crença em recursos próprios para conseguir se ninar, apoiada pelo setting terapêutico e por uma possível consciência de que é disso mesmo que todos estão falando ali - essa é uma de suas formas de participar do assunto. A possibilidade de salientar essa imagem do bebê observável para os pais, na hora em que ocorre na sessão, se essa percepção nos surge, ou mesmo a posteriori, com o auxílio da revisão do material filmado no vídeo, é uma das grandes ferramentas psicanalíticas do trabalho de intervenção com pais e bebês. Está diante de nossos olhos uma Mira que procura objetos transicio-nais, que quer e parece poder dormir num espaço em que suas aflições e seu choro podem ser acolhidos, tolerados e consolados pelas competências parentais, que ali estão sendo fortalecidas.
Na terceira consulta, estamos todos mobilizados pelo choro emocionado da mãe ao se lembrar do impacto de outros choros em seu histórico familiar, sinalizando desespero, desamparo, abandono e extrema dependência e vulnerabilidade. A ela dirigimos nossos olhares, nosso silêncio empático e nossa continência. Um rápido e tímido movimento do pai de acariciar a cabeça de Mira é captado pela câmera, disponível ao plano geral. Essa percepção a partir do filme mobiliza as terapeutas a, em sessão posterior, realçar esta competência no pai. Uma maior aproximação paterna no cuidado da bebê se confirma no cotidiano da família, e parece revelar a possibilidade de desenvolvimento de sua função também no suporte aos processos emocionais regressivos vividos por sua esposa com a maternidade, disponibilidade não tão presente anteriormente.
Na quarta consulta, uma ilusão ótica me leva novamente a pensar nos movimentos transferenciais e contratransferenciais durante minha observação e registro fílmico. O pai segura e roda uma pequena bola macia, diante de si, o que cria em mim a impressão intrigante de um espaço esférico pelo qual parece que é possível ver através do filme. O movimento da bola cria em mim, naquele momento em que se fala de aumento de capacidade dos pais de se observarem, a impressão de um espaço tridimensional, talvez relacionada à percepção de uma expansão de espaços internos nos membros da família.
Ao revermos em sequência todas as consultas filmadas, detalhes recorrentes que poderiam passar como secundários na atmosfera de cada consulta em si podem também adquirir importância numa análise estrutural do conjunto de interações. Desta forma, nos chama a atenção que essa bolinha macia, disponível no material lúdico, está presente na cena interativa desta família o tempo todo. No início, a bolinha é manipulada principalmente pelo pai; no decorrer das consultas, vai sendo um objeto lúdico intermediário entre o pai e a bebê, ou uma maneira de o pai complementar/“triangular” a relação mãe-bebê, passando a bolinha para a bebê enquanto ela está no colo da mãe. A bebê também passa a utilizar a bolinha para transitar alternadamente na busca de interação tanto com o pai quanto com a mãe.
Ao final das consultas, ocorre uma brincadeira, iniciada pela mãe, sobre o pai querer levar a bolinha para casa. O pai nos falara de seus medos de ficar sozinho, desde criança. Associa seus medos a ouvir e se assustar com um barulho recorrente de uma bola de boliche rolando ruidosamente no chão. Ao sair das consultas, manifesta vontade e capacidade de conviver com objetos internos mais “macios” e “maleáveis”. Poderíamos pensar numa analogia entre objetos internos terroríficos, “duros” e “pesados”, que o ameaçam, e que podem, com a intervenção do trabalho terapêutico, começar a ser substituídos por objetos mais leves, com maior chance de trânsito e mobilidade?
O registro fílmico, sua oferta em tela “projetável” e suas possibilidades de utilização e microanálise se mostram de muito benefício no trabalho com intervenções nas relações iniciais pais-bebês e intervenções vinculares mesmo com crianças mais velhas. O fato de o vídeo produzir um registro que pode ser visto, revisto, visto conjuntamente , compartilhado, analisado minuciosamente faz dele um instrumento potencial e sugestivo de elaboração mental.
Como o filmar incide sobre a dinâmica dos atendimentos? Que particularidades traz? Nossa experiência com o atendimento de Mira nos fez indagar: é possível que nosso papel de “observadores partici-pantes”/terapeutas, e observadora com a câmera (a princípio, representante pura da simples função de observar e registrar), tenha contribuído para um processo de instauração de outras instâncias de entendimento e acolhimento de angústias que não a única praticada no vínculo mãe-bebê naquele momento (caracterizada por crenças do tipo “Só a mamada resolve”; a exclusão dos outros garante o vínculo... simbiótico; a bebê não consegue se ninar; “Ela não quer que você toque nela!” [mãe para o pai, enquanto Mira mama])?
Haveria neste trabalho a possibilidade de a câmera estar se aliando, na parceria com os terapeutas, a um modelo de triangulação possível (representando o poder pensar sobre algo que se registra e se olha, ou ainda poder pensar sobre um foco terceiro que dois interlocutores olham), que pode ser gradualmente metabolizado, incorporado e estendido para outros momentos de convivência da família? O fato de os pais comentarem ao final que se sentiam mais atentos a si mesmos e aos outros na família, que reparavam e comentavam coisas entre eles nunca faladas ou observadas antes, nos faz pensar que algo agiu neste sentido. É possível que tenha sido significativo para a família ter, através da filmagem e da utilização científica do material explicitada a eles, a possibilidade de se sentir cuidada por muitos olhares. O pai, por exemplo, que sempre cuidara de muitos e que temia a solidão, conosco e com o nosso vídeo nunca estaria sozinho. A diferença é que o estar com muitos seria para pensar sobre os espaços internos, e não para esquivar-se deles. Consideramos também a função de continência que a câmera (como representante do olhar reflexivo do observador) pode exercer em relação às terapeutas, formando entre nós uma aliança terapêutica através de contato pelo olhar e busca de um espaço de registro, de reter e conter conteúdos para poder pensar juntas sobre eles.
A câmera é, com frequência, nos settings terapêuticos, associada à intrusividade e evocação de aspectos paranoides, suscitando desafios e cautela quanto a nossos compromissos com o sigilo profissional e cuidados éticos. Faz-se importantíssimo seguir os preceitos de livre escolha, autorização formal e informação sobre a utilização para fins profissionais ligados ao próprio atendimento ou de estudo, ensino e pesquisa.
Em nossa prática de filmagem, costumamos disponibilizar aos pais uma cópia de nosso material em vídeo. A satisfação geralmente demonstrada por eles com essa possibilidade nos leva a pensar num interesse crescente, estimulado pelo trabalho terapêutico, a se ver, rever, conversar sobre suas imagens, suas edições e reedições, apropriar-se da matriz e criar novas montagens mentais. No caso de Mira e seus pais, abriu-se espaço para a transicionalidade, poder sonhar... sem medo dos barulhos internos... e deixar Mira dormir.
Corta!
CENA 2
Observando a observação: o olhar do observado, conjecturas sobre o subjetivo de quem é filmado
A experiência em observação de bebês, metodologia iniciada por Esther Bick na Tavistock Clinic em 1946, tem se mostrado valorosa na formação de psicoterapeutas e psicanalistas infantis em várias partes do mundo. O interesse por esta metodologia para ampliar o contato com relações humanas comuns de cuidado em seus estados iniciais, primitivos, e o potencial para desenvolver recursos internos de continência mobilizou há alguns anos a filmagem e montagem em vídeo de experiências de observação psicanalítica de um bebê e de uma criança pequena durante um ano, mostrando também o processo de impacto emocional no observador, registro interno e externo e aprendizagem em grupo a partir do material observado, para distribuição e divulgação pela BBC em rede nacional (Rustin, Miller & Miller, 2002; Miller & Klauber, 2006).
O garotinho de 2 anos filmado em sua experiência de ser observado nos oferece a possibilidade de tecer conjecturas a partir do olhar do observado, da subjetividade de quem é filmado, complementando o quadro iniciado anteriormente com a câmera subjetiva de quem filma e observa pelo víde(o)lhar.
O garoto se faz acompanhar, ao longo da observação, de uma máquina fotográfica de brinquedo, que ele dirige também ao que o circunda, “registrando”, em seu olhar e espaço interno, pessoas e situações, incluindo a observadora. Parece denotar, com isso, certa noção da função de registro e observação do que se passa ali naquela relação. Ao final, claramente agitado e ansioso pela iminência da finalização do contato com a presença receptiva e contínua da observadora, o garoto, desconsolado, lhe traz a câmera, dizendo: “Está sem pilha!”, “Não tem pilha... ”, marcando assim um possível desapontamento diante da finalização desta experiência. Há um fluxo simbólico em direção ao reconhecimento da máquina como um objeto continente de uma relação em que ele é olhado, cuidado por um olhar observador. Ao mesmo tempo, seus sentimentos em relação ao término do vínculo são exprimidos na percepção da falta de pilha para a máquina, na expressão facial e gestual de triste contrariedade e atribuição de desvitalização ao instrumento que precisa ser recarregado. É interessante a vivência de um limiar simbólico em quase ruptura: a máquina nem pode fotografar em faz de conta no momento do “microtrauma” da separação. Há indicação de um “machucado”, de uma sensação de falta, de um reconhecimento depressivo de perda, cuja expressão é facilitada pela relação de disponibilidade da observadora.
Na mesma linha, aqui em nosso território, um comentário espirituoso de um ex-bebê observado já crescido, que se percebe como alguém observador, conectando tal capacidade à experiência de ter sido observado, nos faz pensar nas ressonâncias deste atento e diferenciado olhar.
Corta!
CENA 3
O filmar como propiciador de novos olhares: pequenos curtas-metragens
Na linha das memórias retrospectivas, em intercâmbio de nossa experiência com os atendimentos de bebês (conferência Pathways for Change, Tavistock Clinic, 2004), acompanhamos também a apresentação de um trabalho em que a filmagem realizada pela terapeuta permitia à mãe se ver em contato com o seu bebê de maneira dificilmente tolerada sem a presença desse filtro. O víde(o)lhar da terapeuta funcionava como um elemento desintoxicador das projeções da mãe sobre o bebê, cuja vulnerabilidade e dependência eram associadas à experiência de sofrimento da mãe com seu irmão deficiente, inundando a relação mãe-filho de dor e necessidade de proteção pelo distanciamento. Promove-se assim um reconhecimento diferente de si e do outro, em que o vídeo aparece como espaço transicional, permitindo uma visão tolerável de si, desintoxicada de distorções projetivas.
Em situações de intervenção na relação pais-bebês em que se propõe a filmagem, vivenciamos também situações em que um dos pais se oferece para filmar algumas sequências; a partir do olhar da câmera, em sua função renovada pelo campo de continência e rede terapêutica, pode-se agregar novas perspectivas aos olhares por vezes cristalizados e tendendo a possíveis desvitalizações. Assim, o olhar vivo e o interesse de um pai na sessão, seguindo de perto em víde(o)lhar o brincar de uma criança com autismo marcante, se surpreendem com o retorno de olhares e pequeno sorriso do garotinho, sinalizando e buscando uma abertura em seu constante fechamento e autossuficiência. Nestes casos, a câmera pode funcionar como “um intensificador e valorizador do olhar”, convocando para um lugar próximo da relação inicial pais-bebê em função ativa de registro como um caminho para redirigir seu investimento subjetivante a partir de revigorado olhar parental (Silva, Mendes de Almeida & Barros, 2011).
Corta!
CENA 4
Poder se olhar na triangularidade: selecionando fatos na abordagem videointerativa
Recém-chegada de um período de atualização em supervisões psicanalíticas em clínica e pesquisa, bem como de um curso em Video Interaction Guidance (Kennedy, 2011), renovo o interesse pelas possibilidades da investigação em microscopia que tanto praticamos a olho (não tão) nu. O treino em observação psicanalítica já nos inicia na percepção de detalhes e captação de redes de sentidos e fatos selecionados, expressos na corporeidade e nas minúcias das interações relacionais.
Alinhada a essa maneira de abordar o fato clínico, mas enfatizando mais o desenvolvimento das competências parentais para momentos de encontro pais-criança do que o mergulho em conflitos subjacentes, a metodologia VIG é uma abordagem desenvolvida a partir das noções de intersubjetividade e de sintonia afetiva, tão preciosas e divulgadas por Colwyn Trevarthen e Daniel Stern, pesquisadores em psicologia do desenvolvimento, informados por noções psicanalíticas. Trechos de sessão são filmados e, posteriormente, pequenas vinhetas ou até mesmo cenas congeladas são selecionadas, capturando-se momentos de exceção em que se verificam competências a amplificar. Tais vinhetas são mostradas aos pais (e eventualmente também às crianças), convidando-se o olhar dos representados a compartilhar impressões como principais agentes. Aqui também o registro visual e sonoro em vídeo se coloca como elo focal da atenção compartilhada, encontro de mentes pensantes debruçadas sobre um terceiro espaço comum em coconstrução. A tela do computador com as imagens selecionadas se coloca como vértice do espaço triangular multidimensional, abrigando observações, surpresas, descobertas dos pacientes em incipiente relação, reconhecimentos de rudimentares competências ainda em formação disponíveis à amplificação, possibilidades encobertas por entraves imaginários e fantasmáticos, mas vivas e inegáveis nas possíveis repetições das vinhetas selecionadas no vídeo.
Corta!
CENA 5
Em defesa de uma certa microscopía
A atenção minuciosa a detalhes relacionais é uma capacitação importante no treinamento em observação de bebês e bastante significativa no trabalho de intervenção junto aos vínculos, na medida em que nos permite presentificar e clarificar de maneira viva junto com os pais, no contexto de sua relação observável com o bebê, a manifestação de suas angústias primitivas pregressas, mandatos transgeracionais e expectativas narcísicas, levando-se também em conta os aspectos constitutivos do bebê e suas possíveis capacidades de resiliência. Com o recurso do registro em vídeo, tal possibilidade é ainda mais potencializada; detalhes diluídos no contexto podem, quando são redescobertos e revistos no filme, apontar dinâmicas emocionais subjacentes, nem sempre de pronto expressáveis em nível consciente no discurso falado.
As transmissões subjetivas, conforme sugere Daniel Stern (1997), não acontecem no éter: desenrolam-se nas interações e podem ser observadas por nosso olhar atento dirigido aos detalhes dos movimentos relacionais. São assim transmitidas ao bebê pela constância de suas manifestações e apresentação ou não de alternativas para flexibilidade e plasticidade ou tendências à cristalização com o oferecimento de vias únicas de expressão.
Nas intervenções terapêuticas conjuntas com pais e bebês/crianças, temos a oportunidade de presenciar o desenrolar ao vivo dessas transmissões, expressas no cenário das janelas clínicas (Stern, 1997), correspondentes ao momento do desenvolvimento da criança e da família. É justamente aí que vão incidir nossas intervenções, para que já nas relações bem iniciais se iluminem aspectos de potencial cristalização e risco para o desenvolvimento emocional, visando-se favorecer o livre desempenho das funções parentais e a promoção da saúde da criança e da família.
Tal como nossas intervenções verbais, posturais e interativas quando expressamente convidadas pelo infantil nas crianças e nos pais com os quais trabalhamos, a filmagem e suas edições podem também oscilar entre planos gerais e planos mais recortados sobre determinadas interações, tentando alinhavar movimentos significativos constitutivos das redes de sentido que emergem no encontro. O vídeo (além de facilitar a discussão deste tipo de trabalho) tem a função de se converter em instrumento de expansão do olhar psicanalítico em situações de aprofundamento profissional e reverberação no próprio atendimento. Pode também ser utilizado diretamente como material terapêutico, posteriormente compartilhável, ao ser assistido e comentado conjuntamente em sessão, como ocorre em trabalho junto ao Grupo de Pais e Bebês do Núcleo de Atendimento a esses pacientes em Saúde Mental no Departamento de Pediatria da Unifesp.
A partir da exposição de material filmado, detalhado também por escrito, temos buscado, em oficinas e apresentações de trabalho, amplificar a compreensão das interações lúdicas e verbais entre pais, crianças e terapeutas em contexto vincular ou grupal. A partir da apresentação do vídeo, que pode também ser visto, revisto, visto ao mesmo tempo por muitos olhares, congelado em cenas, somos mobilizados a perceber e refletir sobre detalhes sutis das interações, alinhavadas a partir do olhar psicanalítico relacional, no momento da realização do atendimento e nas reverberações possíveis a cada vez que o filme é revisto e discutido sob novos ângulos e por subjetividades em nova interação.
A comunidade psicanalítica internacional, latino-americana e nacional vive um momento de discussão de pesquisa clínica a partir de nossas especificidades, de como formulamos nossas intervenções, que teorias explícitas ou implícitas estão presentes em nossas trocas intersubjetivas com nossos pacientes, campo merecedor de inúmeros grupos de trabalho e atividades cruzadas em rede entre várias sociedades psicanalíticas, principalmente na psicanálise de adultos com quadros neuróticos. Parece-nos importante contribuir para o debate das peculiaridades das intervenções psicanalíticas no caso de crianças, das intervenções vinculares, da mesma forma como se faz importante pensar sobre tais questões nas análises de condições fronteiriças ou de estados primitivos da mente.
Precisaremos abrir espaço para incluir em nossas sistematizações uma ampla gama de contribuições possíveis, como: intervenções não verbais; ações interpretativas; oferecimento de continência a partir de comunicações posturais; modulação de entonações (paralelos da prosódia das comunicações iniciais pais-bebê); comunicações ainda a serem mais exploradas e investigadas na área das comunicações inconscientes, dos enactments como colocações em cena que abrem caminho para a manifestação de aspectos ainda não representáveis; compreensões em redes de sentido de expansão polissêmica e transversais quanto à integração de níveis diversos de funcionamento; hipóteses compartilhadas como apreensões e gestação de significados construídos nos espaços-útero da intersubjetividade, a partir do acesso metaforizante produzido por nossa função sonhante através da empatia e sintonia de afeto. Tais discussões podem ser bastante enriquecidas pelo registro em vídeo, como instrumento complementar ao registro escrito e mnemônico.
O crescente interesse em torno do desenvolvimento inicial da criança e dos riscos de desenvolvimento atípico tem desafiado profissionais, famílias e membros da comunidade em vista de um aparente crescimento dos transtornos do espectro do autismo. Estaríamos testemunhando um cuidado importante a partir de pesquisa e avanços contemporâneos nos estudos do desenvolvimento e investigações sobre os bebês e seus vínculos, gerando intervenções oportunas, ou uma “falsa epidemia”, gerando alarme e detecção automática de condutas “de risco”?
A apresentação do registro filmado permite rica discussão desses detalhes e se converte em interessante instrumento para aprofundamento da observação e dos recursos clínicos potencialmente terapêuticos no contexto do trabalho vincular ou grupal com pais e bebês/crianças pequenas. Nas discussões evocadas pelo material filmado, muitas vezes se visualizam aspectos sugestivos de vias ambivalentes de desenvolvimento possível, e se enfatizam aspectos relacionados a limiares tênues do desenvolvimento psíquico. A intervenção vincular psicanalítica se oferece como fortalecedora dos aspectos saudáveis e resilientes de crianças em potencial risco (ou diagnosticadas como tal), ao mesmo tempo que crianças em condições mais vulneráveis, mas que muitas vezes não preocupam tanto por apresentarem sinais de risco silenciosos (Crespin, 2004), podem receber amplificadoras ressonâncias que autorizam as preocupações e dúvidas parentais sobre o efetivo risco no desenvolvimento da intersubjetividade.
O material filmado, acompanhado do registro escrito, é usualmente dividido em vinhetas menores (em torno de cinco a oito minutos) e discutido a partir da integração entre as impressões dos participantes e contribuições das apresentadoras/terapeutas acerca dos dispositivos clínicos utilizados neste tipo de trabalho e enquadre. A apresentação de vinhetas filmadas, seja nas reuniões de equipe, como acontece com o grupo da Clínica 0 a 3, do Centro Clínico da SBPSP, e no Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês da Unifesp, seja em nosso compartilhar de trabalhos em eventos científicos, tem se mostrado uma tela de possibilidades de troca e triangulações em atenção compartilhada. Cria-se também um espaço para a divulgação da prática psicanalítica de pensar a partir da experiência emocional em seus vários níveis de complexidade e diversidade.
Corta!
Sequência final: contemporaneidade nas telas da mente
Sugeri no início deste artigo que nosso senso de harmonia interno advém da sintonia com as dissonâncias que nos circundam e com o peculiar, mas também atemporal, universal, do momento em que vivemos. Em tempos de selfies, de apelos à prevalência da sensorialidade autocentrada, olhar para as relações e poder tecê-las, brincá-las, sonhá-las desde sua sutil microscopia faz valer o potencial amplificador da tecnologia e da psicanálise com pais e crianças para realçar ligações e vínculos, essência em todos os tempos do que nos faz crescer humanos. Inovações da contemporaneidade não se reduzem a técnicas em si, e sim entrelaçam os novos desenvolvimentos com o que se mantém de essencial nessa complexa natureza, em que “as luzes, a câmera e a ação” ainda se voltam para o compartilhamento, mais do que para a reclusão.
Corta!
NOTAS
1 Trabalho apresentado no evento O viver criativo com o olhar de D. W. Winnicott, realizado na Universidade de São Paulo em outubro de 1999.
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Correspondência:
Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 628
04512-051 São Paulo, SP
mamendesa@hotmail.com
Recebido em 10.3.2015
Aceito em 24.03.2015