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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.50 no.4 São Paulo Sept./Dec. 2016
DIÁLOGO
De boca fechada: comunicação além das palavras1
Keeping the mouth shut: communication beyond words
En silencio: comunicación más allá de las palabras
Jeanne MagagnaI; Tradução Tania Mara Zalcberg
IPsicoterapeuta de crianças, adultos e famílias, em Londres
RESUMO
Temos nos preocupado com a criança que não fala tentando colocar palavras em sua boca. Mas quanto mais as forçamos, mais firmemente suas bocas podem se fechar. Às vezes, nos colocamos em posição de ensinar a criança a falar. Por fim, reconhecemos que uma relação não se refere a palavras; trata-se do desejo de alcançar o outro, oferecer-se ao outro, para encontrar algum sentido em conjunto, para compreender quais são os obstáculos à formação de um bom relacionamento com os outros. As palavras da criança podem ser úteis em uma terapia, mas elas não são o ingrediente essencial. Este texto vai examinar as defesas autísticas em crianças com dificuldades alimentares, mantendo o foco na comunicação além das palavras.
Palavras-chave: onipotência primitiva; regressão; rejeição; trabalho parental; aflição.
ABSTRACT
We have worried about non-speaking children, and we have tried to put words in their mouths. However, the more we force them to speak, the more tightly closed their mouths may become. Sometimes we put ourselves in the position of teaching the child to speak. We finally realize a relationship is not a question of words; it is a one's wish to reach out to the other, to offer oneself to another, and to find some meaning together in order to understand what are the barriers to forming a good rapport with others. The child's words may be useful in the therapy (as well as talking to the child), but they may not be the essential ingredient. By focusing on communication beyond words, this paper will examine autistic defenses in children with feeding problems.
Keywords: primitive omnipotence; regression; rejection; parental work; angst; affliction.
RESUMEN
Nos hemos preocupado con el niño que no habla intentando poner palabras en su boca. Pero mientras más lo obligamos, más fuertemente se calla. A veces nos colocamos en una posición de enseñar al niño a hablar. Finalmente reconocemos que una relación no se refiere a palabras, se trata del deseo de alcanzar al otro, ofrecerse para encontrar algún sentido en conjunto, para comprender cuáles son los obstáculos para la formación de una buena relación con los otros. Las palabras del niño pueden ser útiles en una terapia, pero no son el ingrediente esencial. Este texto examinará las defensas autísticas en niños con dificultades alimenticias, manteniendo el foco en la comunicación más allá de las palabras.
Palabras clave: omnipotencia primitiva; regresión; rechazo; trabajo de los padres; aflicción.
Introdução
A boca e a ponte entre a experiencia interna e o mundo externo representado pela mãe, e e de natureza sensorial. David Rosenfeld (2012, p. 4) sugere que sugar o seio e a primeira comunicação do bebe com a mãe, e essa comunicação só será útil se a mãe a receber e compreender. Quando o vínculo com a mãe se rompe, a ponte para ela, a boca, deixa de se abrir para a saída de sons, gritos ou palavras que a aproximem da mãe (Rhode, 1997, p. 17). Descreverei aqui aspectos do início do primeiro ano de vida e mostrarei como as experiências infantis se revelam no teatro da boca (Meltzer, 1986). E examinarei quatro apresentações da boca, a saber: a boca que definha, quando desiste, a boca dura, que luta por controle, a boca aberta, à espera da mãe em extrema sintonia, e a boca aterrorizada.
Acredito que, como pessoas que trabalham com crianças não falantes, podemos nos sentir impotentes e então passarmos a tentar extrair palavras da criança, tentar chamar a atenção dela, tentar ensinar palavras como metodo de comunicação. Meu enfoque e diferente. Sinto que devemos abordar todas as formas de comunicação alem das palavras, ao mesmo tempo que incentivo o diálogo entre todos os aspectos do self do terapeuta e a criança. Terminarei examinando os passos que os pais precisam dar para apoiar totalmente seu filho, refletindo sobre sua própria criança interna e trabalhando em parceria para criar o apoio de um berço de cuidado em torno da criança.
No início
Um bebê e concebido, e no útero a personalidade do bebê começa a se revelar. Há bastante compatibilidade entre a personalidade do bebê observada no útero e a personalidade do recém-nascido (Piontelli, 1992).
Nós esperamos que o bebê nasça, olhe nos olhos da mãe, se vire procurando a voz familiar do pai que diz: “Olá!” O bebê espera que ali estejam pais que o alimentem, nutram e protejam emocionalmente. Nos primeiros minutos, o bebê já e tão perceptivo que um pai, muito animado ao cumprimentar seu bebê nascido poucos minutos antes, esticou a língua para fora e, após um breve instante, o bebê por sua vez esticou a sua língua para fora, copiando o gesto facial do pai.
O bebê tem um repertório para sinalizar aos futuros pais: ele chora quando está perturbado, com fome, bravo, com dor ou quer a atenção de um dos genitores, ou estende seus braços, balança-os para pedir a presença de um genitor. Isso geralmente é acompanhado por um espernear.
Por meio da união do casal, cria-se um berço emocional de apoio e cuidado para o bebê. Pode haver um entrelaçamento complexo nessa base dependendo da personalidade de cada um dos genitores e de suas identificações com seus próprios pais internalizados. Peter Fonagy e Mary Target (1997) sugeriram que a natureza da relação de apego do bebê a cada figura parental pode ser significativamente diferente. O apego seguro do bebê ao genitor se relaciona com a capacidade de o cuidador receber os sentimentos intoleráveis da criança e de modulá-los por meio da continência descrita por Bion. Se um dos pais se defende e o outro responde à criança, a criança interiorizará um apego inseguro que interferirá no desenvolvimento mental e um apego seguro que promoverá a capacidade de mentalização da criança. Portanto, não é possível nos atermos apenas à afirmação de Winnicott de que não existe bebê sem mãe. Essa é uma representação inexata e inadequada que interfere no modo como ajudamos uma criança a se desenvolver. Na verdade: não há bebê sem mãe e sem pai! A capacidade de continência do pai ajuda ou interfere no desenvolvimento psicológico do bebê.
Bem como a personalidade do bebê que já se desenvolve in utero (Piontelli, 1989), diferentes fatores transgeracionais inconscientes afetam a parentalidade dos pais de uma criança, como sugerem Fraiberg, Adelson e Shapiro em “Fantasmas no quarto do bebê” (1980). O berço de emoção do casal pode dar suporte um ao outro e ao recém-nascido, e pode então gerar amor, confiança e esperança na criança. Hostilidade, depressão e apego inseguro dos pais pode não deixar espaço na psique deles para a criança poder projetar o “terror sem nome” e a ansiedade.
Na interação hostil de casal, os olhos do bebê flutuam medrosamente de um genitor para o outro. Não há o “berço do casal para o bebê”, e dentro do bebê se promulgam ódio, frustração, ansiedade e desespero.
O teatro da boca
Como Spitz (1955) descreveu, a cavidade oral da boca é parte central da relação física e emocional de mãe e bebê. As observações semanais de bebê fornecem uma forma naturalista única de compreender a ligação entre boca/mamilo/mente e as fantasias concomitantes. Apresentarei agora quatro vinhetas sucintas de observação de bebê para comunicar quatro aspectos diversos, físicos e emocionais, da relação do bebê com a mãe. Vincularei essas observações de bebê a estados mentais similares presentes na relação criança/terapeuta e discutirei formas terapêuticas de se relacionar com o “bebê na criança”.
Primeira apresentação da boca: A boca chorosa em colapso: desistência
Bebê Jon, 2 meses
O pai está trabalhando em período integral e a mãe recomeçou turnos de 12 horas de trabalho como telefonista, três vezes por semana. Jon se mostra mais irritado de ser deixado com a baby-sitter. Simultânea e plausivelmente, tanto devido ao trabalho quanto ao choro dele, que lhe parece opressivo, a mãe, com certa frequência, deixa Jon chorando sozinho para adormecer e se consolar à noite, sempre que ele acorda chorando.
Certa ocasião, a mãe deixa Jon em seu quarto e ele chora tão alto e durante tanto tempo que começa a sufocar e a arfar. A mãe vai ver o que acontece com ele e diz: “Não quero que Jon chore por tempo excessivo”, mas já se passou “tempo excessivo”. Jon está aterrorizado, o que se pode ver por seus punhos cerrados e pela tentativa de usar as pernas para se levantar da cama. Ele tenta sair da posição terrível de estar deitado e desamparado na cama, um bebê infeliz abandonado, sem a mãe externa e também sem a mãe interna boa. Em vez disso, ele confia nos seus dedos cerrados para manter seu “self despedaçado” coeso. A agilidade precoce de Jon torna-se necessidade na medida em que ele tenta usar suas pernas para sair da posição de “pobre bebê indefeso e abandonado”.
Parece iniciar-se um círculo vicioso: identificada com a própria mãe, a mãe de Jon o abandona por períodos cada vez mais longos; ele fica cada vez mais aflito, e a mãe cada vez mais perseguida; distancia-se dele mais ainda, e Jon é abandonado chorando por períodos cada vez mais longos. A “frágil ponte para a mãe” se rompe aos poucos. Jon se aliena substituindo-a por seu próprio corpo e aderindo a objetos como proteção contra terrores arrasadores. A raiva de Jon contra sua mãe conduz ao dano da mãe interna boa. Essa situação interna de ter apenas uma mãe interna assustadora e danificada cria terrível ansiedade em Jon. Ele vivencia imagens de pesadelo em vez da mãe interna boa (O'Shaughnessy, 1964; Magagna, 2012, p. 61).
Uma pesquisa aponta que respostas inadequadas dos pais ao filho estão diretamente relacionadas com suas próprias defesas, derivadas de sua história evolutiva: falhas ocorridas em sua própria infância dificultam aos pais sintonizar-se empaticamente com o filho. A criança, por sua vez, precisa encontrar meios próprios de reduzir seus estados emocionais negativos quando a resposta empática dos pais não é suficiente (Fonagy, M. Steele, Moran, H. Steele & Higgitt, 1993).
Sem um aparelho psíquico bom, uma boa mãe interna, o bebê recorrerá a mecanismos adesivos para se manter coeso ou então dissociará. Com o correr do tempo, vemos Jon se machucando.
Bebê Jon, 7 meses
Jon pega algumas chaves e, uma a uma, as coloca na boca. Enfia as chaves longas tão para dentro da sua garganta, que elas ocasionalmente provocam ânsia de vômito. Ao experimentar cada chave, sua expressão é de aversão. Após cinco minutos dessa brincadeira, ele enfia a chave dura no fundo da garganta e irrompe em soluços.
Jon parece identificar-se com um objeto internalizado intrusivo e nocivo quando, nessa ocasião, machuca-se repetidamente.
Aos 2 anos, o desenvolvimento emocional de Jon já preocupava. Ele ligava frequentemente a televisão e se grudava nela e se desligava da família. Envolvia-se cada vez mais com objetos duros, como chaves, blocos de madeira e chaves de fenda. Jon parecia ter quase encapsulado suas lágrimas ocultas de mágoa (Klein, 1980), pois não ajudava os pais a conterem seus estados emocionais. A mãe começou a compartilhar com o observador sua preocupação com o parco desenvolvimento emocional de Jon, refletido no retardo muito observável do uso de linguagem.
Jon desistira de sinalizar por meio do choro, de sinalizar por meio da conversa. É como se certos aspectos da boca de Jon tivessem desaparecido do ponto de vista dele, juntamente com a imagem de mãe a que ele pudesse recorrer (Winnicott, 1963/1965, p. 222). Afastado da mãe, Jon aderiu a atividades que pudesse fazer com sua furadeira e caixa de ferramentas de brinquedo. Jon estava sozinho com sua dor oculta.
A dor pode ser ocultada por meio de conquistas bem como de furadeiras e caixas de ferramenta de brinquedo. A não ser que seja tratada, pode permanecer tão dolorosa na vida posterior quanto no início da infância.
Exemplo de desistência: Yufang, 17 anos Emaciada, de olhos fechados para qualquer objeto ou pessoa, ela estava deitada na cama do hospital. Não abria a boca para comer nem para beber e não parecia notar qualquer coisa, inclusive a urina escorrendo dela. Parecia uma boneca de porcelana, com seu cabelo escuro reto e liso e seu rosto oval à Modigliani. Yufang ficava imóvel durante todo o dia e noite. Quando, após algum tempo, começou a responder, tratava os toques ou palavras das enfermeiras como a presença de uma picada irritante de mosquito. Parecia que o cordão umbilical que a mantinha à vida se rompera. Sua existência parecia não ter sentido. Como os outros 15 jovens que atendi em psicoterapia, Yufang se sentia tão profundamente indefesa e desesperançada que se retirara quase totalmente da vida, e deixara de andar, de falar ou de comer. Yufang entregou-se à morte devido ao trauma cumulativo esmagador pontuado por traumas significativos.
Na fase inicial de terapia, enquanto Yufang estava em princípio sem vida e verbalmente emudecida, parecia-me necessário usar meu coração, meu corpo, minha alma para ajudá-la a manter todo o seu ser coeso, “para estar afetivamente presente na sala”. Eu descrevia a atmosfera que sentia: “É bom estarmos aqui juntas”; “Você suspeita de mim”; “Você está curiosa com o que direi”; falava sobre o seu modo de me olhar. Usando minhas capacidades de observação de bebê, eu saudava cada um dos seus gestos não verbais. Às vezes, eu vivenciava a imagem de uma tartaruga nascendo aos poucos e suficientemente integrada para ir espiando a partir do seu casco impermeável, e depois desaparecendo de volta na escuridão. O meu sentimento de estar presente afetivamente e usar palavras para compreender era vital para evocar o desejo de Yufang de unificar novamente seu funcionamento mental e emocional desintegrado e se afastar do seu mundo sombrio de “não pensar”. Saudar os gestos de Yufang me envolvia em diálogo contínuo com seus olhos, dedos das mãos, seus pés, sua boca, o giro da sua cabeça, sua postura corporal, a atmosfera da sala, o humor dentro de mim, as histórias desenvolvidas espontaneamente que eu contava usando bonecos ao lado dela, músicas que me vinham à mente e seu violoncelo, às vezes, quando estava suficientemente bem para tocar. Mais tarde, surgiram palavras e sonhos. Eu a encontrava seis dias por semana e, após 18 semanas, ela passou de paciente internada na ala pediátrica a paciente ambulatorial.
Segunda apresentação da boca: A boca do bebê em batalha de controle onipotente
Bebê Bobby, 3 meses e meio
A mãe segura ansiosamente o bebê, que está sério enquanto olha para sua mão e a gira em frente aos olhos. Com a mão esquerda, ele agarra seu punho direito. Bolhas de saliva saem da sua boca. O bebê então suga seu punho rigidamente cerrado. Seis ou sete vezes a mãe tira a mão do bebê da boca e ele recoloca firmemente o punho na boca.
Quando a mãe lhe mostra a mamadeira, ele olha como se não a reconhecesse. Então, rapidamente desvia o olhar e olha para seu punho que gira. Isso acontece regularmente quando a mamadeira lhe é oferecida.
Na medida em que a mãe se aproxima com a mamadeira, o bebê rapidamente insere seu punho novamente na boca. A mãe empurra a mão do bebê para longe da boca dele e insere o bico.
Ele suga uma vez e rapidamente cospe o bico e, com ele, o leite. Cada vez que essa sequência se repete, a mãe fica cada vez mais enérgica e insistente enquanto pressiona firmemente a mamadeira na boca do bebê.
O bebê agarra e empurra a mamadeira com as duas mãos e cospe todo o leite da boca. A mãe fica mais irritada, intrusiva e zangada, e o bebê cada vez mais voluntarioso e perseguido enquanto arranca a mamadeira da boca, vomita o leite e volta a sugar seu punho.
A mãe está em pânico, pois sabe que precisa alimentar o bebê para mantê-lo vivo. Está também zangada e frustrada por sentir-se impotente. O bebê retraiu-se da mãe externa e, em certo sentido, imagina-se como “bebê dentro da mãe”, alimentando-se com seu punho.
A mãe, ansiosa, irritada e com apego inseguro, que não desenvolveu funcionamento reflexivo (Fonagy & Target, 1997), recorre ao controle em vez de à sintonia espontânea no cuidado do seu bebê. O bebê se sente invadido e perseguido enquanto transcorre o combate sobre quem é o detentor da entrada da boca.
Jane, 14 anos, anorexia nervosa
Jane não foi informada que estava sendo admitida na unidade de internação. Seus pais tiveram medo do que ela faria se soubesse de antemão. Quando Jane chegou com a passada firme e desafiadora à sala de terapia, desviou o olhar e foi para a janela, onde ficou com as costas duras firmemente posicionadas para me manter fora. Seu rosto, coberto com o longo cabelo loiro, estava invisível durante a sessão enquanto ela olhava para fora pela janela. Precisei usar minhas experiências contratransferenciais para formular os diversos estados mentais refletidos na tensão da musculatura das costas de Jane, nos movimentos da sua cabeça, na melodia das suas mudanças gestuais pouco visíveis. Descrevi estados mentais, falando em identificação com Jane: “Deixe-me sair daqui”, falando comigo mesma sobre o dilema de viver ou morrer de inanição, falando como se eu precisasse manter o senso de rejeição, em lugar de Jane. Eu disse que ficar na unidade fora uma exigência, mas ninguém poderia forçá-la a falar.
Era escolha dela falar ou não falar. Com sua voz, ela teria a liberdade de se reunir a mim ou deixar-me de lado. Eu não a questionei, descrevi o que estava “por ali na sala”. O silêncio dela não me controlava, já que eu tinha liberdade de pensar!
Na nossa unidade de pacientes com transtornos alimentares, percebemos que a construção de uma barreira sugere que há mente presente. Há um self mais saudável do que o de Yufang, pois Jane ao menos é capaz de lutar quando aterrorizada ou zangada.
Terceira apresentação da boca: A boca aberta presente na supersintonia
Fraiberg et al. (1980) descrevem como, apesar do intenso amor pela criança, um genitor pode se identificar com fantasmas do passado residentes no mundo interno. Eis um exemplo de mãe tentando ser a melhor mãe possível para seu bebê. Ela sintoniza com cada desejo do seu bebê, como veremos aqui.
Susan, 10 meses
A bebê está sentada no carrinho, comendo cereais doces. Ela observa uma formiga que anda em seu braço e a pica entre os dedos. A mãe percebe e pergunta: “O que é isso?” E volta a dobrar a roupa lavada. A bebê revira o saco de cereal, derrubando alguns no chão. A mãe ajuda a bebê a endireitar o saco, mas a bebê derruba os cereais novamente. A mãe tira a bebê do carrinho, e ela levanta um braço; a mãe diz: “Oh! Você quer que eu a leve para a outra sala”, e a mãe faz assim. Elas jogam bola na sala. Mais tarde, a bebê puxa a frente da blusa da mãe. A mãe diz: “Está bem, você quer leite.” A mãe lhe oferece o seio. A bebê se amolda para mamar enquanto, com a mão, pressiona o outro seio da mãe. A mãe tira a mão dela do seu seio e a segura. Essa ação se repete diversas vezes.
A mãe está perfeitamente sintonizada com os desejos da bebê, mas parece incapaz de reconhecer a agressividade dela em relação ao seio que não está em sua boca. Ela não consegue reconhecer a agressividade da bebê em relação a ela por tê-la deixado para cuidar da roupa, tirando assim seu olhar atento da bebê em vez de ficar com ela. A mãe também não se sentiu incentivada a desmamar a bebê, aos poucos, por medo dos seus protestos. A bebê anda por ali de boca aberta quando não está ao seio. Às vezes, escorre saliva dos cantos da sua boca. A mãe está em sintonia com a bebê, mas não consegue fornecer o que Winnicott chama um contínuo de cuidado, em que gradativamente enfrente os protestos da bebê a respeito das separações. A bebê não tem uma mãe que receba seus protestos, o que lhe permitiria internalizar uma mãe continente. Resta simplesmente “um buraco escancarado” no lugar em que o seio estava na boca. Mãe e bebê não se separaram totalmente. A bebê não elaborou as frustrações da separação da mãe. A bebê não tem linguagem, a mãe antecipa os desejos dela, e a bebê ocasionalmente usa suas mãos para sinalizar para a mãe. Em alguns casos, em que a mãe não conseguiu se separar do bebê por temer sua hostilidade e não conseguir tolerar a dor dele, o bebê não exercita sua própria identidade, não encontra sua própria “boca-sef”, não morde, não grita, não vivencia um self que precisa lutar pelo que quer. Vemos as consequências na próxima vinheta clínica.
Sam, 3 anos, dificuldades alimentares
Quando a amamentação findou, Sam, como outros bebês que conheci, teve convulsões. A mãe deprimida, que antes tivera um abortamento, sentiu-se culpada pelo desmame acompanhado pelas convulsões de Sam e, dali em diante, concordava com qualquer demanda dele. O pai, em identificação negativa com seu próprio pai, violento e abusivo sexualmente, era incapaz de colocar limites em Sam ou no fato de mãe/criança dormirem juntos. Como na vinheta anterior, com Susan, Sam não encontrou sua “boca-sef”, não morde, não quer mastigar a comida, nem gritar com os pais para lutar pelo que quer. Ao se sentir incompreendido, Sam arrancava os cabelos. Evitar o olhar dos pais, virar as costas a eles e à sua comida e não desenvolver linguagem sugeriu que a relação de Sam com os pais atenciosos ficou obstruída.
Ajudei Sam e ajudei seus pais a ajudá-lo a brincar de derrubar objetos, rasgar papel, gritar “Doeu!” ou “Bravo!”, bater os pés, bater em panelas, gritar “Fora!” para um companheiro quando estivesse sendo irritado. Eles precisavam dizer as palavras por ele, mas estavam lhe dando formas de pensar em experiências com palavras em vez de arrancar cabelo. Nas sessões, usei maneiras de transformar a “irritação” em que costumava arrancar os cabelos num desses outros métodos.
No caso de Sam, no meu capítulo “A criança que ainda não encontrou palavras” (Magagna, 2012), descrevo um método um pouco diferente do de David Rosenfeld, que sugere nomear objetos, como água quando a criança toca a água. Em vez disso, recomendo que o terapeuta descreva as relações da criança com os objetos sensoriais e o uso das experiências sensoriais em relação ao self e ao terapeuta:
“Olá, água.”
“Olá, Sam.”
“Adeus, água.”
“Socorro! Socorro! Estou caindo! Onde estou indo?”
“Olá, água.”
“Olá, Sam.”
Em outra situação, quando um cachorro de pelúcia é jogado para baixo, eu mudo o tom, o volume e a qualidade da minha voz para ecoar a emoção e a experiência sensorial de lançar o cachorro:
“Adeus, Danny” - é dito de forma alta, rápida e um pouco áspera, forma que sintoniza com a força e a velocidade do lançamento do cachorro.
“Olá, Danny” - é dito por mim de maneira suave e gentil quando Sam põe seu cachorro no meu colo.
Com minha boca, falo identificada com Sam e reconheço o mais exatamente possível a natureza do sentimento presente em cada gesto que Sam faz. Também personifico o objeto com o qual ele brinca, dizendo qual seria o sentimento se o objeto fosse uma pessoa se relacionando com ele. Estou adentrando o mundo onírico de Sam, em que fantasias estão subjacentes aos gestos das suas mãos (Isaacs, 1952). “Receber os gestos de Sam” com minhas conjeturas permite que ele alcance aspectos da sua vida interior, antes desconhecidos, sem nome, assustadores e caóticos. Algumas emoções atuais conterão com certeza aspectos de emoções da vivência de Sam no primeiro ano pré-verbal da sua vida. Os gestos de Sam estão repletos de conversas sobre sua vida mental.
Descobrir maneiras de receber e compreender os sentimentos dos pais e sua hostilidade acerca de necessidades não satisfeitas por meio de terapia de família, aceitar a hostilidade e as necessidades de Sam, bem como observar Sam, reconhecer seu grave terror, sua raiva reprimida e outros sentimentos inibidos, permitiu o surgimento de um menininho amoroso com os pais. Eles foram encorajados por mim a tirar fotos de Sam e do seu cachorro Danny e fazer e ilustrar com fotos as histórias deles em livros, que eram deixados para ele olhar durante o dia e à noite quando estivesse sozinho.
Ao final do ano, Sam descrevia alguns sentimentos via seu animal de pelúcia, seu cachorro Danny: “Bateu cabeça” e “Triste”, seguido por “Não, Sam”. Os pais ficaram entusiasmados, pois parecia que Sam internalizara nosso modo de receber e de pensar seus sentimentos, e agora falava e fazia o mesmo de forma verbal por seu cachorro Danny.
Após um ano de terapia, Sam demonstrava agressividade de forma visível, em vez de voltá-la contra seu corpo, e aos poucos passou a abrir a boca para uma quantidade adequada de comida.
Quarta apresentação da boca: Fingir de morto: a boca aterrorizada
A este quarto exemplo da bebê italiana Maria se seguirão as sessões de terapia da menina aos 10 anos. Reconheci questões importantes na relação pais-criança, mas talvez tenhamos deixado de observar com mais cuidado como as relações com irmãos podem fazer o segundo bebê usar “proteções de tipo autístico contra a ansiedade”. Aqui vemos Danilo, com 23 meses, que faz o triângulo na relação marital e faz par com a mãe, como se ele fosse o companheiro especial da mãe durante o dia quando o pai está ausente. Como vemos depois, esse pareamento inconsciente tem influência potente na maneira de a mãe proteger sua filha, Maria.
Maria, 5 meses, e Danilo, 20 meses
Maria está sentada no colo da mãe, olhando para fora. A mãe segura o fundo da mamadeira posicionada em sua boca. Maria rodeia o alto da mamadeira com as duas mãos enquanto suga o leite. Danilo se aproxima de Maria com uma chupeta. A mãe diz: “Maria está tomando leite e ela não quer a chupeta.” Ignorando as palavras da mãe, Danilo rapidamente enfia a chupeta na boca de Maria. A mãe repreende: “Não faça isso!”, mas não usa as mãos para impedir fisicamente Danilo. Ele continua a forçar a chupeta na boca de Maria até o bico da mamadeira ser empurrado para fora. Em resposta, Maria choraminga e irrompe em choro. Danilo protesta aos gritos quando a mãe tira a chupeta da boca de Maria.
A mãe coloca Maria olhando para fora e a reacomoda em seu colo, com as costas de Maria pousadas na barriga da mãe. Maria olha estupefata, com os olhos vidrados e desfocados. Seus punhos estão firmemente cerrados, mas o restante do corpo está flácido. Danilo sobe no colo da mãe, depois desce e se dirige ao quarto de brinquedos. Enquanto isso, Maria permanece imóvel, continuando a olhar para o espaço em estado de dissociação.
Quando a mãe põe o bico da mamadeira de volta na boca de Maria, ela não fecha a boca, não suga. O leite escorre da sua boca. A mãe tenta reinserir o bico. O leite novamente escorre da boca imóvel de Maria. A mãe desiste de continuar a alimentação. Com os olhos ainda inexpressivos e desfocados, Maria se balança para frente e para trás num ritmo autístico (Magagna, 2005, pp. 24-25).
Ocorrem com frequência essas interações em que Danilo interfere na relação da boca de Maria com a mãe. Nove meses depois, ainda não tendo se recuperado da chegada de Maria à família, Danilo ainda a está derrubando da cadeira, tomando suas posses e exigindo que a mãe fique com ele e exclua Maria. A regularidade desse tipo de interação entre irmãos pode produzir um ataque internalizado, representado pelo irmão internalizado, em ligação empática com a mãe. O sentimento de não ser amada nem protegida pela mãe se desenvolve em Maria.
O uso excessivo dessas proteções na primeira infância pode mascarar uma falta básica subjacente na personalidade em desenvolvimento da criança (Balint, 1968). Então, pode ocorrer uma grande regressão no início do desenvolvimento sexual dos 10-11 anos, quando a criança entra no estágio de sair da família para as relações com o grupo de pares.
A criança encapsulada
Ao tentar estar presente com uma criança pequena que usa onipotência primitiva, há apenas dois sentimentos: amor e medo (Leunig, 1990). O medo pode impedir a criança de amar. Como a criança que utiliza onipotência primitiva está se desenvolvendo psicologicamente e começando a construir uma relação de confiança com um adulto, ela com frequência desenha ou descreve a sensação do self com sentimentos de estar trancada.
Rosenfeld (2012) sugere que o encapsulamento é usado para preservar os vínculos infantis saudáveis com a mãe. Preservar os bons vínculos que ocorrem espontaneamente e impedir ligações entre a boca e a mãe quando esta é sentida como intrusiva ou não responsiva.
Após um tempo de psicoterapia, ainda silenciosa, Grazia finalmente foi capaz de revelar, por meio do seu desenho, que dentro da sua prisão de silêncio ela se sentia aos prantos. Suas costas duras onipotentes a protegiam da mãe, que olhava por entre as barras da cela tentando estar com ela.
Simultaneamente, Grazia vivenciava um debate maldoso entre duas emoções conflitantes: seu amor ao ser compreendida versus seu medo de ser tocada emocionalmente por alguém que ela temia que a abandonasse. Depois, na terapia, quando começou a falar, descreveu que, quando se sentia criticada ou em conflito com alguém, ela se imaginava num abrigo antiaéreo com sólidas paredes. Grazia se sentia adentrando um estado muito endurecido em que ninguém conseguia chegar até ela. O difícil é que ela também não conseguia alcançar a si própria, e isso era assustador.
Tentando extrair palavras
A ansiedade devido à lentidão do progresso pode levar à mudança do apego seguro do terapeuta ao método psicanalítico para o uso de controle: tentar ensinar palavras, fazer uma porção de perguntas para fazer a criança falar, pensar que a terapia de linguagem é uma resposta em si. Empurrar e controlar a criança substitui o método psicanalítico de receber os gestos e perceber que a criança comunica estados mentais por meio desses gestos.
Se enquanto terapeuta eu tiver um apego seguro ao método e confiar em fazer tudo o que este é capaz, então, receberei a comunicação não verbal da criança, observarei como ecoa dentro de mim e fornecerei compreensão em vez de procurar maneiras de fazer a criança falar.
Tolerando ser rejeitado
Quando o terapeuta fala e encara os olhos inexpressivos da criança, seu rosto inexpressivo e boca fechada, há diversas possibilidades:
º pode ser que o terapeuta esteja totalmente fora do rumo e a criança o ignore;
º pode ser que a criança tenha atacado a entrada do pensamento novo do terapeuta, estabelecendo-se uma barreira por meio da falta de expressão;
º ou pode ser que o terapeuta, em sua contratransferência, precise tolerar repetidamente ser o rejeitado, o inútil, o não amado, o que está zangado diante de um objeto não responsivo.
Precisamos lembrar que, enquanto a boca pode estar se entrincheirando contra a entrada de pensamentos do terapeuta, o inconsciente ainda tem ouvidos, ainda tem uma mente que pode ouvir o terapeuta e pode estar ou não atacando a possibilidade de pensar no que o terapeuta diz.
Maria, 10 anos
Ao se aproximar da puberdade, Maria enfrentou os desafios de se afastar da família em direção ao grupo de pares. Apesar de sair-se bem academicamente em tarefas escritas, Maria tornou-se totalmente muda na escola.
Ela foi encaminhada para psicoterapia e sua psicoterapeuta italiana, em formação, sofria com a angústia de se sentir uma terapeuta incompetente se Maria não conversasse com ela. A terapeuta ficava fazendo perguntas, e Maria às vezes respondia, mas com muita relutância, e com frequência punha a mão sobre a boca após parar de falar e comprimia os lábios. A terapeuta sentia que precisava fazer Maria falar, pois ela fora encaminhada por mutismo seletivo, nunca falando fora de casa e mal falando em casa. Sugeri para a terapeuta que sua tarefa não era fazer Maria conversar: sua tarefa era compreender as emoções de Maria. A terapeuta se sentia extremamente ansiosa também de que seu trabalho como terapeuta fosse considerado “não bom” pelos pais impacientes, que queriam “uma solução rápida”. Ódio a sentir-se impotente, se Maria não conversasse, e medo de ser rejeitada pela criança e pelos pais e criticada por mim, sua supervisora, invadiram a mente da psicoterapeuta em formação e criaram ansiedades cada vez maiores. Quando havia silêncio ou não havia movimento físico da parte de Maria, a terapeuta se sentia rejeitada e não tinha pensamentos à sua disposição.
Sessão do início com Maria
Maria não olha para a terapeuta quando ela diz: “Olá!”, e parece hesitante ao entrar na sala. Após uns instantes, senta-se à mesa. Não pega nada, mas olha para uma folha de papel. A terapeuta pergunta se Maria quer desenhar, e ela acena que sim. A terapeuta lhe dá uma folha de papel, e Maria a dobra em forma de um recipiente retangular. Pouco depois, pega as canetas coloridas e faz um desenho abstrato muito colorido, combinando com espirais coloridas.
A seguir faz quatro triângulos coloridos nos cantos. Quando Maria sai da sessão, a terapeuta se despede, mas Maria sai sem olhar para ela e não acena em despedida.
Depois, a terapeuta reflete: “Senti-me muito ansiosa, tomada por esse sentimento de não saber o que estou fazendo, não saber como ajudá-la, sentindo-me muito inadequada. Tento não me sentir constrangida com o silêncio.” Eu percebo que preciso ajudar a psicoterapeuta em formação a sentir que pode pensar em voz alta, sem precisar fazer perguntas, mas comentando os gestos de Maria de medo de pegar, de encontrar a coragem de pegar as cores e como, enquanto está com a terapeuta, deixa as mãos livres para colorir.
Sessão intermediária com Maria
Há uma cena engraçada no corredor em que um homem boceja, enquanto faz um ruído engraçado de ronco. Maria e a terapeuta se olham e, quando entram na sala, a terapeuta ri um pouco, e Maria comprime os lábios com muita força, mas realmente não consegue controlar: fica muito vermelha ao tentar não dar risada.
A terapeuta sugere: “É tão difícil não rir alto comigo. Posso perceber que você quer!”
Maria olha para a terapeuta tentando se recompor, mas é difícil. Ela continua a comprimir os lábios, mas ainda está rindo por dentro. (Maria precisa que a terapeuta reconheça: “Coitada da Maria, ela quer rir, mas não se permite.”)
Maria então sela os lábios firmemente e começa a fazer algo com alguns limpadores de cachimbo. Após alguns minutos, a terapeuta pergunta: “O que você está fazendo?” Maria se vira para ela, olha em seus olhos e, numa das primeiras vezes, responde: “Um bracelete.” (A terapeuta poderia ter dito: “Bravo, Maria! Você desafiou esses 'lábios duros' que não deixam você estar comigo.”) Maria comprime os lábios quando para de falar, mas não coloca as mãos sobre a boca, como às vezes faz.
Vemos como Maria está em conflito. Agora existe um self que se sente espontaneamente unido à terapeuta e quer rir com ela, mas existe também um “self duro”, que é totalmente contrário a se abrir e a ter intimidade com a terapeuta. Esses “lábios duros” são usados para proteger o self vulnerável e frágil que foi tão ferido e rejeitado no passado, e permanecem duros para proteger Maria da decepção de não ter sido protegida nem aceita desde a tenra idade. Maria necessita que a terapeuta reconheça: “Um aspecto muito hostil não permite que você ria comigo.”
Numa parte posterior da sessão, confiando um pouco mais na terapeuta, Maria responde sua pergunta, mas rapidamente fecha de novo os lábios, como se não devesse querer nada da terapeuta, nem desejasse falar com ela por medo de ser rejeitada, mas, nesse momento, tem coragem de responder.
Uma psicoterapeuta que não tenha ligação segura com a companheira, a psicanálise, pode parar de interpretar a relação transferência/contratransferência entre criança e terapeuta. Pode ocorrer um impasse. A terapeuta precisa se indagar, para saber: como é isso? Qual é a questão emocional entre nós quando essa interrupção ocorre? Eis uma sessão com a quase totalmente muda Maria, de 10 anos, cujo desenvolvimento interno ocorreu de fato durante as sessões de psicoterapia.
Sessão posterior com Maria
Maria tira o desenho de uma estrela-do-mar. A terapeuta sugere que talvez possa procurar mais alguma informação sobre estrelas-do-mar no seu celular. Maria olha interessada para a terapeuta. É a primeira vez que a terapeuta sugere esse tipo de coisa. A terapeuta diz: “A estrela-do-mar é coberta por uma armadura. Se outra criatura arrancar um pedaço seu, ela pode regenerar um membro.”
O rosto de Maria está muito expressivo enquanto a terapeuta exprime seu encantamento e interesse pela estrela-do-mar. Ela volta a desenhar sua estrela-do-mar. A terapeuta diz que algumas pessoas se imaginam como um animal específico. “Imagino se você se sente um pouco como estrela-do-mar... Como se sentisse que precisa de uma armadura para vir aqui. ”
Maria encara a terapeuta de modo inexpressivo e desenha olhos e um sorriso na estrela-do-mar. A terapeuta diz: “Parece uma estrela-do-mar amistosa, pois mesmo com armadura está sorrindo. “
Com a sessão muito próxima do fim, Maria desenha um porco-espinho. A terapeuta fala que o pelo nas costas do porco-espinho é espinhoso, como uma espinha protetora, e o pelo da barriga, muito macio. Ela acrescenta que quando o porco-espinho está assustado ele se enrola como uma bola, bem apertada, e os espinhos pontiagudos o protegem dos predadores.
Para Maria, que aperta firmemente os lábios para evitar sorrir ou rir, na sessão, esta é uma abertura na relação com a terapeuta. Maria vivencia uma cordialidade emergente em relação à terapeuta que compreende seus medos. O problema é que, por ter se sentido tão rejeitada antes pelo olhar inexpressivo de Maria, a terapeuta não consegue tolerar a ideia de ser rejeitada novamente caso reconheça o apreço de Maria, tal qual se mostra no sorriso e nos olhos da estrela-do-mar fitando a terapeuta. Por manter esse forte senso de rejeição da Maria não falante, fica difícil para a terapeuta perceber que Maria também sente que precisa “se encurvar com a espinha pontiaguda” para se proteger quando sai do espaço protetor da terapia.
Quando os pais e a terapeuta se sentiram rejeitados, por tanto tempo, por uma criança que não exprime afeição, pode ser um choque deixar sua própria “armadura de estrela-do-mar” derreter para poder aceitar e receber diretamente o olhar atencioso e o sorriso da criança. Na verdade, à medida que Maria começou a emergir da sua armadura, a mãe escreveu:
“Maria começou a me dizer:
'Eu te amo, mamãe.'
'Você é minha melhor amiga.'
'Você é bonita.'
'Você é tão boa.'
Às vezes, também, de modo pouco habitual, Maria fica chorona.”
A importância do trabalho com os pais concomitante à psicoterapia individual
Como mãe de uma “criança encapsulada desligada”, finalmente, você pode sentir o intenso desejo de intimidade surgir na criança. Você pode ficar tão eufórica pelo desejo verbalizado emergente de proximidade. No entanto, se enquanto mãe você tiver uma parte encapsulada do self e capacidade limitada de recepção de estados afetivos infantis intensos, pode sentir-se ameaçada ou sobrecarregada pela “fome de mãe” da criança.
A mãe de Maria diz, referindo-se a ela: “Ela se sente muito dentro de mim. Sinto-me tão deprimida em relação a ela.” A personalidade da mãe está se desestabilizando pelo desejo de intimidade de Maria. Parecia mais seguro para a mãe quando Maria não estava “dentro dela”, tal como descrito. A mãe então aceita que o casal precisa fazer um pouco de trabalho parental para receber a filha e enfrentar seu anseio possessivo pela mãe - para receber a filha que surge lentamente da sua “armadura de estrela-do-mar”.
Contudo, o interessante é que a mãe está muito afastada do pai como fonte de apoio nesse momento turbulento de mudança de relação. Por esse motivo, insisto que nós enquanto profissionais devemos pensar no casal, pai e mãe, como “o berço de apoio emocional” um para o outro. Só é possível um resultado positivo na presença de uma família muito unida que ajude o terapeuta e seja capaz de conter e compreender a criança (Rosenfeld, 2012, p. 32).
Por esse motivo, é essencial um trabalho com os pais que acompanhe a terapia individual. O trabalho com os pais é especialmente crucial para a criança que renuncia às proteções autísticas para sobreviver e retorna à segurança dos pais revelando o self vulnerável, antes aprisionado, com intensa necessidade e anseio por muita nutrição afetiva e compreensão.
O trabalho com os pais envolve ajudar cada parceiro a escutar um ao outro, mas também começar a examinar sua capacidade de se ouvirem.
Paremos de pensar
e esvaziemos nossa mente.
Cessemos o ruído.
No silêncio, escutemos nosso coração.
O coração enterrado vivo.
Fiquemos imóveis e esperemos e escutemos
cuidadosamente. Um som da profundeza,
de baixo.
Um choro débil. Uma batida fraca. Distantes sentimentos abafados desde dentro.
O grito de socorro.
(Leunig, 1990, p. 36)
Essa é a primeira fase de reflexão sobre a criança interior... mas apenas a primeira fase. A segunda fase é:
Criar o berço do casal
Este é o aspecto mais difícil do trabalho para o casal.
Resgataremos o coração sepultado.
Traremos para a superfície, para a luz
e para o ar. Cuidaremos dele e escutaremos
respeitosamente sua história. A história do
coração,
de dor e asfixia, de escuridão e saudades.
Ajudaremos nossos sentimentos a viverem
ao sol.
Juntos novamente, encontraremos alívio e
alegria.(Leunig, 1990, p. 36)
Conter a criança interior em si e no parceiro não é parte de uma experiência individual separada. Conter a criança interior envolve a relação com os próprios pais internos e os pais internos do parceiro. O casal pode criar um berço para suas experiências emocionais compartilhadas ao proporcionar o espaço para que a criança interior de cada um seja conhecida, contendo os sentimentos do outro e refletindo sobre as experiências emocionais do outro. Isso dá possibilidade de “reparentalizar a criança interior dentro”. Ao fazer o berço da criança interior um do outro, o casal pode proporcionar uma excelente possibilidade de crescimento emocional em cada um e na criança.
Ser terapeuta de uma criança exige que eu frequentemente me questione para encontrar os obstáculos a vivenciar a dolorosa perda de intimidade e rejeição que podem residir dentro de mim. Preciso de tempo e de espaço emocional para refletir sobre as palavras de Michael Leunig e examinar meu próprio estado mental ao trabalhar com uma criança:
Enquanto grávida do filho, possa estar grávida da sua alma.
Quando o filho nascer, possa ela dar nascimento e vida
e criar para si a mais elevada verdade.
Enquanto nutrir e proteger
o filho, possa ela nutrir e proteger sua vida interior e sua
independência. Pois sua alma será seu mais doloroso nascimento,
o filho mais difícil e a irmã mais amada dos outros filhos.
(Leunig, 1990, p. 36)
Esse poema descreve como é essencial dar à luz a minha própria criança interior, para encontrar o espaço para poder conhecer a verdade da minha experiência emocional, para retratar como eu sinto e, então, encontrar nutrição e proteção para minha própria criança interior. Isso também é necessário para a mãe e para o pai.
Enfim, quanto mais tentarmos extrair palavras, desenhos ou atenção da criança, mais firmemente fechadas podem se tornar sua boca e sua mente. Podemos nos mover para a posição de pensar que precisamos ensinar a criança a falar. Embora, em última instância, reconheçamos que a relação não é para receber olhares, palavras ou desenhos da criança. Trata-se de a criança encontrar seu próprio desejo de chegar ao outro. Como terapeutas, oferecemos livremente nosso ser ao outro, para encontrar sentido juntos, para compreender os obstáculos à formação de uma boa ligação com o outro.
As palavras da criança podem ser úteis para o terapeuta, e falar com a criança pode ser útil, mas as palavras podem não ser o ingrediente essencial. O ingrediente mais importante é a sinceridade interna, estado da alma que está em relação com o outro. O teatro da boca dramatiza o estado emocional da criança em relação ao terapeuta. Quando a criança começa a abrir sua boca/sua mente e a se voltar para a compreensão, o terapeuta e a família precisam ter capacidade emocional de receber a chegada do estado mental infantil muito necessitado, muito dependente, extremamente vulnerável, e tolerar o impacto da hostilidade infantil da criança suscitada pelo sentimento de rejeição durante as faltas de sintonia e as separações do terapeuta.
Revisão Mariângela Mendes de Almeida
Nota
1 Versão modificada do texto apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em outubro de 2015.
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Correspondência:
Jeanne Magagna
Flat 5, 33 Eton Avenue
London NW3 3EL, England
jm@hoping.demon.co.uk
Recebido em 9.9.2016
Aceito em 23.9.2016