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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.51 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2017

 

CRIANÇA

 

O lugar do analista de crianças: tecendo as tramas entre o espaço privado da clínica e o público

 

The child psychoanalyst's place: weaving the plots between the private space of the clinical practice and the public space

 

El lugar del analista de niños: tejiendo las tramas entre el espacio privado de la clínica y el público

 

La place de l'analyste d'enfants: le tissage des trames entre l'espace privé de la clinique et le public

 

 

Helga de Souza Machado QuagliattoI; Elisa Aires Rodrigues de FreitasII; Karollyne Kerol de SousaII; Ludmilla de Sousa ChavesII; Regiana Lamartine RodriguesII; Tassiana Machado QuagliattoII

IMembro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Núcleo de Psicanálise de Uberlândia (NPU). Membro do Centro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia (Ceepu)
IIMembro do Centro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia (Ceepu)

Correspondência

 

 


RESUMO

Delineado dentro de uma perspectiva histórica que ressalta como a criança foi ganhando centralidade na cena social e, consequentemente, no cenário psicanalítico, o artigo discute os desafios do analista de crianças na contemporaneidade. O analista é convocado a manter seu lugar na relação privada com a criança e também a responder às demandas do público, que representa o entorno do pequeno analisando: pais, familiares, escola, especialistas etc. Como instrumento para compreender e enfrentar tais desafios, analisa-se a possibilidade de trânsito entre o privado e o público abordando os fenômenos paratransferenciais e paracontratransferenciais nas intervenções com o entorno, tendo como invariante a função analítica.

Palavras-chave: psicanálise, crianças, função analítica, paratransferências, para-contratransferências, intervenções


ABSTRACT

This article is traced from a historical perspective which emphasizes how the child has gained a central role in the social scene and therefore in the psychoanalytic scene. The authors discuss the challenges the child analyst faces in contemporary times. Psychoanalysts are called to keep their place in the private relationship with the child. They are also called to deal with demands of those who surround the little analysand, i.e., parents, family, school, specialists, etc. In order to both understand and face such challenges, the authors analyze the possibility of transit between private and public space when addressing phenomena of paratransference and paracountertransference in the interventions with the environment. The psychoanalytic function remains unchanged (invariant).

Keywords: psychoanalysis, children, analytical function, paratransference, paracountertransference, interventions


RESUMEN

Delineado dentro de una perspectiva histórica que resalta cómo el niño fue ganando importancia y destaque en el escenario social y, en consecuencia, en el escenario psicoanalítico, el artículo discute los desafíos del analista de niños en la contemporaneidad. El analista es llamado a mantener su lugar en la relación privada con el niño y también responder a las demandas del público, que representa el entorno del pequeño analizando: padres, familiares, escuela, especialistas, etc. Como instrumento para comprender y enfrentar tales desafíos, se analiza la posibilidad de tránsito entre lo privado y lo público estudiando los fenómenos paratransferenciales y paracontratransferenciales en las intervenciones con el medio, teniendo como fija la función analítica.

Palabras clave: psicoanálisis, niños, función analítica, paratransferencias, paracontratransferencias, intervenciones


RÉSUMÉ

À partir d'une perspective historique qui souligne la façon dont l'enfant gagne, peu à peu, un rôle central dans la scène sociale et, par conséquent, dans le cadre psychanalytique, l'article discute les défis de l'analyste de l'enfant face à la contemporanéité. L'analyste est appelé à garder leur place dans la relation privée avec l'enfant et, aussi, à répondre aux demandes du public qui représente les environs du petit analysant: les parents, la famille, l'école, les experts, etc. Nous analysons la possibilité du passage entre le privé et le public comme un outil pour comprendre et faire face à ces défis, et nous abordons les phénomènes para-transférentiels et para-contre-transférentiels dans les interventions avec l'environnement, ayant la fonction de l'analyste comme invariante.

Mots-clés: psychanalyse, enfants, fonction analytique, para-transfert, para-contretransfert, interventions


 

 

Entra uma dama em loja de fazendas e pede:

- Tem o Sr. pano para remendos?

- E de que cor são os buracos, minha senhora?

(Guimarães Rosa, Tutameia)

Nas tramas históricas da humanidade, a psicanálise, com sua ética e seus desdobramentos teóricos e técnicos, nunca esteve afastada do entorno social e cultural de cada época. Mesmo se contrapondo a alguns preceitos morais e dando a impressão de blindagem contra o tempo e as circunstâncias de vida - por possuir elementos metodológicos invariantes -, ela sofreu e sofre inúmeros dos seus efeitos. Para tecer uma investigação acerca do lugar do analista na análise de crianças, propomos a retomada dessas tramas históricas relativas à infância, alinhavando-as com a contemporaneidade.

Os primeiros relatos de que a criança passou a ser vista como tendo uma série de características intelectuais e emocionais próprias foram registrados em meados do século XVI. Foi nesse período, juntamente com a transição do sistema feudalista para o capitalista, que surgiu na sociedade ocidental o conceito de infância ou, como apresenta Ariès (1981), o sentimento de infância. Essa transição atingiu seu ápice no século XVIII e trouxe impactos em nível social e cultural, entre eles, uma cisão entre os espaços públicos e privados. A partir dessa discriminação, houve uma modificação na configuração familiar: a família extensa caminhou para uma organização nuclear, com o cuidado da criança sendo atribuído aos pais, e não mais ao grupo familiar como um todo.

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o impacto das mudanças políticas e econômicas também causou transformações na produção do saber sobre a família e a infância. O desenvolvimento da ciência positivista e um olhar especialista, como o da medicina, envolveram a família em orientações acerca do cuidado com as crianças e com o espaço doméstico. Os pais começaram a ser estimulados a ter um lugar particular, para preservar os segredos familiares e sua intimidade. Os filhos pertencentes às classes mais altas foram acomodados em quartos distintos e privados, de acordo com o seu sexo, a fim de impedir qualquer promiscuidade sexual entre eles. A mãe passou a ter uma nova função social, ao gerir tanto as atividades privadas da família como as públicas relativas à saúde e à educação dos filhos. O pai, detentor do poder financeiro, foi incumbido de situações de transgressão de sua prole (Ariès, 1973).

A medicina voltou o seu olhar para as crianças que, naquele momento, apresentavam as chamadas incapacidades intelectuais. Até então, essas crianças eram vistas como endemoniadas, sendo abandonadas por orientação da Igreja. Preocupados com a ordem moral e social, os médicos passaram a identificar e estudar o que acontecia com tais crianças. Desse modo, teve início o desenvolvimento da pediatria e da psiquiatria infantil, baseado nos estudos já realizados com adultos. A partir do século XX, fundamentalmente com os estudos de Freud, surgem considerações psicopatológicas específicas para a infância, com uma mudança paradigmática expressiva na concepção dessa etapa da vida, evidenciando o infantil no adulto, e não o adulto em potencial na criança (Reis, Delfini, Dombi-Barbosa & Bertolino Neto, 2010).

Interessado na constituição da subjetividade, Freud (1905/1980) apresentou as fases psicossexuais do desenvolvimento infantil, além de reconhecer e dar sentido ao sofrimento psíquico das crianças. Inaugurou com o caso do Pequeno Hans (1909/1976) uma possibilidade de tratamento psicanalítico de crianças, além de apostar em intervenções indiretas ao escutar, orientar e supervisionar o pai de Hans na compreensão dos aspectos inconscientes do adoecimento do filho. Apesar de considerar essa intervenção satisfatória, Freud afirmou que o método psicanalítico não era adequado para ser aplicado em outras crianças, como evidencia Caron: "devido à dependência e à própria idade delas, fatos que impedem o estabelecimento do enquadre apropriado, necessário ao tratamento. Também atribuiu o fracasso da psicanálise com crianças às resistências assumidas pelos pais, dificuldades externas ao setting" (2014, p. 68).

Melanie Klein (1923/1996), na busca da superação desses obstáculos, estruturou uma técnica para a análise de crianças, sustentada pela relação transferencial, em que o brincar se apresentava em seus aspectos simbólicos. Segundo Petot (1979/1991), para psicanalisar seus pequenos pacientes, Klein realizava visitas domiciliares em que utilizava os próprios brinquedos das crianças para acessar suas angústias, fantasias inconscientes e mecanismos de defesa. Entretanto, essa proposta terapêutica apresentou dificuldades, tanto pela interferência de pais, irmãos e demais participantes da cena doméstica quanto pela descontinuidade do material produzido na análise, já que este não era privativo àquela criança.

Nessa conjunção, Klein transfere os atendimentos para um lugar privado, em sua própria residência, e organiza uma caixa com brinquedos simples e pequenos para cada criança, com o intuito de preservar o setting analítico e buscar a menor interferência possível do entorno (pais, irmãos, família extensa etc.). Acreditava haver aspectos intrapsíquicos da criança que, se resguardados das interferências desse público, poderiam ser acessados e interpretados, apontando o caminho do privado e os ganhos de promover a proteção desse lugar. Dava pouca atenção, porém, à condição de dependência da criança em relação aos seus responsáveis: "A solução seria uma transposição quase direta do setting adulto para a criança, sendo esta responsável por sua doença e tratamento" (Caron, 2014, p. 69).

Outros psicanalistas, como Bick (1968), Spitz (1979/1996) e Winnicott (1945/2000), enfatizaram que, no mundo particular do bebê e da criança, a necessidade de cuidados e a dependência dos pais são aspectos inerentes a essa etapa da vida. Tal compreensão contribuiu para o desenvolvimento de novas perspectivas na formação do analista, abarcando dimensões teóricas dos estágios primitivos da mente e introduzindo novas modalidades técnicas, que incluíam as entrevistas vinculares e o atendimento conjunto pais/filhos nos espaços privados dos consultórios.

Ao tecer este breve panorama histórico, observamos como a criança foi ganhando centralidade na cena social e, consequentemente, no cenário psica-nalítico. Esse aspecto se intensifica na contemporaneidade, uma vez que, com o isolamento das famílias, há uma valorização nunca antes vista das crianças e o estabelecimento de um lugar muito especial para elas. Segundo Monti (2008), elas se tornaram as soberanas de suas famílias e ainda mais centrais no plano social. Passaram a ser o ideal da cultura contemporânea, como se portassem a felicidade plena e o prazer ilimitado. Dessa forma, a elas são muitas vezes direcionados o cargo de gerir a vida dos adultos e a tarefa de desenvolver habilidades e autonomia, as quais ainda não têm capacidade física e psíquica para alcançar. As diferenças de gerações ficam borradas, assim como as funções familiares.

A cultura do narcisismo cria a ilusão de que o indivíduo é autoengendrado e não precisa cuidar nem das gerações anteriores nem das futuras. Nos dias atuais, os pais não são mais os únicos guardiões das informações sobre sua prole; também as detêm babás, professores, avós, médicos, juízes, analistas... Não há diferenciação clara entre as funções, as informações e os espaços públicos e privados para as crianças. Apesar da extraordinária idealização da filiação, existe em contrapartida uma terceirização dos filhos.

No bojo dessa cultura contemporânea, o analista recebe em seu consultório queixas referentes a sintomas de sofrimento psíquico das crianças. Muitas vezes, essas queixas estão associadas à diversidade de configurações familiares, à alienação parental, à guarda compartilhada, às questões de gênero, aos avanços tecnológicos, principalmente na comunicação (redes sociais), à maneira de brincar (video games, jogos online etc.), entre outros, e demandam o manejo de dois espaços: o privado da clínica e o público, o entorno da criança.

Apesar de, no imaginário social, a criança ocupar cada vez mais um lugar de destaque, o que faria supor que ações de cuidado por parte dos adultos estariam mais presentes, o que vemos é, frequentemente, um abandono das funções parentais. Aguça-nos, portanto, a possibilidade de pensar o espaço privado da clínica psicanalítica com a criança como não excludente das relações com o seu entorno, de modo que a centralidade verificada acerca dos lugares em que ela esteve e está inserida não desemboque numa reprodução de abandonos, em que o analista se torne um agente terceiriza-dor de cuidados da criança.

Imerso nesse contexto, o analista pode sentir-se desafiado a enfrentar essas questões ou aterrorizar-se e fechar-se em seus locais privados de atendimento clínico, seus constructos teóricos e sua ideologia.1

 

A análise de crianças na contemporaneidade: o trânsito entre o privado e o público

O fazer analítico com infantes demanda hoje, de modo frequente, relações do analista com os pais, com outros adultos (avós, tios, babás, madrastas, padrastos, pediatras, neurologistas, psiquiatras, professores, advogados, juízes etc.) e até outras crianças (irmãos, primos e amigos). Tais relações atravessam, em alguns momentos, o setting analítico e, em outros, exigem o trânsito do próprio analista em espaços além da sala de análise.

Chamamos de público o entorno que influencia direta e indiretamente a relação privada do analista com a criança, que revela a complexa dinâmica em que ela está inserida e abarca elementos comunicados verbalmente ou em metacomunicações (Ungar, 2014), expressas em silêncios, gestos, atuações etc.

Muitos trabalhos discutem o dilema vivenciado pelo analista quando convocado a responder a demandas do entorno de seus pequenos analisandos, refletindo principalmente sobre o lugar dos pais na análise de crianças (Coimbra, 2014; Lisondo, 2001; Petricciani, 2011; Rosemberg, 1994; entre outros).

Compreendemos que esse dilema aborda o paradoxo da clínica psicanalítica infantil, pois, independentemente das escolhas técnicas feitas pelo analista, ele estará imerso no campo criado pela condição de dependência da criança ao seu entorno. Perceber a clínica como o espaço do paradoxo é considerar que essas questões não têm uma resolução simples, mas que, em contrapartida, podem ser pensadas e toleradas. Segundo Winnicott, "paradoxos não existem para serem resolvidos, mas para serem observados" (1968/2005, p. 144).

Tendo em vista essa perspectiva, reformulamos a questão do lugar dos pais para a do lugar do analista na análise de crianças, passando a considerar a necessidade do trânsito entre o privado e o público na clínica da infância. Nosso olhar recai tanto no entorno da criança como nos cuidados para a preservação do campo privado da sala de análise, que pode também, ocasionalmente, ocorrer na sala de espera, no banheiro, no jardim, entre outros.

De acordo com Baranger, "campo é uma estrutura diferente da soma de seus componentes, como uma melodia é diferente de uma soma de notas" (1992, p. 576). Utilizando essa metáfora musical, podemos afirmar que o campo formado no contato do analista com o entorno da criança é composto da interação de aspectos conscientes e inconscientes de cada pessoa, num "interjogo de identificações projetivas" (Lisondo et al., 1996, p. 12), formando uma complexa melodia, nem sempre harmoniosa.

Para que o conjunto encontre recursos em direção a essa harmonia, o campo privado deve ser propenso ao trabalho intrapsíquico, em que a escuta de angústias, desejos e fantasias inconscientes, comunicados via identificação projetiva, advindos do campo transferencial e sustentados pela função analítica, resulte em interpretações dos fenômenos relacionais, transformados em linguagem verbal e lúdica, em diferentes níveis de experiência emocional.

Barros considera:

A atividade interpretativa do analista se dá por dupla ação: continência na interpretação e simbolização. A continência na interpretação consiste em recolher os dados heterogêneos de comunicação verbal e não verbal do paciente em busca de equivalentes fantasmáticos que propiciam as transformações simbólicas. Esta segunda parte, a simbolização, será apresentada como ações interpretativas ou interpretações verbais, dependendo do nível de funcionamento mental ativado no paciente. (2007, p. 117)

Como o lugar privado na análise de crianças está indissociado do trânsito do analista também em espaços públicos, compreendemos que o que é invariante para ocorrer essa bipolaridade constante é a condição de o método psicanalítico sustentar a permanência da função analítica nesses contextos. Estamos nomeando de função analítica o estado de mente que o analista alcança para desenvolver o trabalho analítico - sendo a criança a sua referência, independentemente do local - e manter uma postura clínica, como propõe Rezende (2000).

Nesse sentido, o campo analítico da análise de crianças não é bipessoal como o da análise de adultos (Lisondo et al., 1996). É preciso considerar o que denominamos de público como o terceiro da relação: paciente ↔ analista ↔ público.

 

 

Há de se considerar que esse espaço público também é um campo transferencial, assim como o espaço privado. Dessa forma, transferências paralelas ao trabalho analítico com a criança acontecem entre o analista e o entorno. Com isso, esse trabalho se dá no nível das paratransferências, as quais devem ser acolhidas como parte do processo analítico.

Segundo Racker:

Assim como o paciente, além de sua transferência com o próprio analista, estabelece transferências com pessoas próximas ao analista (familiares, outros analistas etc.), assim também o analista estabelece, além de sua contratransferência com o próprio paciente, contratransferências com pessoas próximas ao paciente. As primeiras poderiam chamar-se de paratransferências, as últimas de paracontratransferências. (1948/1982, p. 108)

Nesse ponto residem os maiores desafios do analista de crianças, pois a relação paracontratransferencial com o entorno obedece à mesma lógica da contratransferência no terreno conceitual e metodológico da psicanálise. De acordo com Castanho (2015), a contratransferência compreendida enquanto aspectos inconscientes do próprio analista diante de um analisando - ou, podemos dizer, do seu entorno - tem um duplo registro, de risco e de potencial para o trabalho. O risco reside no polo da resistência do analista, que pode limitar o trabalho pela formação de alianças inconscientes (Kaës, 2009) ou pactos denegativos (Kaës, 2004). O potencial refere-se à possibilidade de propiciar comunicação, já que o entorno projeta elementos beta, o que demanda a função alfa do analista (Bion, 1960).

Landolfi (1989) faz menção aos ataques, interferências e ameaças provocados pelo entorno dos pequenos analisandos nos analistas, resgatando as particularidades da dinâmica das paratransferências. Para essa autora, as pa-ratransferências são "transferências que não podem ser interpretadas", questão que revela toda a complexidade do seu manejo.

Assim, denominaremos de intervenção o manejo das paratransferências e paracontratransferências, diferenciando-o da técnica interpretativa utilizada nos espaços privados da clínica psicanalítica. O conceito de intervenção é inspirado na proposta das entrevistas vinculares, de Mélega e Gimenez:

As intervenções aconteceriam no trabalho do vínculo mãe-bebê, quando a mãe explicitamente desejasse ajuda para compreender uma situação que não estivesse conseguindo. Dizia também que tais intervenções não poderiam ser chamadas de interpretações, como entendemos em psicanálise, pelo fato de não estarem buscando o "latente" das comunicações, e mais que isto, por não serem intervenções transferenciais, mas sim dirigidas às interações entre os participantes do grupo familiar. (2008, p. 199)

Tal conceito possibilita discutir e investigar formas de trabalho em ocasiões nas quais o analista de crianças é convocado ao trânsito entre o privado e o público.

 

O trabalho nas paratransferências: abstinência e criatividade

A complexidade do manejo das intervenções nas paratransferências, em espaços públicos, implica considerarmos a limitação de recorrer à interpretação. Essa prerrogativa da negativa à interpretação atravessa o analista, colocando-o diante do princípio da abstinência, já abordado por Freud: "O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência" (1915[1914]/1996, p. 182).

Trata-se da postura de renúncia a responder às demandas dos pacientes, mantendo certo nível de frustração necessária ao processo analítico. Abster-se pela renúncia, não pela recusa, por compreender que não possui o que o outro pede, não por possuir e se recusar a oferecer.

Este é o processo que opera na mente do analista no trabalho com as paratransferências: abster-se de interpretar os fenômenos transferenciais que se anunciam na sua relação com o entorno da criança. A abstinência, nesse sentido, não se faz pela recusa do analista em oferecer sua interpretação dos aspectos inconscientes manifestos na relação da criança com seu entorno, mas na condição de renunciar a essa informação por compreender as limitações de seu alcance na relação dela com o público.

O trabalho do analista com o público visa, primordialmente, fomentar um ambiente facilitador por meio de comunicações simples e diretas, que alcancem as conflitivas intersubjetivas e identificatórias do entorno da criança. Com isso, busca-se criar condições de sustentação (holding), manejo (handling) e realização (realising) do trabalho analítico, contribuindo para o processo de amadurecimento e individuação (Winnicott, 1964/1994).

 

As intervenções nas paratransferências: tecendo redes entre o privado e o público

A criação de um espaço potencial, que reúne e separa paradoxalmente, trazendo em si a possibilidade de criatividade e percepção objetiva fundada no teste de realidade (Winnicott, 1971/1975), é a proposta das intervenções nas paratransferências.

Sofia tem 6 anos. A mãe e ela moram na casa da bisavó, com a avó e duas tias-avós, que compartilham de seus cuidados. A criança não conhece o pai e tem dificuldades escolares, além de recusar-se a realizar tarefas da vida diária.

Na análise, as sessões têm representações lúdicas invariantes: angústias de separação dramatizadas em cenas de desamparo. Sofia propõe brincar de mamãe e filhinha. A analista é um bebê que chora por sentir fome e frio. A mãe, vivida pela criança, não atende as necessidades da filha, irrita-se e precisa se arrumar para ir à balada. A analista pergunta para a criança, fora da brincadeira, se o bebê vai ficar sozinho quando a mãe sair. Ela responde: "Não tem problema". A analista retoma seu papel de bebê e encena toda a angústia advinda do terror dessa experiência. A criança, porém, num movimento dissociativo, dramatizando o lugar da mãe, não se mobiliza com o sofrimento.

Após alguns meses do início do processo analítico, a escola solicita uma reunião para esclarecimentos sobre as dificuldades da criança. Essa reunião é agendada com a coordenadora pedagógica, e a analista ressalta a importância da participação da professora, considerando-a a mais próxima na relação vincular com a aluna.

Ao receber a analista, a professora é direta e diz em tom hostil:

Muito bom você vir aqui hoje. Estou preocupada com a Sofia. Ela tem mentido com frequência e, além disso, vive falando de namoro com os meninos. Ontem um colega derrubou refrigerante no pé dela. Eu estava no pátio, lavei o pé da Sofia e expliquei que o colega não fez por mal. Ela voltou a brincar normalmente. À noite, a mãe dela me liga dizendo que a filha estava chorando porque ficou suja na escola. Expliquei para a mãe o ocorrido e parece que ela não acreditou. O que eu faço com essa mentira da Sofia? Essa menina tem problema de caráter?

A analista percebe que existe a demanda de que ela assuma o papel de personal das emoções (Favilli, Tanis & Mello, 2008), aquela que será a detentora de todo o saber emocional, auxiliando na rápida inserção da criança no mundo simbólico e ensinando à professora o "exercício" que solucionará todos os problemas, sem implicá-la na experiência emocional. Além disso, outros dois elementos se destacam: por um lado, um julgamento de valor associado a um rótulo ou diagnóstico; por outro, uma experiência da professora de se sentir acusada de algum tipo de negligência, gerando um ciclo vicioso e per-secutório - a mãe acusa a professora, a professora acusa a criança e a analista.

A paratransferência, como elemento articulador das relações em espaços públicos, revela o clima emocional do encontro. Assim, a função da analista é intervir para ampliar a capacidade de pensar da professora e ajudá-la a desenvolver recursos para compreender sua aluna.

A analista, com o intuito de criar um espaço de criatividade que substitua a onipotência de um saber pressuposto, diz à professora que compreende que ela se sentiu desconfortável ao se ver acusada de um descuido que não cometeu, mas que seria importante retomar a cena para tentar entendê-la: "Por que uma criança estimula duas pessoas tão importantes em sua vida, a mãe e a professora, a disputar seus cuidados?"

A professora, num tom de voz mais ameno, pergunta: "Isso é carência afetiva?" Nesse momento, o clima do encontro passa a ser de menos rivalidade, e cria-se uma atmosfera para pensar a experiência emocional com a criança. Mantendo sua função, a analista tenta não atuar, paracontratransfe-rencialmente, ante a acusação de incompetência e busca habitar um espaço potencial livre de julgamentos (Winnicott, 1971/1975), compreendendo que a criança, como uma forma de defesa e comunicação, mobiliza o seu entorno à procura de cuidados, ao mesmo tempo que projeta a sua impotência diante da situação de desamparo.

Outro caso: Marília, de 5 anos, adotada aos 4 meses de idade, inicia a análise devido a comportamentos agressivos, tanto em casa, onde quebrava objetos por qualquer frustração, quanto na escola, onde batia em professores e colegas, mentia e realizava pequenos furtos.

Em certa ocasião, na sala de espera, Marília chega acompanhada pela mãe, que solicita à criança que explique à analista sobre o cartaz que está em suas mãos. Marília diz: "Carinha triste, carinha feliz". A mãe continua:

Nós fizemos este calendário para avaliar o comportamento de Marília todos os dias deste mês, porque as coisas lá em casa estão muito difíceis. Se ela não melhorar, haverá consequências: mudará de escola, irá para ela de van, perderá aqui e sairá da natação. Quando Marília fizer coisas boas, ganhará uma carinha feliz; quando tiver um comportamento ruim, colocaremos uma carinha triste; e, quando ficar normal, nem bom nem ruim, colocaremos uma carinha com a boca reta. Faremos isso até o final do mês e então tomaremos a decisão do que acontecerá. Está nas mãos dela.

O cartaz-calendário-comportamento, no processo paracontratransferencial, causa impacto na analista, via identificação projetiva, e demanda que compreenda a comunicação advinda desse estado emocional de impotência. A ideia de ruptura da análise e das atividades educacionais da criança como punição por ela não ter os comportamentos considerados adequados traz a concepção de que ambas, mãe e filha, quando frustradas, tendem a "quebrar" vínculos.

Diante da ameaça de ruptura, só se torna possível o prosseguimento do processo analítico por meio de um estado mental receptivo, como propõe Petricciani (2011), em que o analista deve receber empaticamente as dificuldades e ambivalências dos pais sem ser passivo, mas também sem ser invasivo, procurando acessar aquilo que é difícil e precário. Nessa situação clínica, a intervenção caminhou na busca de novos modelos vinculares, não disruptivos, com os pais, recebendo-os regularmente para entrevistas, sem a presença da criança, e explorando suas fantasias e angústias advindas da não correspondência da filha ao esperado por eles.

Ao pensar sobre dinâmicas como essas, Landolfi aborda possíveis repercussões da paratransferência na análise de crianças, especificamente em relação ao grupo familiar, e acrescenta que a análise pode trazer mudanças tanto no mundo interno quanto no entorno das crianças, levando-as por vezes a deixar de ser o sintoma da doença da família:

É importante manter o contato com os pais através de entrevistas renovadas, durante o processo, para tentar deter a tempo qualquer fantasia de interrupção. Essas entrevistas, assim como outras com diversas pessoas do entorno do pequeno analisando, devem levar ao esclarecimento das paratransferências. (1989)

Como um tecelão, o analista de crianças precisa desembaraçar as tramas identificatórias e projetivas do privado e do público, para que os fios/vínculos permitam a aprendizagem na experiência emocional (Bion, 1960).

 

Arremates finais

Mas, na mesma botada, puja a definição de rede: uma porção de buracos, amarrados com barbante...

- cujo paradoxo traz-nos o ponto de vista do peixe.

(Guimarães Rosa, Tutameia)

A psicanálise acontece através da experiência e de quem pode aprender com ela. É nesse caminho que nos dedicamos a refletir sobre inúmeras vivências clínicas com a criança e seu entorno, engajados na complexa e delicada tarefa que envolve a construção contínua de espaços em que o terror advindo de dificuldades, invasões, rupturas, riscos, entre tantos outros, possa ser pensado e transformado, desde que nos coloquemos disponíveis para o desenvolvimento contínuo da função analítica.

O lugar do analista de crianças, portanto, não é um lugar fixo, mas um lugar em trânsito. O movimento do analista nos espaços privado e público estabelece um elo de comunicação com os estados mentais da criança e com os participantes do seu entorno. Esses elos formam uma rede que sustenta tanto a instauração e a manutenção do trabalho analítico com a criança quanto a qualidade da relação do entorno com o analista e com a criança.

A disponibilidade física e psíquica do analista, o uso de seu repertório onírico e lúdico e a habilidade de se comunicar e transitar entre o privado e o público são condições sine qua non para que o trabalho analítico com a infância seja tecido artesanalmente com os fios da função analítica, num interjogo constante entre a realidade psíquica e a realidade externa.

Assim, fio a fio, o analista tecerá seu próprio lugar na análise de crianças. Seu olhar para os desafios/buracos que surgem na sala de análise poderá, com o uso de sua função analítica, tecer uma rede de sustentação e criar diversas possibilidades para a construção de uma clínica viva, que se mova entre o privado e o público, a serviço do desenvolvimento de seu pequeno analisando.

 

Referências

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Recebido em 11.07.2017
Aceito em 23.11.2017

 

 

1 Essas inquietações sustentaram as discussões do Laboratório de Investigação Psicanalítica da Infância (Lipi), composto de psicanalistas e psicólogos, cujo objetivo é, a partir da experiência clínica com crianças e seu entorno, desenvolver um continente para os pensamentos via método psicanalítico, pesquisa teórica e escrita conjunta. O Lipi é vinculado ao Centro de Estudos e Eventos Psicanalíticos de Uberlândia (Ceepu).

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