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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.1 São Paulo jan./mar. 2018
TRABALHOS PREMIADOS
XXVI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE REVISTA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE
Ódio mortal, ódio imortal1
Deadly hatred, immortal hatred
Odio mortal, odio inmortal
Haine mortale, haine immortale
Bernard Miodownik
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)
RESUMO
Periodicamente a humanidade se vê às voltas com tempos de ódio. A psicanálise, em sua prática diária, lida com o ódio. Reduzir uma questão grupal e social a uma explicação análoga à do psiquismo individual traz o risco do reducionismo, porém é importante que possamos conhecer a psicodinâmica do ódio na tentativa de entender como ele emerge com tanta potência no mundo externo. Na clínica encontramos o ódio no conflito ambivalente em que existem representações de self e de objeto diferenciadas, assim como o ódio consequente a uma falha no processo de estruturação do narcisismo (de acordo com Fairbairn, Winnicott e Kohut). Nesse último caso, o ódio se revela desorganizado, já que não está dirigido a um objeto que tenha uma representação psíquica de algo separado do próprio self e que possa vir a integrar-se na ambivalência emocional. Nessa condição, o ódio pode se dirigir à destruição e, também, se tornar a única forma de ligação do sujeito com o objeto, permanecendo ambos em estado de não diferenciação, psicodinâmica que se revela em pacientes com maior grau de regressão, como nos dois casos de estrutura borderline apresentados como ilustração clínica.
Palavras-chave: ódio, narcisismo, borderline, contratransferência, ambivalência
ABSTRACT
Humankind occasionally finds itself facing times of hatred. Psychoanalysis deals with hatred in the everyday practice. Reducing a group and social issue to an explanation that is analogous to individual psyche brings the risk of reductionism. However, it is important for us to be able to know the psychodynamics of hatred as an attempt to understand how powerfully this hatred emerges in the external world. In clinical practice, we find hatred in the ambivalent conflict in which there are differentiated representations of self and object. We also find the hatred that results from a failing process of structuring narcissism (according to Fairbairn's, Winnicott's, and Kohut's thinking). In this last case, there is a disorganized hatred because it is not towards an object which has a mental representation of something that is separated from the own self; an object which may become integrated in the emotional ambivalence. In this situation, hatred may happen towards destruction. This hatred may also become the only way of connecting subject and object, both of which continue to be in state of no differentiation. This psychodynamics is seen in patients with a higher level of regression such as cases of borderline structure. The author presents two clinical vignettes to illustrate this.
Keywords: hatred, narcissism, borderline, countertransference, ambivalence
RESUMEN
La humanidad se ve envuelta periódicamente en tiempos de odio. El psicoanálisis tiene que lidiar con el odio en su práctica diaria. Reducir un tema grupal y social a una explicación análoga a la del psiquismo individual trae el riesgo del reduccionismo, sin embargo, es importante que podamos conocer la psicodinámica del odio en el intento de entender cómo surge con tanta fuerza en el mundo externo. En la clínica encontramos el odio presente en el conflicto ambivalente, en el cual existen representaciones de self y de objeto diferenciadas, así como el odio consecuente con un error en el proceso de estructuración del narcisismo (según Fairbairn, Winnicott y Kohut). En este último caso, el odio se revela desorganizado, pues está dirigido a un objeto que tenga una representación psíquica de algo separado del propio self, y que pueda integrarse en la ambivalencia emocional. En esta condición, el odio puede dirigirse a la destrucción y, también, convertirse en la única forma de conexión del sujeto con el objeto, permaneciendo ambos en estado de no diferenciación. Psicodinámica que se revela en pacientes con un grado mayor de regresión, como en los dos casos de la estructura borderline presentados como ejemplo clínico.
Palabras clave: odio, narcisismo, borderline, contratransferencia, ambivalencia
RÉSUMÉ
L'humanité se voit périodiquement face à des moments de haine. La psychanalyse a affaire à la haine dans sa pratique quotidienne. Réduire une question groupal et social à une explication analogue à celle du psychisme individuel apporte le risque du réductionnisme, cependant il est important qui nous puissions connaitre la psychodynamique de la haine, dans la tentative de comprendre comme elle émerge avec tellement de puissance sur le monte externe. À la clinique nous retrouvons la haine présente dans le conflit ambivalent dans lequel il n'existent pas de représentations de self et d'objets différentiées, aussi bien que la haine en conséquence d'une faille dans le processus de structuration du narcissisme (selon Fairbairn, Winnicott et Kohut). Dans ce dernier cas la haine se montre désordonnée, vu que ne se dirige pas vers un objet qui ait une représentation psychique de quelque chose séparée du self lui-même, et qui puisse venir à s'intégrer dans l'ambivalence émotionnelle. Dans cette condition, la haine peut se tourner vers la destruction et devenir également la seule manière de liaison entre le sujet et l'objet, en restant les deux dans un état de non différentiation. Une psychodynamique qui apparait chez des patients ayant un plus grand degré de régression, comme dans les deux cas de structure borderline présentés ici comme illustration clinique.
Mots-clés: haine, narcissisme, borderline, contretransfert, ambivalence
Alardeia-se que vivemos tempos de ódio. Nacionalismo, xenofobia, intolerância religiosa, recusa às diferenças, partidarismos radicais e fanatismo são temas constantes nos noticiários e, especialmente, nas redes sociais. Por um lado, observam-se avanços inimagináveis há pouco tempo no comportamento e na subjetividade das relações humanas, assim como no combate aos preconceitos. Por outro, fortes reações a essas mudanças, às quais se imputa a responsabilidade pela desorganização das estruturas estabelecidas. As opiniões de lado a lado se extremam, as paixões se exacerbam e o ódio ao outro diferente surge com toda a força através de agressividade verbal, escrita e física. Um ódio mortal.
Em Por que a guerra? (1933/1976), Freud procurou responder a uma carta de Einstein em que este perguntava sobre o que leva a humanidade a ações destrutivas, como naquela época dos pródromos da ascensão do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Uma das respostas estaria em nossa herança animal: a agressividade necessária à sobrevivência tornou-se um instrumento para exercer poder. De acordo com Freud, naquele ponto do seu desenvolvimento teórico, essa agressividade estava posta a serviço da pulsão de morte. Em trabalho anterior (Freud, 1915/1974b), o ódio tinha uma função conservativa no psiquismo humano. Colocá-lo no mundo externo, em algum alvo (objeto) fora do mundo interno, diminuía o desprazer causado pela energia libidinal represada.
Reduzir uma questão de subjetividade grupal e social a uma explicação análoga à do psiquismo individual traz o risco do reducionismo. Aspectos políticos, econômicos e culturais também influem e não podem ser negligenciados. No entanto, é preciso perguntar-se sobre a psicodinâmica do ódio para tentar entender como emerge com tamanha potência. Nós, psicanalistas, que lidamos com o ódio em nossa prática diária, dentro do pequeno universo de cada indivíduo e de cada relação analítica, sabemos que ele está à disposição de forças internas e externas, que podem recrutá-lo e manipulá-lo, tornando-o muitas vezes um ódio imortal.
O ódio na clínica
No mencionado trabalho de 1915, o ódio tem, para Freud, uma função homeostática no aparelho psíquico ao possibilitar o alívio do desprazer. O autor também fala da transformação das pulsões sexuais e agressivas respectivamente em amor e ódio. Note-se que é necessário haver alguma representação de objeto para este vir a ser depositário de uma emoção mais complexa (amor, ódio) do que uma descarga pulsional mais "pura".
Na resolução do complexo de Édipo, o ódio tem uma função dentro de uma organização estruturante, já que o sujeito precisa integrar o amor e a admiração a um objeto com o ódio e a rivalidade a esse mesmo objeto. Para que em tal processo de elaboração do complexo edipiano ocorra somente a turbulência esperada nessa fase (que não é pouca), o sujeito já deve ter representações de self e de objeto interno (Kernberg, 2016) em grau mais adiantado de diferenciação entre si.
O que vemos em muitos casos na clínica - e em diversos momentos da história da humanidade - é o ódio que se apresenta como uma emoção não integrada, maniqueísta e simplificadora, impossibilitada de ser vivida dentro de um conflito de ambivalência interna. Um ódio que ressalta suas raízes pul-sionais e que exala destrutividade, inclusive ao próprio indivíduo. Costuma estar associado à inveja, a sentimentos de vingança, a mágoas e ressentimentos impossíveis de merecer perdão. Um ódio mortal que sugere um ódio imortal, tal a sua persistência e resistência à mudança.
Visões diversas a respeito do ódio surgiram a partir de novas abordagens teóricas e clínicas sobre o narcisismo e as ansiedades primitivas. Melanie Klein manteve, na sua teorização, a pulsão de morte presente na origem, incremento e adesividade do ódio. Outros teóricos das relações de objeto se afastaram da premissa freudiana do dualismo pulsional. Para Fairbairn (1940/2001), o não atendimento às necessidades primitivas do bebê o levaria a incorporar e se identificar com o objeto como forma de sobrevivência psíquica - já que se encontra em estado de dependência absoluta quanto a ele -, transferindo o ódio resultante da frustração em relação ao objeto primitivo para si próprio ou para o exterior. Em Winnicott (1965/1988), a mãe que não se adapta ao bebê e "exige" dele corresponder às suas próprias necessidades narcísicas pressiona a uma vivência intensa de ódio, a qual, reprimida, muitas vezes fica escamoteada sob um falso self. Kohut (1988) aponta para um narcisismo necessário e para um objeto que funcione como um self-objeto, que corresponda e espelhe esse narcisismo, o que, se não ocorre, gera uma reação que ele denominou de fúria narcísica.
Para esses autores, o narcisismo não é somente uma fase evolutiva do psiquismo, à qual se regride em situações específicas de dificuldade emocional, mas um momento fundamental e estruturante. Depende do outro para existir, apesar de, sendo narcisismo, não reconhecer a presença desse outro. O objeto parcial assinalado por Melanie Klein é coerente à ideia de servir à descarga pulsional das tendências eróticas e agressivas. Nos autores citados, o bebê procura se proteger das angústias primitivas (de separação ou invasivas) por meio do envolvimento narcísico com o objeto, sem formar uma representação deste como algo separado de uma representação do próprio self. No momento em que há uma falha nesse processo, caracterizando o trauma (para Fairbairn, Winnicott e Kohut, a falha é primordialmente ambiental), um dos caminhos para se proteger das angústias aniquiladoras é a liberação do ódio. Este, porém, é desencadeado de forma desorganizada, por não ser dirigido a um objeto que, houvesse uma separação psíquica razoável, estaria em condições de receber esse encargo afetivo e metabolizá-lo. Daí a chegada ao período do complexo de Édipo ficar mais complicada, pois não há essa diferenciação mínima entre self e objeto, o que dificulta ou impossibilita a integração através da ambivalência afetiva.
Os caminhos desse ódio "narcísico" podem ser o da destruição (relacionado à pulsão de morte ou a um narcisismo maligno) ou o da procura por um objeto para se vincular, o que vemos amiúde na clínica. O grande terror desses indivíduos é saber que o objeto de ódio é o mesmo objeto que se quer amar, caso se chegue ao ponto da ambivalência. Há uma cena no filme A lista de Schindler em que o comandante do campo de concentração se horroriza ao perceber que formara com a sua criada - uma prisioneira judia - um vínculo erótico sadomasoquista, o único breve resquício de humanidade que restara nele. Ao reverso, o narcisismo de Otelo não aceitou a ambivalência e precisou matar sua adorada Desdêmona para não admitir que ela se tornara também objeto de ódio pela suposta traição.
No ódio que está na raiz da melancolia, conforme apontado por Freud (1917/1974c), o sujeito sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Entendo essa conceituação como o desconhecimento do sujeito melancólico de ter perdido a relação narcísica com o objeto interno, a qual precisa manter a todo custo, como uma sombra permanente. Essa relação indiferenciada sujeito-objeto é encontrada também em quadros com maior grau de regressão - por exemplo, nas personalidades narcísicas e borderlinew, nas psicoses, na angústia de pânico e nos psicossomáticos com pensamento operatório.
Segundo Gabbard (2000b), o ódio se torna - já que a frustração narcísica impossibilita amar - a única forma de preservar a relação com o objeto interno e, consequentemente, com si próprio e com os objetos externos. Ódio mortal e imortal paradoxalmente como fontes de vida. Apesar de esse autor achar que, no caso dos borderlines, existe uma separação mínima entre self e objeto (Gabbard, 1991), entendo que ela se dá de forma precária, que regride facilmente ao estágio de indiferenciação devido à incapacidade ou à impossibilidade de reconhecimento de uma separação. Nos casos em que para ser visto e espelhado o sujeito se serve do ódio, este se torna o prazer mais duradouro (Galdston, 1987), o que traz imensas dificuldades para a transferência-contratransferência e para a evolução de um processo psicanalítico.
Estevão2
Estevão tinha 35 anos quando veio à análise. Diversos insucessos profissionais - para os quais contribuíram sua pouca tolerância e seu temperamento explosivo - o tornaram dependente dos pais, fato que ele procurava negar: "Não tenho que dar satisfação aos outros. Só faço o que quero". Atribuía suas dificuldades e fracassos à rigidez do pai e ao que sentia como indiferença da mãe, vivência agravada pela saída dela de casa no início da adolescência de Estevão. Retornou dois anos mais tarde, sendo constantemente humilhada pelo marido e acusada pelos problemas do filho. "Depois do que meus pais aprontaram, têm mais é que me sustentar, mesmo" ele dizia para justificar o que sentia como direitos especiais para tratar mal aos outros. Como Freud mostra em "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico" (1916/1974a), na parte "As exceções", as feridas narcísicas geraram um ressentimento interno e um desejo de vingança. O ódio se expressava em brigas e acidentes, que o conduziam de forma repetida a hospitais e delegacias. Após uma queixa policial de assédio, a família impôs que ele se tratasse.
Na análise de três sessões semanais, Estevão revela uma sexualidade compulsiva, com parceiras com as quais logo rompia ao surgir qualquer possibilidade de ligação afetiva. Tratava-as com desdém, quando não as humilhava. Falava delas com menosprezo, assim como eram constantes suas afirmações preconceituosas em relação a minorias, inclusive à que o analista pertence.
Ficou clara a sua expectativa de como eu reagiria, se à maneira do rígido pai moralista ou da mãe passiva ou indiferente, situação comum nesses casos e que eu chamo de dilema borderline. Interpretar sua agressividade e seu ódio como forma de retaliar os pais ou de atacar o analista pode afastá-lo por colocar nele toda a responsabilidade, o que exclui a influência ambiental e aumenta a culpa que ele tende a expelir. Uma postura de ser somente um objeto acolhedor, distinto dos objetos primários, pode dar a entender que o analista é indiferente ao ódio (ou tem medo), e como foi visto o ódio é a forma de manter o vínculo com os objetos. Faz-se necessário buscar uma linguagem capaz de transmitir a compreensão do ódio como uma forma de vínculo, e não deixar a relação e a ambos, analista e analisando, tornar-se vítimas da destrutividade que o ódio provoca.
Estevão forneceu-me essa linguagem através das ironias ao meu trabalho: "E o que o grande sábio, lídimo discípulo de Freud, tem a dizer sobre isso?"; "Com essa pose, certamente trará reflexões profundas a meu respeito" Entrei na brincadeira que esse diálogo possibilitava.
Após ele ter faltado à sessão anterior:
Estevão: Ficou aí no bem-bom, sem fazer nada.
Analista: Nem devo ter sentido a sua falta.
E: Até ganhou um dinheirinho fácil.
A: Pois é... Assim é uma boa justificativa para você não ter sentido falta de vir aqui.
E: Imagina!
Após relatos de exibicionismo sexual, carregados de ironia às parceiras e a mim:
E: O que a psicanálise diz de tudo isso?
A: Não sei a psicanálise, mas algo me diz que você está gozando com a minha cara, não é?
E: Boa sacada. Sabe, andei por ambientes sórdidos. Adorava quando eu esporrava... [Olha para trás sorrindo.] Opa, olha o palavreado chulo... Ejaculava na cara das mulheres
A: Agora fiquei em dúvida. Você está cuidando de mim e protegendo a minha sensibilidade ou está me avisando para eu tomar cuidado com as suas esporradas?
E: Boa, muito perceptivo.
As brincadeiras tomavam parte considerável das sessões e serviam a vários propósitos. Da parte dele, expressar ódio, colocando-me contra a parede; criar um vínculo; manter o controle e evitar que eu me tornasse um objeto separado dele (o analista que faz o seu trabalho). Da minha parte, manter o vínculo; procurar compreendê-lo através da contratransferência desencadeada pelos frequentes sentimentos de medo, irritação e enfado - assim como pelo desejo de retaliar - que me assomavam, transformando-os numa comunicação possível. Não era fácil. Não foram poucas as vezes em que me vi enredado numa teia de diálogos que mais pareciam defesas maníacas de parte a parte. Dessas situações eu tentava sair por meio do silêncio ou de alguma interpretação. Geralmente ele desconsiderava, era indiferente ou mostrava-se revoltado. Em alguns momentos aceitava a comparação das situações externas que relatava com o que ele fazia ali comigo, forma que Kernberg (2016) preconiza para o tratamento de estruturas borderline. Apesar dessas dificuldades, foi nítido que ele passou a vir com gosto para as sessões, o que, é claro, se tornou assustador para ele.
Por volta de dois anos da análise, ele me liga na quinta-feira após o Carnaval. Não lembrava se haveria sessão (eu avisara que não teria). Na sessão seguinte permanece em silêncio. Menciono então que ele poderia estar preocupado com a vontade que teve de vir à sessão da quinta-feira e estaria em silêncio esperando a vontade passar. Ele se levanta irado, diz que não se preocupa com coisas pequenas e vai embora.
Retorna um ano e meio depois. Aceitara um trabalho secundário numa empresa familiar. Relacionava-se com uma namorada há seis meses, o que era inédito. E foi por insistência dela que voltou à análise. Fez questão de mostrar que o antigo Estevão continuava lá: "Não é por mim. É que assim ninguém me chateia". Voltamos também ao antigo sistema de diálogo com brincadeiras. De forma lenta e gradual, porém, esses diálogos passaram a ocupar menos tempo nas sessões. Ele fala mais de suas relações, suas raivas, seus ressentimentos, das limitações que lhe são impostas. Descarrega preconceitos. Anda na rua atrás de pessoas que parecem ter poucos recursos e murmura para si mesmo: "Ô, pobre! Ô, pobre!" Por outro lado, aos poucos, falamos de seu empobrecimento interno. Muito discretamente reconhece o desamparo, a falta, a dependência, a dor. Quando isso ocorre, procura motivos para explodir fora da análise ou comigo.
Uma pequena mudança acontece após dois anos do retorno à análise, quando ele e a agora companheira compram um cachorro, ao qual ele se afeiçoa intensamente. Bolognini (2009) menciona a importância do cachorro para pacientes graves, como facilitador de um estágio intermediário para evoluir a uma relação que ele denomina de interpsíquica. Em certo fim de semana, a companheira viajou e levou o cachorro. Na sessão, ele reclamou que a casa ficou estranha sem o seu companheiro, o cão, e que foi um péssimo fim de semana.
A: Vai dizer que sentiu saudades?
E: O pior [grifo meu] é que senti mesmo.
A: Quem diria!
E: Pois é... Mas o cachorro merece.
Mais tempo será necessário para Estevão admitir algo muito pior: que também pode sentir saudades da companheira e de mim no fim de semana.
Ludovico
Ao longo de oito anos de análise, Ludovico obteve crescimento profissional, afetivo e na capacidade de entendimento de si mesmo. O que continuava a resistir era o seu ódio supostamente imortal. A cada passo à frente que dava, ele colocava uma "casca de banana", que, se não o derrubava, desvalorizava o que acabara de conquistar. Jamais se sentia pleno. A todas as pessoas próximas ele surpreendia com esses "escorregões", semelhantes aos que Freud descreve em "Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico" (1916/1974a), na parte "Os que fracassam pelo êxito" - escorregões também relacionados a mim: "Os amigos ficam perguntando o que faz esse analista que não vê o que acontece comigo"
Ludovico foi um filho temporão. Quando tinha 2 anos de idade, o pai saiu de casa para viver com outra mulher. A mãe, provavelmente tomada por uma depressão, não se viu em condições de cuidar dele. Ela ficou com os dois irmãos maiores e pediu à irmã dela, que morava em outro município, que cuidasse de Ludovico. Viam-se em alguns finais de semana e nas férias. Aos 5 anos de idade, voltou a morar com a mãe e os irmãos, mas se sentia um estranho. Surgiram dificuldades escolares e agressividade com outras crianças. Uma terapia nesse período melhorou a parte escolar, revelando inclusive uma grande inteligência. O ressentimento em relação aos pais, porém, não cessou. Ele fazia questão de demonstrar essa mágoa, "jogando na cara deles" o período do início da sua infância, além de frustrar continuamente as expectativas - a despeito de todas as tentativas dos pais de reparar a falha inicial que tiveram -, ainda que isso o prejudicasse.
O caso de Ludovico aponta para uma consequência importante do ódio mortal-imortal, que é a incapacidade de perdoar. O perdão é um tema pouco discutido em psicanálise, como indica Akhtar (2002) - talvez por ter um significado saturado pelo aspecto religioso -, apesar de estar presente, sob outros aspectos, nas obras de Freud, Klein, Winnicott e outros. Dentro do referencial que trabalho aqui, perdoar somente é possível na medida em que esteja configurada a representação de um objeto separado, pelo qual se passa a nutrir sentimentos ambivalentes. Para esses pacientes, perdoar seria uma renúncia ao vínculo narcísico, vínculo esse que buscam preservar através do ódio. Ressalte-se que funcionam por meio de um mecanismo que mantém essa forma de ligação porque não criaram um sentimento de confiança interna (e no ambiente) de que haverá uma substituição satisfatória ao vínculo narcí-sico, e não uma queda no vazio (Doin, 2009).
No começo do nono ano de análise, Ludovico foi aprovado em um concurso que o colocou no mesmo patamar acadêmico que a mãe. Conta que conversou com a sua companheira sobre a instituição para a qual fora aprovado e que a via como decadente: "Talvez fosse melhor ficar onde estou agora" Diz que a namorada ficou histérica com essa possibilidade, achando que era um absurdo ele pensar nisso, e que ela encerrou a conversa afirmando que estava na hora de ele trocar de psicanalista.
Ludovico: Não sei por que tanto alarde. Até parece que estou recebendo alguma grande herança. Como se ficar igual à minha mãe valesse alguma coisa.
Analista: Inaceitável não é receber essa herança, mas ter escolhido o mesmo caminho.
L: A única herança que recebi foi ela ter me largado na casa da tia.
A: Então ela não merece que você tenha ido pelo mesmo caminho. E, como você continua o garoto ressentido, para que assumir o cargo?
L: Já falei mais do que o suficiente que não dá para desculpar meus pais, mas você insiste.
A: E, como continuo a insistir, o seu ressentimento não permitirá que essa análise termine, pelo único motivo de que um dia você não precisará mais fazer análise comigo, e que seja somente por causa disso que ela tenha um fim.
O funcionamento psíquico e a forma de relação utilizada por Ludovico foram descritos por Grinberg (1971) numa vertente kleiniana. O sujeito não consegue alcançar uma culpa depressiva genuína porque seria vivenciada como aniquiladora. Entendo esse aniquilamento como o equivalente ao cair no vazio pela perda da relação narcísica com o objeto. Para não reconhecer a responsabilidade por um self empobrecido pelas constantes retaliações ao objeto (o que, de forma paradoxal, manteve a relação narcísica com o objeto), o sujeito assume uma culpa persecutória através das acusações que vêm do ambiente (muitas vezes, até do analista). Essa culpa, de maneira distinta da culpa depressiva, logo é expelida no exterior, formando um círculo vicioso: uma acusação é projetada no exterior, o qual reage por meio de nova acusação, e assim infinitamente. Em relação ao processo analítico, pode resultar em interrupções súbitas, reações terapêuticas negativas ou análises intermináveis.
Não é incomum que esse mecanismo psíquico favoreça a perpetuação do ódio imortal em guerras fratricidas, em conflitos de classe e em querelas religiosas. Perpetua-se quando nenhum lado admite ser o primeiro a ceder ou a aceitar sua parcela de culpa.
Em tempo, Ludovico assumiu o cargo e continuou a análise. O ódio e o ressentimento diminuíram, porém ainda não pôde abrir mão deles.
Ódio mortal, ódio imortal
O que observamos na clínica pode trazer somente em parte um entendimento sobre os tempos de ódio que costumam se abater sobre a humanidade. Interesses econômicos, jogos de poder, disputas ideológicas são fatores que influem vigorosamente na eclosão do ódio. O que estes são capazes de desencadear é o ódio que resulta dos narcisismos primitivos pouco ou nada realizados, as feridas narcísicas profundas. As primeiras vítimas do ódio mortal são o respeito às diferenças e a tolerância aos sentimentos ambivalentes, substituídos pelo narcisismo das pequenas diferenças, que Freud (1930/1974d) apontou estar na origem da maior parte dos conflitos grupais, na medida em que um dos grupos se vê melhor que o outro e projeta neste o que seria ruim, mau e desagradável.
O ódio mortal gera entre grupos diversos (de famílias a países) uma espiral de violência física e psicológica, acompanhada por sentimentos de vingança e por necessidade de retaliação de parte a parte que parecem não ter fim, geralmente passam de geração a geração e tornam o ódio imortal. A história e os tempos atuais nos fornecem uma infinidade de exemplos.
Enquanto psicanalistas, podemos ajudar indivíduos como Estevão e Ludovico a diminuir sua carga de ódio, contrabalançá-la com vivências amorosas, de modo que ambos os sentimentos estejam integrados no mundo interno. Podemos ajudar a pensar em questões complexas, como verdade, ética, culpa e reparação, que costumam permear os tempos de ódio e os difíceis momentos de elaboração posterior que ocorrem nos tempos de paz. A psicanálise hoje ampliou suas fronteiras para além da sala de análise, desenvolvendo métodos de atuação para trabalhar com grupos vulneráveis e com maior grau de desamparo, terreno fértil para a eclosão e a proliferação do ódio mortal.
Gotas no oceano? Talvez.
Motivo suficiente para persistir, como fazemos em nossa clínica diária.
Referências
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Doin, C. (2009). Culpas do ganhador, ganhos do perdedor e os impasses psicanalíticos. Trabalho apresentado no 22.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro. [ Links ]
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Correspondência:
Bernard Miodownik
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betchkov@uol.com.br
Recebido em 20/12/2017
Aceito em 02/01/2018
1 Texto vencedor do Prêmio Fábio Leite Lobo, conferido durante o 26.° Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Fortaleza, Ceará, de 1 a 4 de novembro de 2017.
2 A apresentação do material clínico segue as recomendações encontradas em Gabbard (2000a).