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Revista Brasileira de Psicanálise
Print version ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.53 no.2 São Paulo Apr./June 2019
FEMININO, OUTRAS REFLEXÕES
O feminino, o analista e o teórico infantil1,2
The feminine, the analyst and the child theorist
Lo femenino, el analista y el teórico infantil
Le féminin, l'analyste et le théoricien infantile
Dominique ScarfoneI; Tradução Sonia Augusto
IProfessor honorário da Universidade de Montreal, membro da Sociedade Psicanalítica do Canadá (CPS) e Sociedade Psicanalítica de Montreal (SPM). Ex-editor associado do International Journal of Psychoanalysis, escreveu vários artigos em revistas internacionais e contribuiu com vários capítulos de livros
RESUMO
Freud, inventor de um método revolucionário de investigação que derrubou muitas visões tradicionais, formulou uma teoria conservadora sobre a feminilidade. Deixando de lado a equação pessoal de Freud, o autor explora os fatores intra-teóricos que podem tê-lo desencaminhado e adverte contra sua persistência no pensamento psicanalítico de hoje.
Palavras-chave: psicanálise, feminino, teoria freudiana da feminilidade, teoria infantil da sexualidade
ABSTRACT
Freud, inventor of a revolutionary method of inquiry that overthrew many traditional views, nevertheless formulated a most conservative theory about femininity. Leaving Freud's personal equation aside, the author explores the intra-theoretical factors that may have driven him astray and warns against their persistence in today's psychoanalytical thinking.
Keywords: psychoanalysis, feminine, Freudian theory of femininity, infantile theory of sexuality
RESUMEN
Freud, inventor de un método revolucionario de investigación que derrumbó muchas visiones tradicionales, formuló una teoría conservadora sobre la femineidad. Dejando de lado la ecuación personal de Freud, el autor explora los factores intra-teóricos que pueden haberlo desencaminado y advierte contra su persistencia en el pensamiento psicoanalítico actual.
Palabras clave: psicoanálisis, femenino, teoría freudiana de la feminidad, teoría infantil de la sexualidad
RÉSUMÉ
Freud, inventor of a revolutionary method of inquiry that overthrew many traditional views, nevertheless formulated a most conservative theory about femininity. Leaving Freud's personal equation aside, the author explores the intra-theoretical factors that may have driven him astray and warns against their persistence in today's psychoanalytical thinking.
Mots-clés: psychoanalysis, feminine, Freudian theory of femininity, infantile theory of sexuality
Quando considerada de um ponto de vista extra-analítico - antropológico, sociológico ou histórico -, por exemplo por meio do trabalho de Françoise Héritier (1996, 2002) e de muitos outros,3 a palavra feminino narra a história de uma luta prolongada e, ainda assim, inacabada entre forças assimétricas na sociedade humana. A divisão de trabalho primeira, que permanece na fonte de muitas formas de dominação, exploração e abuso, foi desde o princípio uma divisão de trabalho masculino/feminino, criando um relacionamento não só assimétrico, mas também hierárquico, em que as mulheres ocupam a extremidade inferior. Para Héritier, sempre foi, no final, a luta pelo controle do corpo feminino e de sua capacidade de reprodução. Seria simplista considerar apenas esse elemento da equação, mas certamente esse tem sido um fator constante e oculto na história há até relativamente pouco tempo, quando os métodos eficazes de contracepção e a luta em relação ao controle da fertilidade trouxeram a questão à luz do dia. Essa é uma nova história, com apenas algumas décadas de idade. Não é de admirar que ela desafie a ideologia dominante, introduzindo mudanças rápidas e inquietantes em relação ao lugar e ao papel de homens e mulheres, à natureza e à identidade de gênero e às múltiplas formas de sexualidade, e questionando ponto a ponto a aparente divisão simples de antigamente.
Considere, por exemplo, o que Freud escreveu em 1908:
Se pudéssemos nos despir de nossa existência corpórea e ver as coisas da Terra com um olhar novo, como seres puramente pensantes, por exemplo, vindos de outro planeta, talvez nada chamasse nossa atenção mais forçosamente do que o fato da existência de dois sexos entre os seres humanos, que, embora tão similares em outros aspectos, ainda assim marcassem a diferença entre eles com sinais externos tão óbvios. (1959, pp. 211-212)
Se Freud pudesse retomar a existência corporal hoje, ele ficaria surpreso ao encontrar sinais externos voltados não tanto a marcar a diferença entre os sexos, mas a torná-la menos nítida. Mesmo para sua época, Freud talvez estivesse pintando um cenário simples demais, pois, embora os sinais externos fossem diferentes, ele sabia bem que homens e mulheres podem ser mais ou menos "masculinos", mais ou menos "femininos", encarnando e experimentando várias combinações dos dois componentes e dando a eles, consciente ou inconscientemente, diferentes significados e valores. Ao postular, com seu antigo amigo Wilhelm Fliess, uma constituição bissexual humana básica, Freud perturbou a doxa de seu tempo, e a psicanálise foi provavelmente a história mais revolucionária da cidade quando ele introduziu a sexualidade infantil no cerne do inconsciente, com os impulsos sexuais expressando o "demoníaco" na alma humana. No entanto, em relação às mulheres, ele acabou formulando um conjunto de visões normativas alinhadas com a mais conservadora das ideologias. Não entrarei em muitos detalhes aqui, pois esses são fatos bem conhecidos. Basta mencionar que as visões dele a respeito da sexualidade feminina culminaram em 1933 em uma teoria muito constrangedora, pelo menos retrospectivamente.
Uma triste ironia está em ação aqui. Nas primeiras páginas de sua palestra intitulada "Feminilidade", Freud afirma:
A psicanálise não tenta descrever o que a mulher é - essa seria uma tarefa que mal poderia realizar -, mas se propõe a investigar como ela chega a ser, como uma mulher se desenvolve a partir de uma criança com uma disposição bissexual. (1933/1964b, p. 116)
Isso tem toda a aparência de um precursor da famosa fala de Simone de Beauvoir: "On ne naît pas femme, on le devient" ("Não se nasce mulher, torna-se mulher") (1949, p. 13). Ai de mim! O resto do texto trará uma grande decepção. A mulher que finalmente "vem a ser" no estudo de Freud não passa de uma versão menor de um ser humano masculino. Ela "[descobre] que é castrada [e esse] é um ponto decisivo no crescimento de uma menina (1933/1964b, p. 126). Por muitos anos, pensei que Freud quisesse dizer: "A menina tem a impressão errada de que ela é castrada"... Mas uma releitura atenta de seus ensaios sobre a questão mostra que ele foi muito literal e que, em 1933, concebia claramente as mulheres como realmente castradas. Para ele, quando uma mulher chega para a análise, ela pode estar só atuando o desejo incansável de "conseguir o pênis ansiado". Tanto assim que esperar da análise "uma capacidade, por exemplo, de seguir uma profissão intelectual - pode muitas vezes ser reconhecido como uma modificação sublimada desse desejo reprimido" (p. 125). Mesmo quando ela volta seus anseios libidinais para o pai, a menina só está buscando o pênis que a mãe lhe recusou e que agora ela espera dele. Aqui de novo seria possível pensar que Freud está simplesmente relatando as teorias sexuais infantis descobertas durante a análise de suas pacientes, sem necessariamente endossá-las. Na verdade, ele estava importando-as sem crítica para a teoria psicanalítica oficial (trato mais desse assunto adiante).
No caminho normativo mapeado por Freud, "a situação feminina só é estabelecida se o desejo por um pênis for substituído pelo desejo por um bebê, isto é, se um bebê tomar o lugar de um pênis de acordo com uma equivalência simbólica antiga" (p. 128). Deve-se renunciar a partes da anatomia sexual da mulher, diz Freud. O clitóris, por exemplo, sendo na opinião dele apenas um equivalente ao pênis atrofiado, "com a mudança para a feminilidade deve entregar, totalmente ou em parte, sua sensibilidade e sua importância à vagina" (p. 118). Como indicou Karen Horney (1926), Freud não diz por que a mulher não poderia simplesmente investir primeiro em uma parte e, depois, em todo o seu aparelho sexual, sem necessidade de abandonar uma parte pela outra; ou por que a masturbação clitoriana da menininha deveria ser vista como uma atividade sexual masculina. Ao advogar o abandono do clitóris em favor apenas da vagina, o próprio Freud estava realizando uma castração teórica, uma excisão simbólica das mulheres em nome de uma feminilidade supostamente autêntica. Ver as mulheres como castradas era, portanto, mais uma prescrição do que uma descrição.
Ao olhar para essas visões freudianas, minha intenção não é histórica. A questão do feminino na psicanálise ainda é um ponto de confusão. Embora não compartilhemos as visões de Freud sobre o assunto, ainda podemos cometer erros semelhantes aos dele - por exemplo, ao propor novas versões, por mais bem-intencionadas que sejam, sobre o que a feminilidade "realmente" é. As concepções equivocadas de Freud eram em ampla medida ideológicas e refletiam, sob uma aparência científica, o preconceito de sua época. Mas as coisas com certeza não eram tão simples, e obviamente há mais de uma maneira de revisitar, com uma abordagem crítica, a questão do feminino dentro da obra freudiana. Jacques André (1995), por exemplo, fez uma importante contribuição a esse respeito, localizando o feminino nas próprias origens da sexualidade.
O presente estudo examina o problema de outro ângulo. Considerando que Freud inventou um método de investigação revolucionário, que substituiu muitas visões tradicionais da condição humana, o problema se situa em como explicar seu desvio em relação ao feminino. Laplanche (1987/2016) insistiu que um pensador como Freud não se engana por distração, que devem existir razões intrínsecas ao próprio processo de construção da teoria. Meu objetivo, portanto, é examinar onde, de que maneira e de acordo com qual lógica interna Freud, o teórico, se desviou, aparentemente esquecido de seu método e de suas corajosas batalhas contra o pensamento tradicional. No espírito de Laplanche, espero demonstrar que tudo começou com o abandono da teoria da sedução.
Um denominador comum
O importante estudo escrito por Karen Horney em 1926, "The flight from womanhood", contém uma tabela que compara, em duas colunas, as teorias sexuais infantis do menino e a visão psicanalítica oficial do desenvolvimento feminino. As semelhanças são tão surpreendentes que, como ela observou, "a atual imagem analítica do desenvolvimento feminino (independentemente de essa imagem estar ou não correta) pouco difere das ideias típicas que o menino tem da menina" (p. 327). A demonstração dela a respeito da superposição quase perfeita entre a "ideia típica de menina" que o menino tem e a visão psicanalítica prevalente do desenvolvimento feminino é muito útil no exame de um importante aspecto das concepções equivocadas de Freud. Mas não é necessário, como foi o caso de Horney, tomar um caminho totalmente diferente de Freud para criticar a visão dele. A comparação das teorias infantis com a teoria psicanalítica prevalente penetra mais profundamente nos problemas teóricos enfrentados por Freud do que ela mesma percebeu na época. De fato, a psicanálise revela as teorias infantis que os pacientes carregam em sua mente, mas essas teorias não devem ser tomadas como a teoria psicanalítica que pode ser construída a partir da experiência analítica. Um fato é claro: Freud realmente fundiu as teorias infantis coletadas de seus pacientes, especialmente o pequeno Hans, com a própria teoria psicanalítica. A questão é: como isso aconteceu?
Uma pista é que, para Freud, por mais errôneas que fossem, as teorias infantis ainda assim continham um grão de verdade. Essa ideia foi intensamente reforçada nele depois de ter trocado a teoria da sedução da neurose pela teoria filogenética das fantasias primais inatas. A troca foi dramática, como Jean Laplanche (1987/2016) demonstrou, pois, enquanto Freud estava correto ao revisar sua teoria da sedução como a teoria etiológica da neurose, ele cortou muito mais do que precisava na época, ou seja, a primazia do outro, a ideia da temporalidade psíquica complexa (après-coup) e o modelo de tradução do funcionamento psíquico. Essas são noções pragmáticas, intimamente unidas.
A primazia do outro significa que a sexualidade infantil não é inata, mas implantada por meio da sedução inconsciente do bebê pelo adulto. Essa é uma forma de sedução inescapável e generalizada que ocorre por meio da emissão de mensagens que são, por assim dizer, "infectadas" pelos impulsos sexuais não conscientes do adulto e pelas fantasias deste em relação à criança. As crianças não podem achar sentido nessa dimensão da comunicação, mas mesmo assim são afetadas pelo caráter enigmático da mensagem e atraídas a traduzi-la da melhor maneira que podem. Em 1896, Freud havia comunicado em particular a Fliess a hipótese (hoje amplamente confirmada) de que a psique está continuamente transcrevendo e traduzindo os traços de memória das percepções e de que o que chamamos clinicamente de repressão não passa de uma falha na tradução. Desse modelo Laplanche extraiu a ideia de que a falha na tradução, ou repressão primal, é um processo contínuo, que dá origem ao mesmo tempo ao ego (no lado do que é traduzido) e ao inconsciente reprimido (no lado dos resíduos não traduzidos). Dado que a tradução é um processo contínuo, ela também explica a estrutura après-coup do tempo psíquico e da construção não linear da psique, ou seja, ela tem um efeito retroativo e está sujeita aos esforços renovados de tradução. O passado é constantemente reconstruído em vez de operar em uma linha reta cronológica de causalidade (Scarfone, 2015). Aliás, isso é o que realmente torna a análise possível, pois o momento analítico de desfazer as traduções existentes abre o caminho para traduções (ou simboliza-ções) après-coup novas e mais abrangentes.
A tradução da criança não implica que os significados resultantes sejam interpretações exatas. As teorias sexuais infantis são exemplos extraordinários de como, apesar de seus esforços, as crianças só conseguem traduzir até certo ponto. O problema aqui é que Freud, baseando-se na teoria da transmissão filogenética, pensou que as teorias infantis eram um reflexo, mesmo que imperfeito, de eventos arcaicos reais. Isso explica em parte por que ele integrou tão empolgadamente as teorias infantis do pequeno Hans na teoria psicanalítica oficial. Por isso, a teoria infantil da castração acabou sendo vista não como uma teoria elaborada por uma criança com capacidade de tradução limitada, mas como uma teoria que continha alguma verdade histórica transferida por meio de transmissão genética desde os inícios arcaicos da humanidade. Assim, abandonando a teoria da sedução, Freud em grande medida reafirmou o tempo linear em lugar da estrutura après-coup. Essa virada teórica crucial se reflete na própria mudança de vocabulário de Freud. Enquanto em 1908 as teorias infantis eram chamadas por ele de falsas teorias sexuais e crenças equivocadas, cerca de 10 anos depois elas haviam se transformado em fantasias primais, isto é, um dote filogenético que podia aparecer quando a teorização da criança era insuficiente. Nessas fantasias primais, "o indivíduo vai além de sua própria experiência, até a experiência primordial" (1916-1917/1963b, p. 371). Mesmo se não dermos crédito à teoria da transmissão filogenética das fantasias, a linearidade ainda é uma ameaça; ainda nos arriscamos a cometer o erro de importar como tal na psicanálise o que é coletado por meio da observação direta das crianças. A tentação aqui é interpretar dado comportamento das crianças como uma ocorrência "natural" a ser mapeada em um caminho de desenvolvimento normativo e linear.
O denominador comum entre os desvios de Freud e os que ainda corremos o risco de cometer hoje é esquecer que a criança é um tradutor nato. Como mencionado, desde o nascimento, uma pressão constante é exercida sobre a psique da criança para encontrar sentido no que se impõe a ela vindo do ambiente. Novamente, as formas mito-simbólicas que ela usa para construir teorias sobre si mesma e o mundo são fornecidas pelo próprio ambiente. Assim, como Horney - inspirada pela filosofia de Georg Simmel - também observou com perspicácia, não é de surpreender que as teorias da menina pequena sobre castração convirjam com as do menino pequeno: ambos foram criados em uma sociedade patriarcal. Horney invocou a ideia de interação entre fatores sociais e psíquicos, mas pareceu perdida quanto ao modo como isso realmente operava. Quanto ao modelo de tradução da psique, ele não tem necessidade de interação; em vez disso, ele descreve um processo em que nada entra na mente sem primeiro ser metabolizado segundo a capacidade de tradução do indivíduo. Como o ambiente social fornece tanto a matéria-prima a ser traduzida (a mensagem enigmática) quanto as ferramentas simbólicas culturalmente determinadas usadas na tradução, segue-se que a observação direta da criança não pode nos dar uma imagem de um "curso natural" no desenvolvimento psíquico infantil, porque não existe um curso natural. A única coisa verdadeiramente "natural" é o esforço constante da criança para achar um sentido (traduzir) nas mensagens emitidas pelas pessoas que importam. As teorias e as fantasias sexuais infantis são o produto desse esforço. Isso não exclui uma aparente universalidade, que dá a impressão de um estado "natural" ou "nato". De fato, os determinantes culturais são muito similares para todos os membros de dada cultura,4 e as experiências corporais das crianças também são similares.
Entre as mensagens decisivas que a criança precisa traduzir para si mesma estão as que realizam a atribuição de gênero. Essa atribuição precede em muito a descoberta real da própria anatomia sexual e/ou da anatomia dos outros. Isso levou Laplanche a formular uma proposição em relação a sexo, gênero e inconsciente: "O sexual é o resíduo inconsciente da simbolização-repressão do gênero pelo sexo" (2003/2011, p. 159). O importante aqui é que a atribuição de gênero é uma mensagem, enquanto sexo (anatomia sexual) é o objeto da percepção. Para a criança, que é a destinatária da atribuição de gênero e que deve interpretar seus "contaminantes" enigmáticos a fim de criar sua própria versão disso, perceber as diferenças anatômicas - uma percepção não desprovida de influências culturais - oferece uma chave importante. Mas a atribuição de gênero envolve muito mais do que a dicotomia masculino/feminino. Gênero e sexo nunca se sobrepõem completamente. A tradução (chamada por Laplanche de simbolização-repressão) não tem como abranger todos os determinantes, que na verdade são inconscientes para os próprios adultos e incluem seus desejos, fantasias e identificações não conscientes, passados para a criança sob a ideia aparentemente "simples" de menino ou menina. O que a tradução inevitavelmente incompleta deixará para trás (isto é, reprimirá) é o "sexual" inconsciente e residual, a parte em que nenhuma criança tem possibilidade de achar sentido, pois não há um código disponível.5 Laplanche denomina esse resíduo de o objeto-fonte dos impulsos, querendo dizer que ele exercerá uma pressão constante sobre a tradução/repressão. O léxico masculino/feminino, porém, é uma ferramenta importante nos esforços de tradução da criança, influenciando intensamente as teorias sexuais infantis, como as formuladas pelo pequeno Hans. Assim, foram os esforços de tradução da criança que se transformaram no que Freud acabou confundindo com fantasias inatas.
O que importa neste ponto é observar que as teorias, as fantasias e os complexos infantis, com o complexo de castração no seu centro, são formulados em resposta aos enigmas que viajam como clandestinos em afirmações aparentemente simples como "Você é uma menina (ou um menino)". Portanto, eles não são "primais" no sentido filogenético ou inato e são intensamente influenciados pela matriz sociocultural em que as crianças são criadas.
Então, o que pode ser dito psicanaliticamente sobre o feminino?
Como Françoise Héritier afirmou, é impossível não se referir à dualidade masculino/feminino. As teorias sexuais, infantis ou adultas, necessariamente dizem respeito ao corpo percebido-como-sexuado - mais precisamente, às diferenças que isso conota. Mesmo expressões que não mencionam a dualidade (por exemplo, cisgênero, transgênero, queer6 etc.) acabam aludindo, ainda que indiretamente, à dicotomia masculino/feminino. Por sua própria existência, os prefixos cis e trans, por exemplo, indicam o posicionamento do gênero em relação ao sexo, isto é, apontam inevitavelmente a diferença.7 Do mesmo modo, a afirmação ativa do desvio refletido no termo gênero não binário sugere necessariamente um afastamento da norma de gênero implícita ou virtual. É importante observar, porém, que na sexualidade humana já há sempre o desvio e que não existe nenhuma linha reta sexual da qual se desviar, para começo de conversa (Scarfone, 2014).
No entanto, esse tipo de pensamento exige um esforço sistemático, que pode ser difícil de conseguir na fala cotidiana. Desde Copérnico sabemos que o Sol não está realmente se pondo, mas mesmo assim, em vez de nos referirmos à ciência da astronomia na vida diária, ainda vemos um pôr do Sol e nada pode impedir essa percepção ingênua. De maneira similar, o termo feminino sempre terá um relacionamento de camadas com o sexo feminino, e algumas metáforas resultam disso. Com as metáforas, contudo, nos arriscamos a importar avidamente e sem crítica expressões questionáveis, como receptividade feminina, para nossa linguagem psicanalítica (Balsam, 2018; Steiner, 2018). Também podemos facilmente ser levados a naturalizar e ontologizar a feminilidade ao selecionar uma ou mais partes do corpo feminino. Afinal de contas, todos nascemos de uma mulher, isto é, fomos expelidos de seu útero hospitaleiro, que possivelmente gravou um traço de lembrança indelével, embora inexprimível, na memória de nossa existência intrauterina. Qualquer que seja o caso, precisamos ter em mente a estrutura do tempo après-coup que resulta do processo constante de tradução, pois é responsável pela construção - e pela atualização - das teorias sexuais infantis. Isso significa que, exatamente quando pensamos nos referir a uma disposição natural em nós, pelo próprio fato de formulá-la em palavras, estamos tomando emprestados os elementos culturais que contribuíram para nossa capacidade original de formulá-los. Segue-se que a psicanálise não tem como definir sem ao mesmo tempo prescrever o que é o feminino. Mesmo uma definição baseada na experiência pessoal mais íntima do analista ou de seu paciente seria, apesar disso, arbitrária e não baseada em nenhum alicerce metapsicológico sólido.
A psicanálise, acredito, é um exemplo do que poderia ser chamado de método ético-epistêmico, o que quer dizer que sua ética e sua epistemologia são duas faces da mesma moeda (Scarfone, 2012, 2017). A posição ética que adotamos determina os tipos de fato psíquico que nós e nossos pacientes somos capazes de eliciar. Um importante princípio ético da prática psicanalítica foi formulado por Laplanche (1991) como a recusa a conhecer ativa por parte do psicanalista, isto é, a recusa a conhecer qual é o "melhor caminho" para que o analisando siga (ou a melhor decisão, a melhor escolha de objeto etc.) -essencialmente a recusa a conhecer aonde a análise deveria ir, exceto de um modo geral. Isso não é a neutralidade pela neutralidade, mas reflete o fato de que analisar é principalmente uma tarefa negativa (analisar é, afinal de contas, des-enrolar, des-embaraçar), e deveríamos portanto evitar fazer afirmativas sintéticas - e normativas -, especialmente quando se trata de valores sociais e de seu efeito sobre as escolhas individuais. Freud parecia concordar com a visão de que a síntese não é nossa responsabilidade quando, em uma carta a Oskar Pfister, escreveu: "Na técnica da psicanálise não há necessidade de nenhum trabalho sintético especial; o indivíduo faz isso por si mesmo melhor do que poderiamos fazer" (1963a, p. 62). É uma pena que ele não tenha seguido o próprio conselho no que se refere à feminilidade.
Se estou certo a respeito de a ética do psicanalista determinar, em certa medida, os tipos de fato (pensamentos, teorias, fantasias, complexos afetivos) que são encontrados no decorrer da análise, segue-se que o analista não pode, talvez, ter uma ideia - normativa ou não - sobre aonde o analisando deveria estar indo em termos de identidade de gênero, orientação sexual e outras questões relacionadas. Como analistas, simplesmente não podemos e não devemos afirmar que sabemos como o feminino (ou o masculino) é ou deveria ser. Nosso papel é alimentar os processos de elaboração, com o objetivo de desembaraçar a psique de suas ideologias psicológicas rígidas. Conforme a análise se desenvolve, nossos pacientes devem ser capazes de se definir a respeito de sua feminilidade, masculinidade ou não binariedade.
E no entanto...
E no entanto, como eu disse antes citando Héritier, a dicotomia masculino/feminino tem tamanho controle sobre nosso pensamento que, quando se trata de falar da posição de gênero dos dois parceiros analíticos, devemos perdoar a nós mesmos e a nossos pacientes por conjurar metáforas que pertencem a uma dotação sexual dual. Sugiro, porém, que existem maneiras efetivas de contornar as armadilhas ideológicas em relação à feminilidade.
Se a tarefa analítica é essencialmente desfazer as teorias, ideologias etc., em resumo, as sínteses que nossos analisandos trazem para a sessão, isso significa que sempre deixamos que os próprios pacientes reformulem as questões com que lidamos analiticamente. Podemos fazer isso sem falhas? Provavelmente não. Como Freud aprendeu, o que é expulso pela porta da frente volta e entra pela janela. Mas esse é um problema de pouca importância se a atmosfera geral da análise e a elaboração da transferência tiverem dado à analisanda um sentido de liberdade, uma capacidade de pensar por si mesma e, finalmente, de contestar e se desviar da sugestão do ambiente. Além disso, é responsabilidade do analista verificar continuamente a colusão inconsciente entre paciente e analista, lembrando o preceito de Freud (1937/1964a) de que nem um sim nem um não do paciente têm algum valor epistemológico. O que buscamos são intervenções que abram novos panoramas para o analisando e que eliciem novos materiais para serem analisados.
Outra maneira de evitar as armadilhas ideológicas é elaborar ferramentas conceituais que sublimem nossas metáforas espontaneamente definidas quanto ao gênero. Freud (1933/1964b) fez um gesto nessa direção quando alertou contra igualar feminilidade com passividade e falou, em vez disso, de atividade com uma meta passiva. Uma solução melhor ainda é a proposta por Lyotard (1988): ele sugeriu a substituição de passividade [passivity] por passibilidade [passibility]. A palavra francesa passibilité é tão incomum quanto passibility em inglês [ou passibilidade em português], mas elas têm o mesmo significado: "A qualidade de ser passível; a capacidade de experimentar boas ou más sensações ou de sofrer" ("Passibility", 2019).
Um bom exemplo de passibilidade ocorre no trabalho da transferência. Aqui, passibilidade capta a capacidade do analista para ser afetado ou para sustentar sensações que podem ser difíceis de tolerar. Mas isso não tem nada de especificamente feminino. É uma disposição neutra em relação ao gênero e inerentemente analítica. Ela requer do analista o que, conforme Hamlet, podemos chamar de prontidão para se tornar disponível ao analisando (Scarfone, 2018), isto é, para oferecer um espaço a ambas as formas de transferência, preenchida e esvaziada (Laplanche, 1991). O espaço em questão pode bem ser fantasiado pelo analisando, ou pelo analista, como um útero maternal. Ninguém deveria se ofender com uma representação de gênero como essa, desde que ela continue a ser material para análise posterior. Resistir à passibilidade, por outro lado, pode refletir uma resistência a uma autorrepresentação "feminina" no analista. Esse foi aparentemente o caso com Freud quando sua paciente Hilda Doolittle desenvolveu uma transferência maternal. Segundo ela, em certo ponto, Freud declarou: "Eu devo lhe dizer ... eu não gosto de ser a mãe na transferência - isso sempre me surpreende e me choca um pouco. Eu me sinto muito masculino" (H. D., 1956/2012).
Novamente, o dualismo sexual em nosso pensamento é insuperável, como já vimos. Como a luta pelo controle do corpo feminino e de sua capacidade reprodutiva nos lembra, a anatomia e a fisiologia importam. Minha prática cotidiana com pacientes mulheres me mostra repetidamente quantos traumas, frustrações e constrangimentos na família, no local de trabalho ou nos relacionamentos amorosos indicam a posição de inferioridade a que elas, como mulheres, seriam relegadas se abandonassem a luta para afirmar, dia após dia, sua igualdade e dignidade. Em última análise, a luta delas diz respeito ao controle de seu corpo, ao redor do qual as teorias infantis são facilmente reativadas e se coordenam bem demais com o ambiente ideológico existente, bruto ou sutil. Enquanto seu interlocutor, eu falharia com minhas pacientes se ignorasse o modo como essas representações externas e internas se fundem e pesam sobre a condição delas, uma condição que diz respeito ao cidadão em mim. Meu papel na sessão analítica, porém, é não intervir na luta social externa delas (como analistas, não podemos afirmar a posse de ferramentas para esse propósito). Apenas implementando a desconstrução analítica das teorias infantis em funcionamento na psique do analisando, que como vimos coludem com ideologias sexistas, a análise pode alimentar - em pacientes mulheres e homens - a capacidade de perceber suas identificações feminina e masculina com todas as suas complexas implicações. Nesse processo, referir-se ao binário sexual não é um problema, desde que esses opostos não sejam representações de gênero ideológicas e congeladas, mas participantes de uma dialética viva, elaborando suas contradições mesmo que não haja uma síntese final à vista.
Referências
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Scarfone, D. (2018). De la disponibilité au transfert: le leçon d'Hamlet. Revue Française de Psychosomatique, 53,6-19. [ Links ]
Steiner, J. (2018). Overcoming obstacles in analysis: is it possible to relinquish omnipotence and accept receptive femininity? The Psychoanalytic Quarterly, 82(1),1-20. [ Links ]
Correspondência:
Dominique Scarfone
1430 Redpath Crescent
QC H3G 1A2, Montreal, CAN
dscarfone@gmail.com
Recebido em 25/2/2019
Aceito em 11/3/2019
1 Quero agradecer a Avgi Saketopoulou por seus comentários e sugestões ponderados sobre muitos aspectos deste artigo. Agradeço também a Jane V Kite pela ajuda na revisão linguística.
2 O autor detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do ipa London Congress, sob o título "The feminine", de 24 a 27 de julho de 2019, com registro disponível no site da ipa www.ipa.world/london.
3 Devido a limites de tempo e espaço, tive de deixar de fora muitas contribuições significativas.
4 Exceto em casos de subculturas e sistemas familiares fechados e peculiares - em seitas, por exemplo.
5 Devido à ausência de um código, prefiro falar em transdução em vez de tradução.
6 NE: "Considerado até recentemente ofensivo e difamatório (originalmente, a palavra quer dizer 'anormal', 'devasso', 'tarado', 'depravado'), o termo queer tornou-se representativo de toda uma corrente de pensamento e pesquisa acadêmica que luta contra a heterossexualidade compulsória e faz oposição sistemática aos binarismos fáceis (homem-mulher, por exemplo). Essas, entre outras, são características que conferem uma aura de transgressão e contestação ao pensamento queer. Os principais formuladores da teoria queer conclamam a uma postura autocrítica, a uma atitude crítica que incida sobre o próprio sujeito queer, aludindo-se até mesmo à hipótese de abandonar o termo em favor de outro(s) que produza(m) ações políticas mais efetivas. Na verdade, o termo queer propõe uma concepção mais ampla, pois a rigor uma pessoa pode ser queer, em virtude dos seus conflitos de gênero, e ainda ter uma orientação heterossexual. Queer também tem sido usado como um rótulo para identificar discursos, ideologias e estilos de vida que tipificam o universo lgbt dominante (de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros)" ("Glossário", 2017, Revista Brasileira de Psicanálise, 51(2), p. 254).
7 Poderia ser dito que o que não pode ser apagado é a / (barra) em masculino/feminino, isto é, o marcador da própria diferença.