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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021
TEMAS LIVRES
Uma poética do feminino: considerações sobre uma certa hora perigosa1
A poetics of the feminine: reflections on a certain dangerous hour
Una poética de lo femenino: consideraciones sobre cierta hora peligrosa
Une poétique du féminin: réflexions sur une certaine heure dangereuse
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP). São Paulo / vlamannoadamo@gmail.com
RESUMO
Entrelaçando fragmentos de uma experiência clínica com a narrativa de um dia na vida de Ana, personagem de um conto da escritora Clarice Lispector, a autora considera o feminino não como um adjetivo, uma qualidade, mas como um estado mental, algo não definitivo, não adquirido e perdido de forma absoluta; um estado mental fugidio que encarna o constitutivo do ser humano, isto é, o enigma da criação, a vida e a morte, o indizível, o mistério, a falta; o feminino como uma metáfora do sujeito na psicanálise, constituindo-se permanentemente na sustentação e no repúdio ao que espanta, fascina, causa horror e assombro.
Palavras-chave: feminino, estado mental, poesia, epifania, Clarice Lispector
ABSTRACT
Interweaving fragments of a clinical experience with the narrative of a day in the life of Ana, a character in a short story written by Clarice Lispector, the author considers the feminine not an adjective or a quality, but rather a mental state, something that is not definitive, not acquired and altogether lost; it is a fleeting mental state that embodies what constitutes the human being, that is to say, the enigma of creation, life and death, the unsayable, the mysterious, the lack; the feminine as a metaphor for the subject in psychoanalysis, which is permanently constituted in the support and repudiation of what frightens, fascinates, causes horror and dread.
Keywords: feminine, mental state, poetry, epiphany, Clarice Lispector
RESUMEN
Entrelazando fragmentos de una experiencia clínica con la narrativa de un día en la vida de Ana, personaje de un cuento de la escritora Clarice Lispector, la autora considera lo femenino no como un adjetivo, una cualidad, sino como un estado mental, algo no definitivo, no adquirido y perdido absolutamente; un estado mental fugaz que encarna lo que constituye el ser humano, es decir, el enigma de la creación, la vida y la muerte, lo indecible, el misterio, la carencia; lo femenino como metáfora del sujeto en psicoanálisis, constituyéndose permanentemente en el soporte y el rechazo de lo que asombra, fascina, provoca horror y asombro.
Palabras clave: mujer, estado mental, poesía, epifanía, Clarice Lispector
RÉSUMÉ
Entrelaçant des fragments d'une expérience clinique avec le récit d'une journée dans la vie d'Ana, le personnage d'une nouvelle de l'écrivaine Clarice Lispector, l'auteure considère que le féminin n'est pas un adjectif, une qualité, mais un état mental, quelque chose de non définitif, pas acquis et absolument perdu ; un état mental fugace qui incarne ce qui constitue l'être humain, c'est-à-dire, l'énigme de la création, la vie et la mort, l'indicible, le mystère, le manque ; le féminin comme métaphore du sujet en psychanalyse, se constituant en permanence dans le support et le rejet de ce qui étonne, fascine, fait horreur et stupéfaction.
Mots-clés: féminin, état mental, poésie, épiphanie, Clarice Lispector
Após alguns minutos de silêncio, ela disse: "Eu estava tão bem, mas assim que me deitei comecei a sentir raiva. Acho que é raiva, mas não tenho certeza. Parecia tudo tão bem, e agora essa sensação ruim".
Depois de uma pequena pausa, perguntou: "Por que estou me sentindo assim?".
"Te assusta sair da tranquilidade?", questionei.
"Se eu deixar sair tudo o que está aqui dentro, nem sei o que aconteceria", respondeu.
Depois se manteve em silêncio. Naquele final de tarde instável, seu corpo estava imóvel no divã. Percebi que apertava com força os braços cruzados sobre o peito. Voltou a dizer: "Se eu deixar sair tudo o que está aqui dentro".
Manteve-se em silêncio por mais algum tempo. Eu não interferi.
Em seguida, falou sobre a personagem de um conto de Clarice Lispector:
É sobre uma mulher que tem mais ou menos a minha idade. E olha que interessante: ela tem o mesmo nome que o meu. É uma mulher tranquila e em paz consigo mesma, mas numa certa hora da tarde tudo fica muito perigoso.
Para falar sobre a mulher que de repente perdeu a serenidade, minha paciente introduziu na sessão o seu duplo especular, personagem de Lispector.
Após uma pausa, ela perguntou: "Clarice Lispector se suicidou?".
Silêncio.
"Acho que é por isso que muitos artistas se suicidam. É quase sempre impossível tolerar essa coisa, essa explosão. Mas talvez seja por tolerarem tudo isso que se tornam artistas. Ou criam ou morrem", murmurou.
Conversei com ela, nessa ocasião, sobre essa pergunta, que continha tantas outras dentro de si. Seria possível experimentar o desejo, a necessidade, o vazio e continuar viva? Seria possível suportar tamanha tensão? Preferível a morte? Preferível a vida psíquica congelada, mesmo tendo como consequência a cabeça oca e uma solidão miserável?
Ana e seu duplo especular
Eu não conhecia o conto de Lispector mencionado pela paciente. Fui procurá-lo dias depois da nossa sessão.
Ana é uma mulher de 37 anos, descrita como tranquila e em paz consigo mesma. Os filhos cresciam. O marido retornava à casa na hora certa. Ana dava conta de tudo: casa, marido, filhos.
No entanto, certa hora da tarde era perigosa. Certa hora da tarde, tudo o que havia construído ria dela. Quando nada mais precisava dela, inquietava-se. "Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se" (Lispector, 1993, p. 30).
Mudara muito desde que se casara e tivera filhos. Antes de virar mulher, na adolescência, uma exaltação perturbadora, uma turbulência insuportável. Apesar da mudança ainda havia a hora perigosa. Quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, quando olhava os móveis limpos e seu coração se apertava em espanto, essa era a hora perigosa. E como na sua vida não havia mais lugar para sentir ternura pelo seu espanto, ela "abafava-o com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido" (p. 31).
Para precaver-se da casa vazia, fazia compras no supermercado, levava os objetos para consertar. Quando voltava, os filhos estavam para chegar, e só restava cuidar deles até que a noite chegasse com sua tranquila vibração.
Mas um dia, voltando para casa com as compras já feitas, o bonde vacilando nos trilhos, entrando em ruas largas e anunciando o final da tarde, nesse dia ela enxergou um homem no ponto do ônibus. O homem estava parado, imóvel. Era um homem cego. Então ela viu: o homem cego mascava chiclete.
Inclinada olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada. (p. 32)
Não conseguia tirar os olhos de cima dele. Não conseguia deixar de olhá-lo profundamente. O coração batia espaçado, forte. As compras caíram de suas mãos. Ana deu um grito. Tentou se aprumar, pálida. Uma sensação, uma expressão de rosto há muito não usada, há muito não sentida, ressurgia incompreensível.
Todos os ovos se quebraram. As gemas amarelas e viscosas purgavam. O mal estava feito.
Por um momento, não conseguiu saber onde estava. Havia passado da rua de sua casa. Parecia ter saltado no meio da noite. Seu coração batia de medo. Em vão tentava reconhecer os arredores. Com muito custo, retornou para casa.
Depois veio o marido, jantaram, e a noite chegou. Ana conseguiu por fim dormir. De manhã, acordaria aureolada pelos calmos deveres.
Feminino: um estado mental
Ana, minha analisanda, era a quarta filha de uma prole de cinco. Era considerada pela mãe, segundo ela, como a mais boazinha de todos: não chorava, não gritava, não reclamava. Quando não estava bem, se refugiava num quartinho nos fundos da casa e brincava sozinha horas a fio. Acreditava que todos na família a admiravam pelo seu bom senso, pela sua sensatez.
Ela, que havia cuidado tanto para não explodir, que tentava vigorosamente manter tudo em tranquila compreensão, de repente percebeu tudo isso se rompendo para dar lugar à revelação da cegueira. Cegueira curiosa, mascando chiclete. O que o cego/análise provocou parecia não caber nos seus dias, no seu corpo teso. Esgotou-se o cotidiano, o igual ao mesmo.
Para se precaver da hora perigosa, a personagem de Lispector mantinha-se num constante fazer doméstico. Minha paciente, além disso, devorava livros e filmes. Em casa via um filme após o outro. Nas sessões, costumava falar muito livremente, contava-me trechos de livros que estava lendo, recitava poemas e se referia a poetas encantadores que acabara de conhecer. Mostrava-se com frequência plenamente povoada por literatura, escritores, romances, poetas e poemas, mas não pelas suas próprias ideias, sentimentos e pensamentos. Uma outlander, uma forasteira de si mesma, uma estranha à terra em que se encontrava, impossibilitada de assentar moradia na própria história e na ancestralidade.
No entanto, na sessão em que foi acometida por súbita perturbação, encontrou-se com Ana, personagem de Lispector: o seu duplo especular.
Não à toa.
Lispector nos brinda de forma especial (Ana intuía isso; durante esse período do nosso trabalho analítico, tornou-se assídua leitora de Lispector, e eu também, estimulada por ela) com personagens cuja vida psíquica estagnada de repente explode. Há um cotidiano, um lugar-comum, que subitamente dá lugar a uma revelação acompanhada por desorientação, instabilidade, incompreensão, terror. O mundo apresenta-se à revelia. O espaço de isolamento e reclusão se desmancha. A potência das mais variadas sensações e emoções lateja e purga.
Na sessão anterior àquela em que se apresentou através da personagem de Lispector, Ana relatou seu incômodo em fingir para si mesma que estava tudo bem:
Veja que coisa! Fico abismada comigo mesma. Eu me sinto bem, e então algo acontece que rompo com tudo e me fecho. Nada me abala. Não sinto nada. Mas o que mais me espanta é tudo isso acontecendo comigo e eu indo trabalhar, fazendo tudo que tem que ser feito, como se nada estivesse ocorrendo. Se alguém olhar para mim, não diz que estou tão perturbada.
A percepção de que não poderá mais se enganar, "fingir" para si mesma que está tudo bem, que nada está de fato ocorrendo, deixa Ana abismada, perplexa, aturdida. Não dá mais para esconder que há perturbação, há cegueira, há "o coração batendo violento, espaçado, há também a expressão do rosto há muito não usada, ressurgindo com dificuldade, ainda incerta, incompreensível" (Lispector, 1993, p. 32).
Naquela tarde, quando me falou de sua hora perigosa, Ana não tinha clareza da amplitude e profundidade da frase sussurrada quase num desabafo. Como quem olha num misto de surpresa e espanto através de uma pequena fresta, começou a perceber que sua vida psíquica estagnada estava ruindo: ou criaria ou morreria por antecipação.
Tempos depois, Ana começou a apresentar convulsões - convulsões leves, acompanhadas de tremores no queixo e movimento involuntário da língua e das mãos. Contou que estava com muito medo de ficar mentalmente inválida. Havia perdido o ritmo de sua vida. Seu corpo tremia sobre o divã. Disse que já havia apresentado o mesmo sintoma quando entrou na faculdade e teve que se mudar sozinha para outra cidade.
A partir daí, seguiram-se sessões povoadas de sonhos e histórias que evidenciaram o ideal fálico de Ana.
Em um deles ela estava numa casa com muitas pessoas, no meio de uma festa. Alguém lhe deu um vestido e disse que era seu e que deveria vesti-lo. Tentou colocá-lo por cima da calça comprida e não conseguiu. Disse então que iria para o quarto e tiraria a roupa para vesti-lo.
O que mais lhe chamou a atenção nesse sonho foi a aflição que sentia o tempo todo. Não queria tirar a calça comprida e não conseguia colocar o vestido por cima da calça.
O ideal de grandiosidade e completude está posto em xeque, gerando constante aflição.
Na semana seguinte, Ana chega animada, contando ter assistido a um filme muito interessante: Orlando, baseado no romance de Virginia Woolf. Noto nesse período da análise que Ana me fala sobre filmes e livros menos com uma postura de crítica literária e mais com o ensejo de se desbravar.
É um filme muito longo, mas vou te contar o que mais me chamou a atenção. Orlando era um homem muito lindo que se pôs a debochar da rainha Elizabeth, a debochar da sua velhice. Como castigo, a rainha lhe deu o poder de nunca envelhecer. Viveria 600 anos, e lhe deu o título de barão e lhe doou um castelo. Estava para casar, mas se encontrou com Sacha e por ela se apaixonou. Rompeu o noivado e foi se encontrar com Sacha, que nunca apareceu. Correu o mundo, se deparou com guerras. Magicamente se transformou em mulher. Voltou para o seu castelo, mas lá lhe disseram que aquele castelo era de Orlando, e não seu. Caiu em desespero. Percorreu os jardins do castelo e finalmente se encontrou com um homem. Pediu a ele para ser sua amante. Ele aceitou. Ela engravidou e teve uma filha, mas nunca acompanhou esse homem, que no final foi para a América. A história continua até os tempos atuais. E no final ela se pergunta: "Quem sou eu? Qual o meu nome?".
A partir daí, inicia-se um trabalho de percepção do si mesmo, com estremecimento, estranhamento e decomposição da rotina de viver.
O que, até então, lhe parecia ser a conquista de uma compreensível e sadia vida adulta passa a ser explorado como uma armadilha contida no ideal fálico, por lhe ser intolerável vivenciar o desamparo, a vida e a morte, o indizível, o mistério, a falta.
Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. (Lispector, 1993, pp. 36-37)
O Jardim Botânico/sala de análise põe em movimento o desconhecido, o misterioso, os escondidos territórios faiscantes e sombrios.
Já escrevi sobre esse meu encontro com Ana em outra ocasião (Lamanno-Adamo, 2012), mas agora, lançada a questão sobre o feminino, tomo fragmentos dessa experiência clínica sob outro viés. Uma experiência emblemática para a revelação do feminino e de estratégias para ocultá-lo.
Ao longo de sua obra, Freud investiga "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos" (1925/2006a), a "Sexualidade feminina" (1931/2006d), a "Feminilidade" (1933/2006c). Posteriormente, ao considerar a "Análise terminável e interminável" (1937/2006b), enfatiza que a feminilidade não caracteriza nem o masculino nem o feminino, e a aponta como registro originário do psiquismo.
Não se trata, portanto, de um atributo específico da mulher ou do homem, mas de algo comum aos dois. No mesmo texto, declara que o "repúdio à feminilidade seria uma notável característica da vida psíquica dos seres humanos" (Freud, 1937/2006b, p. 268).
Seguindo essa linha de pensamento, Cournut (citado por Alizade, 2008) diferenciou feminino de feminilidade. Feminino diz respeito à feminilidade primária, temida e recusada. Encarna o imaginário do não poder, do indefenso e do perigo no contato com o fraco e com o perecível.
Sob essa perspectiva, considero o feminino não decorrente do sexual ou do gênero, não um adjetivo, uma qualidade, mas um estado mental. Um conjunto de condições em que o indivíduo se encontra em determinado momento. A noção de estados mentais, introduzida por Meltzer (1973/1979), diz respeito a algo não definitivo, não permanente, não adquirido ou perdido de forma absoluta.
Por conseguinte, concebo o feminino como um estado mental fugidio que encarna o constitutivo do ser humano, isto é, o enigma da criação, a vida e a morte, o indizível, o mistério, a falta. Um continente obscuro, temeroso, misterioso, com seus escondidos territórios e espaços inexplorados, possuidores de desejosas riquezas.
Tarefa complexa esta: abarcar e explorar o feminino dentro de si. Há repúdio, fascínio, raiva e ódio também.
O encontro inesperado com o feminino promove a queda do ideal fálico e consequentemente raiva e ódio como artifício defensivo. "Eu estava tão bem", disse a paciente, "mas assim que me deitei comecei a sentir raiva." "Olhava o cego profundamente. ... Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio."
Nessa perspectiva, a rotina diária de afazeres (da personagem de Lispector), a rotina de obrigações a serem cumpridas e o excesso de literatura e filmes (apresentados pela paciente nas sessões) evidenciam artifícios para se precaver do encontro com o feminino dentro de si. Assim, toda uma suposta potencialidade insondável é abafada e canalizada para o implemento e o uso de artifícios defensivos, englobando quase todo o seu ser (passado, presente e futuro).
Numa bela tarde, quando Ana volta das compras e toma um bonde para chegar à sua casa, esse funcionamento é posto em xeque. No bonde/divã, a figura da cegueira abala todo o equilíbrio tênue de um mundo estritamente organizado e deflagra uma situação perturbadora, que provoca horror e irremediável mal-estar. O mundo se torna ameaçador. O saco de tricô onde estavam as compras cai do colo de Ana com a arrancada do bonde, quebrando os ovos. Nesse momento, o feminino, envolto em uma casca dura, mas frágil e quebradiça, é deflagrado.
Quando o ovo cai e se quebra, quando a paciente adentra o processo de análise, clara e gema escorrem para fora. O feminino irrompe. "Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam se rompido na crosta e a água escapava" (Lispector, 1993, p. 27).
A visão do cego/cegueira lança o feminino para fora da casca.
A metáfora do cego é instigante. Ser cego significa, ao mesmo tempo, ignorar a realidade das coisas, negar a evidência das coisas, mas também ignorar a aparência enganadora do mundo e, assim, ter o privilégio de conhecer sua realidade secreta, enigmática e profunda. O cego evoca a imagem daquele que vê, com outros olhos, outro mundo. É considerado menos um enfermo do que um forasteiro, um estranho (Chevalier & Gheerbrant, 1982).
E o cego mascava chiclete: "Ele mastigava goma na escuridão" (Lispector, 1993, p. 32).
Em uma crônica intitulada "Medo da eternidade", Lispector (1994) relata o seu aflitivo e dramático contato com uma bala que não acabava nunca. Quando era pequena, não havia provado chiclete, e onde morava falava-se pouco deles. Ela não sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. O dinheiro que tinha não dava para comprar, mas sua irmã juntou dinheiro e, ao saírem de casa para a escola, deu o chiclete para ela e disse que se tratava de uma bala que não acabava nunca.
A irmã explicou que primeiro era para chupar o chiclete e só depois que passasse o gosto era para começar a mastigar. E então poderia mastigá-la a vida inteira. Num misto de espanto e estranhamento, perguntava-se como seria possível haver uma bala que não acabava nunca. Começou a mastigar e em breve tinha na boca um puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada.
Na hora perigosa, o feminino repudiado torna-se glorificação de calmos deveres, gerando um dia após o outro, sem início nem fim. A bala que não acaba nunca se impõe como um puxa-puxa sem gosto de nada, estranha como uma doença de vida.
Ou criam ou morrem, a paciente murmurou naquele fim de tarde perigoso. Ou se constitui na tessitura do feminino um sujeito apto a representar o que estarrece, horroriza e espanta, ou se morre numa vida puxa-puxa cinzenta, sem gosto de nada.
Cabe ressaltar que um estado mental - seja ele um estado mental que sustenta ou que repudia o feminino - não é definitivo, não é adquirido e perdido de forma absoluta.
Ao chegar a seu apartamento, Ana abraçou o filho como se fosse um porto seguro. Abraçou-o com demasiada força. Depois recebeu o marido, os irmãos e as cunhadas para o jantar. Mais tarde, diante do espelho, penteou-se, "sem nenhum mundo no coração, antes de se deitar, e como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia" (Lispector, 1993, p. 41).
Ana, minha paciente, se perguntava em muitos momentos: "Será que vou dar conta de sustentar esta disritmia, esta desorientação?". Muitas vezes questionava também se a análise não a estava levando a uma insanidade sem fim: "Não seria melhor retornar à minha vida exatamente como era antes?".
O que o Jardim Botânico/sala de análise desencadeou caberá no seu corpo teso?
Nessa perspectiva, considero o feminino como uma metáfora do sujeito na psicanálise, constituindo-se permanentemente na sustentação e no repúdio ao que espanta, fascina, causa horror e assombro - uma metáfora da atração pelo enigma e do inevitável fracasso em decifrá-lo de cabo a rabo.
Referências
Alizade, M. (2008). Feminilidade primária: feminilidade estrutural. Revista Brasileira de Psicanálise, 42(4),153-160. [ Links ]
Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (1982). Dicionário de símbolos (V. C. Silva, R. S. Barbosa, A. Melim & L. Melim, Trads.). José Olympio. [ Links ]
Freud, S. (2006a). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19, pp. 277-288). Imago. (Trabalho original publicado em 1925) [ Links ]
Freud, S. (2006b). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 223-271). Imago. (Trabalho original publicado em 1937) [ Links ]
Freud, S. (2006c). Feminilidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22, pp. 113-135). Imago. (Trabalho original publicado em 1933) [ Links ]
Freud, S. (2006d). Sexualidade feminina. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (J. Salomão, Trad., Vol. 21, pp. 233-255). Imago. (Trabalho original publicado em 1931) [ Links ]
Lamanno-Adamo, V. L. C. (2012). Contando do começo. Jornal de Psicanálise, 45(83),51-58. [ Links ]
Lispector, C. (1993). Amor. In C. Lispector, Laços de família (pp. 29-42). Francisco Alves. [ Links ]
Lispector, C. (1994). Medo da eternidade. In C. Lispector, A descoberta do mundo (pp. 446-448). Francisco Alves. [ Links ]
Meltzer, M. (1979). Estados sexuais da mente (I. S. Hahn, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1973) [ Links ]
Recebido em 5/7/2021
Aceito em 8/11/2021
1 Trabalho apresentado no LI Congresso Internacional de Psicanálise da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), realizado em Londres, Inglaterra, em 2019.