Rapadura é dura, mas é doce. Rapadura é doce, mas é dura. Na vida, a oscilação entre essas duas afirmações é constante. Mas, em alguns momentos, é muito difícil articular esses dois caminhos: a melancolia amarga tudo e, por vezes, se disfarça como doce vingança. Esse é o drama presente em Abril despedaçado (Salles, 2001), um filme duro e doce, que nos interroga sobre as possibilidades e limitações dos trabalhos de luto.
A dimensão das perdas nos atravessa desde o início da vida, com diversas facetas: a vulnerabilidade, a dependência, o desamparo, o desamor, a insuficiência, a incompletude, a insaciabilidade, entre outras. Para conviver com essas dores anunciadas, também é preciso ter a perspectiva de repetição de experiências de prazer, que nos permitem seguir investindo no viver. Assim, consideramos que o processo de luto envolve a separação e a falta, mas também a recuperação da esperança de reencontrar o objeto perdido. Por meio de substitutos, o princípio do prazer mobiliza a busca por objetos e liga o sujeito ao mundo. Nesse sentido, podemos compreender a afirmação de Freud (1920/2010a) de que, face à inevitabilidade da morte, o trabalho de Eros é prolongar o período de vida, os tempos de espera, os intervalos entre as oscilações de tensão e os espaços de criação.
No filme Abril despedaçado nos deparamos com a família Breves, a qual, como diz o nome, abrevia o caminho rumo à morte por meio de uma vendeta que acelera sua extinção. O filme mostra que, por vezes, a desesperança é ocultada por anseios de restituição narcísica frente às injúrias e ao sofrimento vivido, como se fosse possível recuperar o que foi irremediavelmente perdido. A vingança é uma forma de repetição que opera aquém do princípio do prazer. Na medida em que não se aceita perder, nenhuma substituição ou reparação é possível. Assim, o sentimento de injustiça leva a um justiçamento cego e impiedoso.
No filme, o narrador é uma criança sem nome, terceiro filho da família Breves. É um menino, e os irmãos mais velhos são homens crescidos: Inácio é o mais velho, Tonho é o segundo, e ele é apenas Menino. Certo dia, enquanto Menino passeia nos ombros de Inácio, brincando de tapar seus olhos, seu irmão é morto por um tiro dado por um membro da família rival, os Ferreira. Seguindo a tradição das famílias, a camisa que Inácio usava permaneceu à vista num varal até que o sangue secasse e amarelasse. Então, seria a vez dos Breves restaurarem sua honra, tirando a vida de um Ferreira. Logo, esse se torna o fardo de Tonho, que deve cobrar o sangue do irmão mais velho. Ao fazê-lo, porém, também sela a sua sentença de morte, uma vez que é o próximo a ser caçado pelos Ferreira, quando a camisa amarelar.
No entanto, o ciclo sangrento, tão bem compactuado entre as duas famílias, é abalado quando aparece uma fresta naquela trama: a chegada de circenses ao povoado, que reconhecem a criança dentro de Menino e despertam-no para a vida colorida da imaginação. Como uma faísca, o calor desses novos vínculos chega a seu irmão, Tonho, que então se depara com uma encruzilhada: ficar e morrer como bicho, ou fugir e trair a tradição familiar? Esse é o enredo de Abril despedaçado, em que camisas ao vento mantêm um circuito de ódio e violência.
O filme nos permite explorar nuances do ressentimento em diferentes modos de funcionamento psíquico, desde os mais adoecidos e rígidos até os mais permeáveis à transformação. Abordaremos algumas dimensões da recusa8 (Verleugnung) como mecanismo de defesa que atravessa essa trama, e que segundo Kancyper (2018) subjaz aos fenômenos ligados ao ressentimento. A partir da figura do pai dos Breves, analisaremos aspectos defensivos da vingança e os efeitos transgeracionais do rancor e do trauma. Buscaremos delinear de que modo essas dimensões narcísicas destrutivas influenciaram o percurso de Tonho e de seu irmão, Menino. Por fim, abordaremos as possibilidades de reedição da história familiar, seus impasses e aberturas.
Destacamos que este artigo não pretende ser um exercício de psicanálise aplicada a uma produção cultural. O objetivo é dar forma às reflexões que derivaram do impacto causado pelo filme nas discussões entre os autores deste texto, contribuindo para o enfrentamento dos desafios clínicos com os quais a psicanálise contemporânea se depara. O ressentimento e seus aspectos traumáticos e indigestos atravessam gerações, num ciclo mortífero de compulsão à repetição, em que o sujeito pode ficar aprisionado numa dívida imaginária com seus ancestrais, alienando-se da condição de ser protagonista da própria vida. O tema nos permite pensar sobre o que ocorre com certos pacientes, saturados de passado, cujo destino parece selado.
A vingança como defesa
O povoado onde a trama se passa, Riacho das Almas, se caracteriza por uma paisagem e uma estética que nos remetem a miséria, crueza, tragédia e violência. É assim que Menino o descreve: “Fica no meio do nada, em cima da terra e debaixo do sol. Um sol tão quente, mas tão quente, que a cabeça da gente ferve que nem rapadura no tacho” (Salles, 2001, 3:45). A vida nesse lugar é marcada por vazios e por excessos, um deserto mental assolado pelo trauma, que extermina qualquer gérmen de pensamento.
Kancyper (2018) analisa as raízes traumáticas do rancor por meio da noção de memória do pavor, a impossibilidade de um sujeito traumatizado esquecer as experiências de dor que viveu. Esse funcionamento psíquico envolve uma lógica temporal em que o futuro repetirá as mesmas vivências traumáticas do passado, e portanto é preciso sempre se lembrar da ameaça que ronda. Desse modo, o sujeito fica constantemente em estado de alerta e de defesa, sentindo a iminência de repetição da violência sofrida, assim como os pacientes que Winnicott descreve no texto “O medo do colapso” (1963/1994), os quais temem a ocorrência de uma catástrofe que, na verdade, já aconteceu. Essa é a condição subjetiva que dá o tom ao filme Abril despedaçado.
Nessa terra arrasada, o menino narrador expressa sua confusão ao tentar contar sua história, pois há outra da qual ele não consegue se esquecer. Ele quer narrar uma história de desejo e fantasia, mas eventos traumáticos se sobrepõem a ela. O menino tem dificuldade de integrar uma nascente esperança sobre o futuro e as memórias de violência do passado familiar, que continuam muito vivas e assombrosas. Com duas versões da realidade duelando em sua mente, ele fica perdido. É isso o que define a recusa, mecanismo de defesa que caracteriza o funcionamento psíquico da família Breves de diferentes formas. Por meio da simultânea admissão e não admissão da realidade psíquica, a recusa busca proteger o psiquismo do impacto afetivo de experiências traumáticas. No entanto, ela também expõe o psiquismo a novos traumatismos, na medida em que as representações que foram alvo da defesa permanecem como intrusas, desligadas das demais representações, mas ainda embebidas de um potencial tóxico perigoso. Assim, quando a defesa entra em colapso, o retorno do recusado pode produzir efeitos devastadores.
Em Abril despedaçado, podemos pensar que a recusa sustenta uma organização defensiva entre os patriarcas, implicando um custo psíquico também para seus filhos. Kancyper (2018) nos permite compreender de que modo a recusa transforma o rancor em vingança cega, enraizada em traumas transgeracionais, como os que governam Riacho das Almas. Enquanto organização defensiva, a vingança possibilita a recusa da realidade psíquica e da dor das perdas, como se um acerto de contas no futuro pudesse compensar o passado de feridas e chagas.
Os Breves são cheios de passado, mas sem perspectiva de futuro. A família vive em condições precárias no sertão, tocando uma bolandeira que transforma cana-de-açúcar em rapadura. Perderam gradualmente as terras que tinham, e as novas formas de produção trazidas pelo progresso anunciam o fim do ganha-pão da família. Se em outras circunstâncias o nascimento de uma criança poderia trazer uma promessa de esperança, um alento no futuro ou uma aposta na descendência, ali essa dimensão é recusada. O caçula nem mesmo recebe um nome. Assim, o menino sem nome representa, justamente, aquilo que é inominável e impensável para essa família.
O pai dos Breves atribui a responsabilidade de sua miséria aos Ferreira. Assim, o que começou com uma disputa de terras tornou-se um ciclo de matanças entre as duas famílias, em que um a um os jovens são sacrificados em nome dos ancestrais. O pai dos Breves acredita que a restituição da honra possa indenizá-los por todo o sofrimento vivido e, dessa forma, se mantém de pé, graças a um anseio de vingança.
Por trás dessa rivalidade, forma-se um conluio entre os Breves e os Ferreira, como um pacto maligno: cada família tem direito a cobrar da outra o sangue perdido – nada a mais, nada a menos. Tal retaliação é sustentada por um enunciado em que o menos um se torna mais um, ou seja, a perda do outro redime a minha. Essa crença no acerto de contas busca criar a ilusão de que nada aconteceu, como se fosse possível restaurar a condição de antes – antes do trauma, antes da tragédia, antes de a miséria se abater sobre eles. Assim, todos ficam presos na roda do tempo, tentando girar no sentido anti-horário, num relógio orquestrado pela recusa das perdas irrecuperáveis.
No ressentimento, a esperança renasce como forma de revanche. O rancor do pai dos Breves é muito expressivo, e seu mandato é muito claro: cada um da família tem que cumprir sua obrigação, custe o que custar. Assim, os filhos Inácio, Tonho e o pequeno Menino são sementes que não estão destinadas a brotar e trazer algo novo, mas sim a restaurar o narcisismo de um pai humilhado. Dessa forma, ele se torna o assassino dos próprios filhos, enviando-os para uma guerra em que não há sobreviventes. Essa faceta impiedosa do ressentimento pode levar à devastação de todo o campo de relações, mas o sujeito está cego quanto ao seu próprio poder de destruição, e acredita estar fazendo o bem em nome de valores e ideais muito honrosos. Torna-se, então, um torturador vitimizado.
Além desse aspecto mortífero, Kancyper explicita o papel defensivo da vingança:
Contudo, há outro aspecto do rancor que vale a pena mencionar: ao ter como característica abrigar uma esperança vindicativa, esta pode chegar a operar como um porto na tormenta, em uma situação de desamparo, como um último recurso de luta em que o sujeito procura restaurar o quebrantado sentimento da própria dignidade, tanto no campo individual quanto no social, e fomentar assim um destino construtivo. (2018, p. 13)
O desejo de redenção da honra pode ser importante para o sujeito atravessar circunstâncias penosas, como se ainda houvesse algo pelo que lutar. Mas frequentemente o que subjaz a esse movimento é o desespero, quando já há muito pouco a ser feito. Em tais situações, a desesperança é recusada e maquiada pelo anseio de revanche, de modo que a ferida narcísica se transmuta em uma excitação agressiva. No filme, o sangue não para de correr – mal amarela a camisa, as famílias querem sangue novo.
Assim como o objeto fetiche (Freud, 1927/2014), essas camisas ensanguentadas articulam a simultânea admissão e não admissão da castração. Elas fascinam o olhar das duas famílias, uma vez que representam ao mesmo tempo a admissão da morte e a contestação da perda, por meio da promessa de vingança. A recusa faz com que o tempo, então, deixe de ser um representante da finitude e passe a alimentar a expectativa de uma ressurreição dos mortos.
Desse modo, o pacto entre os Ferreira e os Breves tem uma função defensiva em meio a um contexto traumático e miserável, pois mantém um movimento que, embora repetitivo, circular e homicida, cria a sensação de estar vivo. Nesse sentido, a vingança é uma defesa pseudovitalizante, assim como a defesa maníaca (Figueiredo, 2018), em que a compulsão à repetição cria a ilusão de estar vivendo uma renovação, quando na verdade o psiquismo está morto, paralisado e estéril. Tal manifestação da recusa é comum em pacientes sem esperança ou que sobreviveram à morte, casos em que, segundo Figueiredo (2008), o aparelho psíquico sofreu tantos traumatismos que o paciente vive, mas parte de seu psiquismo está necrosada. Assim, compreendemos que o rancor é o modo de viver dos Breves: esperam a vingança, pois não há mais nada a esperançar.
Essa defesa permite uma inversão da passividade perante a violência, como se fosse possível ser o algoz da própria morte, e não a vítima que sofre o aniquilamento. Winnicott (1990) explora tal dimensão quando aborda o fenômeno da desintegração como defesa, em que a desintegração ativa é provocada para evitar sofrer a desintegração passivamente, ou seja, o psiquismo se fragmenta por meio das cisões para não ser despedaçado pela intensidade da invasão do ambiente. É a isto que se presta a tão defendida honra das famílias rivais no povoado de Riacho das Almas: a honra de morrer atirando, de morrer no calor do ódio e da vingança, em vez de morrer no vazio, na miséria e no desespero.
É muito importante considerar essa dupla face do ressentimento para lidar com suas expressões na clínica, tendo em vista que ele pode ajudar o sujeito a perseverar em situações árduas, mas também pode ocultar a agonia do psiquismo moribundo. A vingança enquanto defesa comporta um paradoxo: ela busca proteger o psiquismo e preservar os últimos fiapos de ligação do sujeito com a vida, mas deixa um rastro que intoxica e aprisiona o viver. No filme, é assim que a cana-de-açúcar se torna veneno.
De certa forma, isso também se manifesta nos pacientes melancólicos e rancorosos, em que o ressentimento leva à destruição de seus relacionamentos. Se por um lado afirmam que a perda e os danos são irrecuperáveis, por outro lado não deixam de cobrar o que creem que os outros lhes devem. Assim, o anseio por uma restituição narcísica está ligado a uma voracidade insaciável e a uma expectativa inatingível, de modo que nada nem ninguém é bom o bastante. Portam-se como juízes cruéis e impiedosos – incapazes de preservar o que recebem de bom, de aceitar qualquer forma de reparação – e tornam-se inaptos para a gratidão.
O processo de identificação melancólica, descrito por Freud em “Luto e melancolia” (1917/2010c), nos ajuda a compreender que nessa dinâmica do rancor o sujeito permanece ligado ao objeto perdido por meio do ódio, internalizando-o. Se por um lado ele não se separa desse objeto interno, a quem tortura em suas mais raivosas entranhas, por outro lado ele destrói qualquer possibilidade de recuperação de um vínculo verdadeiro com os objetos externos. Nesse extravio do luto, o sujeito sabe quem foi o objeto perdido, mas não o que foi perdido a partir de sua morte. É isso o que observamos na família Breves: os mortos são canonizados, mas os vivos valem muito pouco.
O sujeito tomado pelo rancor se afasta de tudo e de todos, e não consegue mais se nutrir das trocas com o mundo. Apesar do sofrimento em que se encontra, permanece convicto de estar restabelecendo a ordem, custe o que custar. Desse modo, segue o seco num ciclo de compulsão à repetição violento e autodestrutivo. No filme, a circularidade do ressentimento e da vingança é representada pelo circuito dos bois na bolandeira, num giro sem saída. À semelhança de um senhor de engenho, o pai dos Breves é dono do futuro dos filhos. Ele os escraviza e tortura por meio de uma dívida transgeracional impagável, da qual será difícil se alforriar.
Remorso e parricídio
Que Deus pai é esse que manda meninos para a morte?
Kancyper (2018) explora a relação narcísica que se estabelece entre um pai rancoroso e um filho redentor, em que as gerações seguintes se veem no dever de indenizar o narcisismo ferido dos antepassados. É por meio desse vínculo que se forma o pertencimento à família, seguindo tradições que conferem o senso de unidade e continuidade. De acordo com o autor, não honrar as dívidas e expectativas que compõem o ideal esperado dá origem aos sentimentos de vergonha e culpa, que caracterizam o remorso. A partir dessa perspectiva intersubjetiva, podemos delinear os motivos que fizeram Tonho não se rebelar contra o pai e se submeter a seus desígnios como forma de se redimir.
Em “Introdução ao narcisismo” (1914/2010b), Freud explora a relação intersubjetiva que conecta pais e filhos em torno de uma ilusão de restituição narcísica.
Uma dimensão do narcisismo sustenta uma ficção ilusória em que pais e filhos se completam, na medida em que a criança vem remediar as renúncias, decepções e traumas dos pais. É justamente essa aposta de futuro e o desejo inconsciente dos pais que engendram o psiquismo de uma criança e ao mesmo tempo a alienam. O desafio da vida, portanto, é se apropriar de um lugar de pertencimento narcísico, mas reconfigurando-o de acordo com as próprias experiências.
Quanto a Tonho e seu pai, vemos que essa dimensão atravessa um vínculo cheio de ambivalência. Se por um lado Tonho é o filho que tem o poder e o dever de honrar o pai e todas as gerações anteriores, por outro lado ele é oferecido em sacrifício, o que transforma esse voto de vida em um voto de morte. Ou seja, trata-se de uma relação de filiação assassina.
Kancyper (2018) recorda que o parricídio e o filicídio são duas faces da mesma moeda: o nascimento de um filho imortaliza os pais, uma vez que a criança se torna herdeira do narcisismo deles, mas o surgimento de uma nova geração também remete à mortalidade da anterior. Esse último aspecto é inadmissível para o pai dos Breves, que não suporta ser ultrapassado pelos filhos e ceifa qualquer tentativa de criar um novo modo de viver e de pensar. É um patriarca que não se deixa apagar.
Em certas situações, o parricídio simbólico não consegue se realizar, porque a figura do pai é permeada por uma ambiguidade entre onipotência e impotência. Assim se apresenta o pai dos Breves: ele encarna a figura de um pai totêmico que se alimenta dos filhos impiedosamente, um homem incastrável. No entanto, ele também é um homem humilhado e pobre de espírito, como se fosse concretamente castrado. Nesse contexto, o parricídio parece mais real do que simbólico, sendo atravessado por intenso sentimento de ódio ao pai, mas também por culpa por atacar um pai tão frágil. Como diz o ditado, é como chutar cachorro morto. É muito difícil para os filhos encarar a nudez e a falência dos pais no que diz respeito a suas vulnerabilidades, e assim a recusa os protege de ver o que está tão evidente.
Entre os Breves, a triangulação edípica está pervertida, pois a filiação não dá espaço ao desejo. Essa realidade é insuportável para Tonho, e qualquer escolha produziria consequências dramáticas: se o parricídio levaria à quebra do espelho narcísico, atender aos anseios parentais lhe custaria a vida. Embora diversos personagens façam apelos a Tonho para que se desgarre dessa sentença de morte, ele não vislumbra outra saída. Por meio da recusa, ele fecha os olhos aos votos de morte que atravessam sua relação com o pai. Para aceder a uma saída exogâmica e fazer um destino para si mesmo, seria preciso aceitar que as dívidas em relação aos progenitores e ancestrais nunca serão pagas, mas que é possível desenvolver a gratidão pelo dom da vida. Como afirma Kancyper, “o pai morto se torna credor, e o filho devedor de uma dívida básica que jamais saldará em sua totalidade, já que constitui uma função estruturante para o sujeito” (2018, p. 93).
Assim como Édipo, que se inflige a cegueira ao descobrir que cometeu incesto e parricídio, a prisão interna de Tonho nos faz pensar que o difícil de ver não é o que está no mundo lá fora, mas o que nos habita desde dentro: nosso ódio, nossos desejos e culpas, nossos impulsos assassinos, cruéis e apaixonados.
Do amor ao poder, ao poder do amor
Como vimos, o pai dos Breves é o agente perpetuador de um movimento mortífero, que se opõe aos processos de transformação. Agora, abordaremos o poder de ligação de Eros, que desperta o psiquismo e engendra outro movimento de repetição, o do princípio do prazer e da renovação da busca por objetos.
A condição psíquica do menino sem nome é quase a de um natimorto, ou seja, está embebido de pulsão de morte e não está destinado a ter uma vida. Ferenczi aborda essa questão no texto “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929/1992b), ao afirmar que, quando uma criança não é bem-vinda ao mundo, a pulsão de morte a domina, porque não há um investimento amoroso capaz de retirá-la desse estado tão próximo do não ser – o ainda não existir, prévio ao nascimento. O autor propõe que as crianças mal acolhidas estão mais sujeitas ao desintricamento das pulsões de vida e de morte, como observamos na figura do menino sem nome.
No entanto, a clínica mostra que é possível acordar alguma parte do psiquismo traumatizado que se manteve clivada, congelada e hibernando para se proteger, parte que pode ser reativada com o calor de Eros. Quando se pode contar com o objeto para superar a experiência de violência, é possível liquidar o trauma (Ferenczi, 1931/1992a). No filme, Menino abocanha esse anzol que vem fisgá-lo.
Se no seio familiar ele era apenas mais um braço para trabalhar, houve um casal que o olhou como criança: os circenses. O simples fato de o interpelarem buscando informações sobre o caminho já produziu uma fagulha de excitação, e Menino se viu como alguém importante, que tem algo a oferecer. “Eu ensinei pra eles!” (Salles, 2001, 33:49), exclama para seu irmão. Os circenses lhe oferecem outra imagem de si mesmo, com a qual pode se identificar. Então, a criança sem nome recebe gotas de Eros, e de presente, um livro cheio de figuras e cores, de modo que o vínculo com os circenses é atravessado pelo encantamento e pelo desejo de saber. Em oposição à cegueira familiar, abre-se o mundo do conhecimento e da imaginação.
Tal como um menino pequeno diz que vai se casar com sua mãe, Menino imediatamente se deslumbra com Clarinha, a moça do circo, que se torna a sereia de seus devaneios infantis. O outro circense é Salustiano, padrinho dela, que batiza o menino sem nome – chamando-o de Pacu – e assim o apadrinha também. A triangulação edípica parece se desenhar quando o menino interroga “Tonho, tu acha que ela se deita mais o homem?” (Salles, 2001, 47:42), dando margem às fantasias da sexualidade infantil. Gradualmente, o menino sem lugar é enredado pelo mundo dos afetos e do prazer.
A sedução é o motor que impulsiona a produção psíquica de Pacu em uma direção que parece nunca ter existido em Riacho das Almas, criando o espaço da brincadeira, dos sonhos, dos anseios heroicos e do amor apaixonado. Esse é o contraste entre a família Breves, que cultuava o poder da vingança, e o circo, que traz o poder do amor. A voz da sereia vem dizer que o futuro dos irmãos Breves pode mudar, em oposição ao destino sentenciado de morrer como bichos. Eis o poder de transformação do encontro de um menino com uma sereia: o contágio foi se alastrando em uma rede de conexões entre Clarinha, Salustiano, Tonho, Menino e até a mãe dos Breves, que ousou desejar o fim dessa tradição sangrenta. De repente, os movimentos são engendrados por uma força que sopra de outros ventos e que recupera a excitação prazerosa do encontro com o novo.
Numa cena importante, assistimos a uma brincadeira que permite a articulação entre Eros e Tânatos a favor da vida: brincando no balanço, Tonho propõe ao irmão que invertam as posições. Se antes era o mais velho que balançava a criança, agora é o caçula que insufla a vida. Empurrado por Menino, Tonho ganha um impulso tão forte que cai do balanço e é lançado ao chão. Ele se aproveita da situação para brincar com o fantasma que pairava no ar, e assim se finge de morto. Quando se revela vivo, a risada estoura no rosto do irmão, e mesmo no da mãe, mas o pai dos Breves não sabe integrar essa experiência, que não compreende. Ele esboça um esgar, mas sua reação causa mal-estar: não cai bem que o pai ria da morte de Tonho, quando foi ele quem o condenou a esse destino. Ou será que o rosto do pai se contorce num alívio, porque Tonho ainda estava vivo e, portanto, as engrenagens de sua ansiada vingança não foram abaladas? Ora, no pacto entre os Breves e os Ferreira, só se pode morrer com hora marcada, quando a camisa amarelar, e não por acidente, doença ou imprevisto.
A turbulência que se instala em Riacho das Almas não é bem-vinda pelo patriarca dos Breves, que combate os novos brotos de pensamento. Ele cala a voz do menino com um tapa e tira o livro de suas mãos. Esse homem é alérgico ao toque de Eros, cujo potencial de transformação ameaça sua soberania como pai e sua tão almejada vingança, que é o último fio que o mantém ligado à vida. Como propõe Kancyper (2018), a vingança é uma tentativa desesperada de se manter conectado aos objetos primários, e sem isso o sujeito se encontra à beira do abismo. Portanto, é uma questão de sobrevivência.
Apesar das resistências às mudanças, Menino reanima um aspecto cindido do psiquismo familiar e pode fraturar essa organização psíquica patológica. Como dito antes, ele representa o inominável e o impensável da família Breves, aquilo que devia ser calado e combatido. Finalmente, ele possibilita a travessia que, segundo Kancyper (2018), rompe o ciclo do ressentimento interminável: do amor ao poder, ao poder do amor.
A morte de uma criança: uma tragédia redentora
O final do filme Abril despedaçado é trágico como a vida. Quando amarela a camisa de sangue dos Ferreira, Tonho retorna à casa do pai após passar alguns dias acompanhando o circo. Nessa noite, chove no sertão, e o caçula da família Breves fica maravilhado com as promessas que a água traz. Ele observa que Clarinha e Tonho tiveram um encontro romântico, e fica embevecido com o deslumbre da chuva de Eros que cai sobre essas almas sedentas. Entusiasmado com a possibilidade de transformação, o menino brinca de ser o irmão, veste seu chapéu e amarra em seu braço a faixa preta que marcava Tonho como um homem condenado à morte. Em uma caminhada imaginária rumo ao mar e à sereia, Menino é morto por um tiro, fruto de um engano, daqueles que são sem querer querendo. No meio da chuva, o filho dos Ferreira, que veio matar Tonho, perde seus óculos, mas ainda assim atira. Ele tinha que matar alguém, fosse quem fosse.
A morte impactante de Menino nos leva a pensar sobre a dupla atitude que atravessa sua brincadeira de se fantasiar de Tonho: a identificação com o condenado à morte, mas também com o herói que conquistou a sereia. Será que Menino tinha clareza das possíveis consequências de seus atos? Estaria escolhendo se sacrificar no lugar do irmão? Ou teria sido um momento de ingenuidade infantil?
Com seu canto de sereia, Clarinha chamara o menino do sertão para uma vida colorida, que contrastava com o trauma transgeracional que o atravessava. Entretanto, para viver não basta o encantamento da sereia; é preciso aprender a nadar entre as correntezas da pulsão de vida e de morte. Se o poder de Eros é vital para o surgimento da vida psíquica, também é preciso suporte e ferramentas para figurar, representar, represar e interpretar esse afluxo de excitação; caso contrário, ele pode se tornar traumático. No caso de Menino, a relação entre Eros e Tânatos se desenrolava num campo onde não havia pontes de conexão e intermediação, onde as palavras eram escassas, as reações eram imediatas e não havia espaço para pensar.9
O anseio faminto por alimento psíquico parece estar encarnado no nome que o menino recebeu de Salustiano: Pacu, que em tupi-guarani significa “comer desperto”, sendo o nome dado a um peixe voraz (“Pacu”, s.d.). Mas a transformação desse menino-morto em um peixe-vivo é atravessada por um conflito de forças que parecem irreconciliáveis: enquanto os circenses restauram a capacidade de sonhar, a violência familiar vai se tornando insuportável. Assim, os pesadelos continuam a atormentar essa criança, porta-voz do mal-estar familiar.
Através das histórias que Menino tenta contar e recordar, ele se esforça para criar imagem, nome e representação a essas experiências novas tão excitantes. Ele formula seu conflito psíquico quando diz que a sereia não tem pernas para viver com ele. Entretanto, conforme aumenta a tensão em torno do destino de Tonho, Menino é tomado por um estado confusional, pois a intensidade dos afetos transborda, como em sua narrativa durante a caminhada fatal: “Agora, tu já sabe a minha história. Mas eu continuo sem me alembrá da otra. Sereia, os navio e... Diacho! O menino veio buscá sereia... Não, não era isso. Carai!” (Salles, 2001, 1:24:04).
Menino estava animado e agitado pela pulsionalidade da vida, mas eram insuficientes seus recursos psíquicos e o suporte emocional para representar e lidar com essas experiências. Em circunstâncias em que o aparelho psíquico vive uma sobrecarga perigosa, a recusa se interpõe como defesa antitraumática, causando um curto-circuito a fim de evitar a queima dos fusíveis. Quando o conflito psíquico se torna insustentável, a recusa pretende descosturar o nó por meio da formação de duas correntes psíquicas antagônicas e simultâneas, mas ao preço da cisão do eu (Freud, 1940[1938]/2018). Assim, são duas versões da realidade que passam a duelar, perturbando o teste de realidade. Por essa perspectiva, podemos considerar que, em sua caminhada final, Menino está dividido entre a impotência e onipotência infantil, entre a tentativa de dar sentido e a recusa da realidade.
Sobre essa recusa, é importante refletir a respeito de sua função defensiva. Winnicott (1971/1975) enfatiza que a suspensão do teste de realidade faz parte dos fenômenos transicionais: a simbolização se desenvolve nesse espaço de conexão e distinção entre fantasia e realidade. Em Riacho das Almas, porém, não há pontes entre esses dois mundos fraturados. Um ambiente patogênico como esse favorece a ação da recusa, em que a dupla atitude perante a realidade é um extravio da transicionalidade.
Nesse jogo de dormir acordado, o menino tenta elaborar o que vive, mesmo tendo sua capacidade de pensar atacada pelos pais. No circo, no faz de conta, nas narrativas e contos fantásticos, é possível brincar com o fogo e com o vento. Mas no contexto em que essa criança foi plantada, é perigoso fechar os olhos, sonhar e brincar. A morte de Menino também nos indaga sobre as mortes trágicas das crianças, sejam elas físicas ou psíquicas: há algo na função dos adultos (ou da cultura) que falhou?
Embora Menino não tenha morrido em vão, na medida em que deixou uma marca impactante nos que ficaram, ele foi usado como um cordeiro em sacrifício. Sua morte foi desorganizadora de um campo fantasmagórico asfixiante, uma vez que nada da equação prevista pelos patriarcas se realizou como deveria. Esse imprevisto abalou as certezas de todos e introduziu a realidade de um elemento impensável, literalmente, pois ninguém nunca pensou que esse menino pudesse morrer, nem viver.
Esse acontecimento traz uma infinidade de possibilidades, na medida em que quebra uma organização patológica. Poderia trazer a liberdade? Para o bem dos Ferreira, que não precisariam mais mandar os filhos para o sacrifício? Para o bem de sua mãe, que poderia sair de seu estado permanente de catatonia? Quem sabe o menino tenha virado uma figura mítica, daquelas que revolucionam com suas perguntas e que priorizam a vida ao ódio nutrido pelo ressentimento. Ou ainda, ele pode ter virado um totem, que instala o tabu sobre a vingança assassina.
Tonho, por sua vez, traça um caminho que desmente a profecia anunciada sobre seu destino: “Já conheceu o amor? Nem vai conhecer” (Salles, 2001, 27:37), diz o patriarca dos Ferreira, ao firmar o horário de sua morte. Mas ele conhece o amor e a violência. Contudo, não sabemos de que modo ele se apropria dessas experiências, ou seja, não sabemos onde o caminho da bifurcação vai levá-lo, nem o que ele vai levar consigo. Culpa? Esperança? Amor? Ódio? O mesmo acontece no processo de análise: o paciente se aproxima de sua realidade psíquica, porém é imprevisível o que ele escolherá fazer com suas descobertas. Na cena final do filme, vemos Tonho fitando o mar revolto, que assim como a vida pulsional não traz a paz de uma calmaria; muito pelo contrário, nos impacta pela força que move uma imensidão e que remete ao infinito – ao infinito que é o inconsciente.