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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.1 São Paulo  2022  Epub Aug 26, 2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n1.17 

Resenha

Paixanaliticom: Psicanálise e comicidade

Luciana Saddi1 

Membro efetivo e docente

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp)


Paixanaliticom: psicanálise e comicidade é um livro ousado e inovador. Um projeto corajoso na forma e no conteúdo. Desafiador para o leitor tradicional de psicanálise, mais afeito ao drama ou à tragédia.

Habituados a longas apresentações e vinhetas clínicas, à descrição de cenas de consultório para demonstrar teorias e dissecar conceitos, não percebemos como estamos acostumados ao tom quase fúnebre, e às vezes um tanto farsesco, presente em escritos psicanalíticos. Mesmo o analista conhecedor de poesia e dos grandes voos da língua é capaz de identificar os instantes em que a linguagem analítica se torna cansada, batida, com suas métricas fixas excessivamente doces e melodiosas. Não se discute quão sujeitos à repetição e à saturação estamos – um dos problemas mais complexos e frequentes da psicanálise, que se estende à clínica e aos aspectos teóricos, e impregna textos, relatórios, casos, cursos, aulas, livros e conversas. Assim, é possível haver no início da leitura de Paixanaliticom algum estranhamento, mesmo alguma repulsa, com a série de ilustrações cômicas, piadas psicanalíticas e chistes clínicos. O humor não é gênero frequente entre analistas, embora Freud (1905/1974) lhe tenha dedicado um volume de sua obra e o tenha considerado via direta de acesso ao inconsciente. Não se sabe como a psicanálise adquiriu feição melancólica de exagerada dor e passou a desconsiderar o riso e alguma alegria. Talvez tenha acreditado que é mais obsceno rir do que sofrer. Demonstração inequívoca de insuficiência de conhecimento da obra freudiana.

O livro do jovem Roizman procura aliviar a psicanálise da falta crônica de humor e excessiva seriedade. “Doença contagiosa”, inoculada pela repetição de “procedimentos simpáticos afetivos”, que confunde interpretação do desenho do desejo, matriz interna das emoções, com elucidação de afetos não pensados e que leva a psicanálise em direção a certo “emocionalismo” de contorno triste e à promoção de alguma repressão de ações imediatas que recalcam a descarga de energia, colocando-a em oposição a uma teoria do pensamento. O interesse do analista seria conhecer a forma geral das emoções do paciente mais do que se limitar à descrição de sentimentos e à censura de ações. Reduções da psicanálise, que não acrescentaram maior espessura à prática clínica e que se propunham, destaque-se, a classificar afetos em categorias inferiores e superiores, permitidos e proibidos. Como se fosse possível o pensar desafetado. Mesmo que se considere que os efeitos humorísticos se situam na linhagem dos afetos, não somente como descarga, a prática analítica, em muitos de nós, preferiu colocar o chiste, o riso e a graça à margem, como se o humor não fosse a combinação de afeto com ideia, ou seja, emoção. Ainda tenho na memória que 30 anos atrás escrevi um artigo, sem nenhuma importância, para um concurso, mas que apresentava no início uma piada. Fui advertida então, por tal imprudência, e aconselhada a retornar à análise. E nem sexo havia na anedota, era uma piada epistemológica. Ofendi os colegas com uma piada epistemológica. Em minha defesa retruquei que Freud (1905/1974) havia escrito todo um livro sobre humor sem sofrer tal censura, enquanto meu comportamento ao contar uma piada era visto como desviante.

Em Paixanaliticom, o humor, operação simbólica de liberação da repressão, tem lugar no centro da atividade analítica, para que sua importância clínica e teórica seja redescoberta. Importantes conceitos psicanalíticos – não somente o humor, a sublimação também – sofreram transformações e certo apagamento em diferentes momentos da prática clínica e da compreensão teórica de acordo com preferências de escolas psicanalíticas e perspectivas, gerando assimilações diversas. Tal vicissitude é bastante característica do método interpretativo da jovem ciência. Em psicanálise, conceitos estão muito mais próximos de interpretações. São interpretações quase coaguladas, e por isso adquirem imagens e usos diferentes, não só ao longo do tempo, mas também em razão de transferências e preferências locais. Ou seja, os próprios conceitos psicanalíticos e teorias são interpretados e reinterpretados. Por esse motivo, Taffarel (2008), defendeu a ideia de que o método de ruptura de campo (Herrmann, 2001) ao longo da história foi perdido e recuperado inúmeras vezes. “É sob a forma de constantes rupturas que a psicanálise tem funcionado na esfera das teorias como da prática, ao longo da sua história” (Taffarel, 2008, p. 51). O método, anterior às práticas e teorias, exprime a forma geral do saber da psicanálise e sua eficácia. Herrmann (2001), ao desencovar da prática analítica o método, abriu a possibilidade de distinguir método de técnica, investigar as inúmeras técnicas psicanalíticas e os diversos settings ou molduras, e sobretudo designar a lógica intrínseca, operação essencial do processo psicanalítico e da disciplina. O método interpretativo por ruptura de campo é o método da psicanálise. Derivado do processo analítico, cria o objeto da psicanálise. O jovem autor de Paixanaliticom se insere no grupo de analistas que procuram recuperar a potência do método ao revigorar a técnica do dito espirituoso que irrompe naturalmente. Assim, retira o humor e o chiste das sombras do esquecimento e os recoloca em cena, de maneira própria, autoral, elevando-os à forma privilegiada de pensamento. O livro não apenas reconhece, mas também demonstra o cômico como organização ideoafetiva, e portanto emocional, do conhecimento. Mais que discorrer sobre essa forma crítica do pensar, lhe dá vida. Apresenta diferentes formas de comicidade (ironia, chiste, cartum, piada, riso) como meio de produzir sentido e ruptura de campo, ou seja, como técnica psicanalítica legítima.

O excelente prefácio de Mario Eduardo Costa Pereira, “O chiste e suas relações com o futuro da psicanálise”, merece ser lido como breve e indispensável estudo sobre o chiste e o humor para a psicanálise. Atesta a importância do riso na economia libidinal dos homens e inclusive sua necessidade cultural, além de vantagens clínicas e metapsicológicas. O chiste, a tirada súbita e oportuna, revela uma verdade perturbadora para a dupla analista-analisando e, muitas vezes, produz liberação de prazer. Não apenas porque o homem é um animal que ri, mas também porque o riso é sinal de um complexo movimento ideoafetivo bem descrito por Costa Pereira:

Dessa forma, o Witz, com sua potência de explosão e contundência, enodoa em um único movimento a língua – logo, as relações do sujeito com o Outro –, a verdade, o erotismo e o tempo. Acessar os mecanismos do dito espirituoso constitui, portanto, porta de entrada privilegiada para a elucidação dos novos continentes do inconsciente e da sexualidade revelados por Freud. (p. 10)

O texto ainda introduz ideias importantes que iluminam os motivos da desqualificação do humor em alguns círculos psicanalíticos: são considerados perigosos a felicidade e o erotismo implicados no riso, ameaças civilizatórias, que exigem coerção pulsional e códigos culturais severos.

Do chiste para a ruptura de campo – cerne do método interpretativo, segundo Herrmann (2001) – pode haver alguns passos, distâncias variadas ou a imediata quebra que o processo analítico comporta e que permite descortinar um campo. Camadas de simbolização são construídas pelas variações tonais da dupla, até que um campo seja rompido. O humor pode ser instrumento poderoso nessa construção, como Roizman demonstra. Além de instrumento técnico, o cômico também se volta ao analista e às teorias psicanalíticas. No tomo 1 (brincadeira com as enciclopédias), de forma inédita, são apresentadas versões de psicanálise em quadrinhos e cartuns. Brincadeiras com autores, chistes com seus nomes e preferências temáticas. Deslocamentos e condensações de sentidos que se abrem ao novo, ao sarro e ao jocoso. Contestam cristalizações do saber, passam rasteira, com algum sadismo, em certos jargões e formas engessadas de conhecimento, e criticam o agir dos analistas. Mesmo quando não entendemos a piada, é possível perceber o espirito crítico do autor. De fato, nem sempre conhecemos os conceitos da escola que está sob visão crítica, mas reconhecemos o pensamento retorcido, a visão aguda, o sarro que Daniel Roizman tira. Os traços do desenhista Caio Oshima, apesar da apuração técnica, algumas vezes são excessivos, o que dificulta a apreensão visual imediata da cena desenhada. As deficiências no tomo 1 não são conceituais; são da realização e não são muitas. Aparentam-se às mesmas dificuldades que encontrei ao ler Os chistes e sua relação com o inconsciente (Freud 1905/1974). Consistem na perda de fruição e de sentido ao traduzir uma piada ou um jogo de palavras. Perde-se também o ritmo, o timing, o momento oportuno, elemento surpresa fundamental na produção do humor, pois muitos dos quadrinhos são para “entendidos”, para os familiarizados com certas escolas psicanalíticas, e necessitariam de explicações, legendas.

No tomo 2 são apresentadas piadas hermenêuticas, oriundas da clínica de Daniel Roizman. Pequenas cenas, fragmentos clínicos. Trata-se do registro do que Leda Herrmann (2011), ao discorrer sobre os três tempos da análise, denominou tempo curto. Cada tempo equivale a uma forma de escuta e de intervenção analítica. O tempo curto é o tempo da palavra em análise, quando há perda do sentido inicial e surge um sentido novo, inesperado para a dupla, surpreendente. Quando a própria escuta é lapso e vai além da escuta do lapso. Ato falho a dois. É o timing da comédia, humor imediato. As inúmeras vinhetas são ricas em demonstrar a sustentação da escuta descentrada do analista, atenção flutuante, deixar surgir, ser tomado por algo. Os chistes nascidos no coração da clínica, do movimento interpretativo, iscam a palavra como risco e produzem riso: conhecimento imediato, inconsciente, reconhecimento. Acrescentam traços ao desenho do desejo que está em construção na análise. Psicanálise de risco. Em Paixanaliticom, forma e conteúdo se igualam em risco e ousadia. Infelizmente as vinhetas são acompanhadas de comentários. Algumas de fato carecem de explicação, entretanto os esclarecimentos funcionam mais como explicação de piadas e, portanto, causam o mesmo desconforto que apontei antes, quando falei sobre a dificuldade de leitura do livro freudiano. Vale ressaltar que o problema é menos de Roizman e mais do próprio humor, da dificuldade em traduzir o jogo de palavras, da impossibilidade de transportar o timing próprio ao humor para a palavra escrita. Há perda considerável da substância humorística no transporte. Mesmo assim, ao leitor fica a impressão da rapidez criativa do autor em captar o chiste, em aceitar o risco e usar o humor como técnica psicanalítica por excelência, unindo graça e rigor teórico-clínico de maneira bastante econômica. À economia do humor, com tão pouco, de modo tão condensado, basta breve torção num sentido ou numa palavra para produzir sentido. A economia é outra importante característica dessa forma de pensamento.

O tomo 3 é dedicado à pseudoentrevista que Daniel Roizman dá ao psicanalista Dr. Jean-Jacques Pireau (pronuncia-se “Jean Já Pirou”, em português). A forma é satírica e alude às entrevistas publicadas em periódicos psicanalíticos nacionais e internacionais das mais diversas escolas. Os entrevistados são psicanalistas reconhecidamente relevantes pelo trabalho clínico e/ou teórico na comunidade psicanalítica. Mostra-se o desejo narcísico de reconhecimento pelos seus pares entre os que merecem ser entrevistados em função da consistência do trabalho analítico e da importância dentro do movimento psicanalítico. Para disfarçar o desejo de poder e de saber (sem nada disfarçar), o entrevistador é transformado num “maluco”. No entanto, a entrevista é bastante séria. É a oportunidade de o autor discorrer sobre o papel do humor na psicanálise. É a chance de se defender das críticas ao livro, ao estilo escolhido, ao gênero comédia e à opção ousada. Demonstra conhecimento profundo do tema na clínica, na metapsicologia e na teoria lacaniana. O tomo 3 tem o mesmo rigor com a psicanálise que o prefácio de Costa Pereira, embora não tenha a mesma elegância de escrita, porque se pretende mais coloquial. É elaborado em linguagem oral, forma própria às entrevistas – portanto, bastante acessível.

No tomo 4 são apresentados quadrinhos que versam sobre a relação conflituosa do autor com Lacan. São deliciosos, não carecem de explicação e causam graça imediata. O desenho e os traços alegres, cínicos e divertidos traduzem a ironia e o humor fino de Daniel, características que acompanham o homem, e não apenas o analista. Observa-se a constante luta com as teorias, a tormenta com a dificuldade imposta por Lacan à compreensão de seus escritos, o bom combate, o atrito, a confrontação. Sobretudo, declaração de humor, declaração de amor, humor-amor por Lacan.

O tomo 5 é com certeza o mais ousado dos tomos deste agradável e surpreendente livro. É quando o humor assume sua forma mais subversiva, sem explicações. Ele simplesmente se apresenta. Aqui conteúdo e forma se afinam completamente. A depender do leitor, poderá ter mais ou menos graça, mas será bem mais fácil compreender as piadas. Humor curandis. Humor que cuida e cura teorias e clínica.

Em O nome da rosa (1980/1983), Umberto Eco trata do mesmo problema que Roizman em Paixanaliticom: o humor como elemento corrosivo do sagrado imutável saber, seja da Igreja (no caso do romance), seja das escolas psicanalíticas que tomam como sagrada a palavra do mestre e daí procuram imitá-lo em busca da consagração. O humor não poupa, não adula, não esconde. Expõe o homem e o mundo, expõe o absurdo da condição humana e destrói certezas, mestres, deuses. Talvez o humor mesmo seja uma divindade que suspeita da própria existência e de seu saber. Um mestre demoníaco que confronta todo e qualquer establishment. Forma de pensar econômica, lógica emocional ilógica, que questiona as formas de poder. Para além do poder de questionar o poder, o humor é linguagem e arte, arte da reconciliação do homem consigo mesmo e com o mundo. Não se sabe ao certo se o homem é mesmo o único animal que ri, mas com certeza o riso ameniza a condição única entre os animais, a de saber inequivocamente sobre a própria morte.

1Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp).

Referências

Eco, U. (1983). O nome da rosa (A. Bernardini & H. F. Andrade, Trads.). Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980) [ Links ]

Freud, S. (1974). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 8). Imago. (Trabalho original publicado em 1905) [ Links ]

Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: o método da psicanálise. Casa do Psicólogo. [ Links ]

Herrmann, L. (2011). Os tempos na análise: um ponto de vista psicopatológico. Jornal de Psicanálise, 44(81), 85-96. [ Links ]

Taffarel, M. (2008). O método psicanalítico segundo a visão de Fabio Herrmann: ruptura do sentido como condição para a construção de novos sentidos. In J. Monzani & L. R. Monzani (Orgs.), Olhar: Fabio Herrmann: uma viagem psicanalítica (pp. 47-60). Pedro & João; cech-ufscar. [ Links ]

Luciana Saddi lusaddi@uol.com.br

Autor: Daniel Hamer Roizman

Ilustrador: Caio Oshima

Editora: Escuta, 2020, 152 p.

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