Quem dentre vós não tiver pecados, atire a primeira pedra.
João 8,7
O que fazemos com nossa parte destrutiva é uma questão para cada um de nós.
Pensamos que sabemos. Jesus talvez tenha chegado perto de uma resposta mais consistente: "Pai, perdoe-os. Eles não sabem o que estão fazendo".
RAHEL BORAKS
Bion: Até parecemos ser capazes de ter uma psicose em massa na qual todos concordam em sair por aí em gangues organizadas e disciplinadas de assassinos, dedicadas à destruição de pessoas que usam roupas diferentes. Algumas vezes sequer nos importamos com o uniforme caso possamos dizer “Sou preto, ele é branco, portanto ele está errado”. Ou “Sou branco, ele é preto, portanto ele está errado”. A cor da pele poupa-nos o trabalho de ir para dentro da pele. Todavia ainda somos adictos ao respeito pelo indivíduo; tratamos indivíduos como se eles importassem. E de muitas formas nos comportamos como se fosse uma coisa boa auxiliar um indivíduo a se tornar alguém que tenha pensamentos e ideias próprios. Infelizmente nossa dedicação a esse ideal parece ser tênue; enquanto nos dedicamos aos direitos de um indivíduo ter pensamentos e ideias próprios, antes de nos darmos conta do que aconteceu nós nos tornamos “kleinianos” ou...
intérprete: Gostaria de saber o que significa “kleiniano”.
bion: Você é otimista. Mesmo a sra. Klein não sabia o que isso queria dizer – e ela protestava ao ser chamada de kleiniana. Mas, tal como Betty Joseph disse para ela, “Tarde demais – você é kleiniana, quer queira, quer não”.
E não houve o que ela pudesse fazer. Portanto, a despeito de aspirarmos o respeito pelo indivíduo, o fanatismo empina sua cabeça novamente.
W. R. bion, Bion in Nova York and São Paulo
A epígrafe do Evangelho de João de que me valho traduz o que penso ser a essência do tema deste número da RBP. Na cena em que essa fala de Jesus aparece, um grupo de fariseus leva até ele uma mulher a quem querem apedrejar por ter sido pega em adultério, de modo que ele também a condene e reitere seu fim terrível. Ao ouvir a observação de Jesus, porém, um a um dos que estavam prontos a executar a sentença vai se retirando. (Um sacerdote católico certa vez me disse que, enquanto falava, Jesus teria escrito na areia os pecados daqueles que estavam com as pedras nas mãos.) Por fim, a sós com a mulher, diz-lhe que ele também não a condena e que ela siga seu caminho.
Nestes tempos conturbados, em que mais uma vez o extremismo e o fundamentalismo parecem ter tomado o protagonismo da cena mundial, e em que igualmente reincidente é o uso da religião para justificar a violência sanguinária, considero que o tema da compaixão se faz ainda mais relevante. É paradoxal e esquizofrenizante o uso que se faz de uma corrente religiosa como o cristianismo – ou melhor, de seitas derivadas dela – para racionalizar o genocídio, a guerra e a discriminação, uma vez que em sua origem estariam um indivíduo e um grupo que foram alvos do fundamentalismo religioso e de interesses políticos que procuraram exterminá-los, a começar pela tentativa de aniquilamento de seu fundador antes mesmo de seu nascimento, com o massacre dos inocentes, que segundo os evangelhos teria sido perpetrado por Herodes. Soa mesmo desnorteante observar que o nome de Jesus – que teria sido morto de maneira extremamente cruel, após sofrer intensa tortura por conta de sua heresia religiosa, de acordo com o establishment da época, e por incomodar elites políticas e econômicas – seja utilizado para justificar a tortura, o preconceito, o extermínio e as demais formas de crueldade, não somente contra outras denominações religiosas, como as expressões de origem africana ou indígena, mas também contra vozes divergentes no próprio cristianismo. É chocante ver o patriarca russo abençoar as tropas de seu país para que destruam os inimigos, porque a sociedade vizinha não compartilha de seus valores e preconceitos. Essa, contudo, não é uma prática nova. A Santa Inquisição, as Cruzadas, a Noite de São Bartolomeu (em que protestantes foram chacinados aos milhares em Paris por ordem da rainha Catarina de Médici), os pogroms etc. são velhos conhecidos nossos. De modo semelhante, os jihads se manifestam tanto contra os infiéis não mulçumanos quanto contra diferentes correntes dentro do próprio islã. Os massacrados de antanho tornam-se os massacradores da posteridade, e assim por diante. Todos em nome de Deus ou de uma verdade última, “científica” ou ideológica, como explicita o colega Renato Trachtenberg em seu trabalho sobre a cesura publicado neste número da revista (e em vários outros de sua autoria), que recorre a outra passagem bíblica, do livro de Juízes.
“Se há algo que é certo é que a certeza está errada”, diz Bion (1980, p. 98).
Nas ciências em geral também surgem guerras entre “igrejas” científicas, com seus papas e profetas. Não diferente é o que acontece entre “seitas” de psicanalistas. Contudo, nós igualmente nos deparamos com uma tendência humana para a compaixão, tal como teria expressado Jesus.
Neste número, contamos com quatro belos trabalhos que abordam o tema da compaixão, sendo um deles um intercâmbio cultural com a universidade, na apresentação de Maria Cristina Vianna Kuntz, a que se segue a escrita instigante e tocante de Rahel Boraks, Gustavo Dean-Gomes e Érico Andrade.
Antes deles estão os trabalhos relativos ao 28° Congresso Brasileiro de Psicanálise. Começamos com o artigo de Maria Luiza Gastal (Prêmio Revista Brasileira de Psicanálise) e o de Ronis Magdaleno Júnior (Prêmio Durval Marcondes, para analistas didatas). O trabalho de Maria Angélica Bongiovani (Prêmio Mário Martins, para membros associados) não foi publicado a pedido da autora e em consonância com a editoria da RBP, por consideração à confidencialidade do material mencionado. O artigo de Denise Zanin e Josimara Magro Fernandez de Souza e o de Cibele Maria Moraes Di Battista Brandão et al. receberam menção honrosa da diretoria da Febrapsi e não os prêmios a que concorreram devido a questões regulamentares do concurso.
Na sequência aparecem o já mencionado trabalho de Renato Trachtenberg e o de Alicia Beatriz Dorado de Lisondo, ambos com uma temática comum (a cesura), mas abordada de forma própria. Os artigos de Paulo Cesar Sandler e Guilherme Magnoler Guedes de Azevedo arrematam este ressonante número de nosso periódico.
Boa leitura a todos!