Compaixão
HAMLET: Meu bom senhor, poderia encarregar-se de acomodar os atores? Lembre-se que devem ser muito bem tratados, pois são o resumo e a crônica de nosso tempo; seria melhor ter um mau epitáfio depois de sua morte do que a sua maledicência enquanto está vivo.
POLÓNIO: Senhor, hei de tratá-los de acordo com seu merecimento.
HAMLET: Pelo amor de Deus, homem, muito melhor! Trate cada homem segundo o seu merecimento, e quem escapará à chibata? Trate-o segundo sua própria honra e dignidade; quanto menos eles o merecerem, tanto maior será a sua generosidade. Leve-os.
SHAKESPEARE, Hamlet
O tema do próximo número da Revista Brasileira de Psicanálise será Compaixão, na sequência do número sobre Crueldade. Infelizmente os dois temas estão na ordem do dia, pois se acrescentou ao drama da pandemia de covid-19 o da hedionda guerra na Ucrânia e toda a sua barbárie. Em ambos podemos observar a expressão das duas tendências, intrínsecas ao ser humano. Suas manifestações são perceptíveis desde os primórdios de nossa espécie, e também na atividade de outras espécies, estando patentes nas de nossos parentes mais próximos, os mamíferos em geral. Constatam-se nítidos comportamentos de crueldade e compaixão em nossos companheiros domésticos, os gatos e cães, e sobremaneira em nossos parentes mais chegados, os primatas.
Os chimpanzés são capazes de fazer guerras cruéis e mortais entre seus diferentes agrupamentos e na disputa pela primazia de um de seus membros. Assim como os humanos, também são capazes de gestos de grande compaixão, não só entre eles, mas também com espécies diferentes, como seus primos, nós, que amiúde os tratamos de forma feroz, tanto em circos quanto em outros tipos de cativeiro e experimento (alguns deles, infelizmente, necessários para nossa própria sobrevivência, no desenvolvimento de medicamentos, tratamentos e vacinas). Crueldade com os animais e compaixão com os humanos?
Queiramos ou não, é fato que a natureza é cruel. Como me dizia José Longman, com quem me analisei, “A natureza é cruel, mas não é burra!”.
Na trilogia de Orestes (Ésquilo, 458 a.C./2004), vemos uma sucessão de crimes que precisam ser vingados. A própria vingança dos crimes cometidos leva a outros que são hediondos de acordo com as leis divinas. Ifigênia é sacrificada em Áulis (Euripides, 405 a.C./1993), após ter sido enganada, junto com a mãe, Clitemnestra, pelo pai, Agamêmnon, quando foi ao acampamento grego com a ideia de que lá iria se casar. As bodas eram, na verdade, com a morte, visto que a deusa Ártemis havia pedido seu sacrificio para que os ventos pudessem soprar na direção de Troia, de modo que o castigo pelo rapto de Helena fosse efetuado. Dez anos se passam. Agamêmnon retorna a seu palácio com despojos triunfais, entre os quais a princesa Cassandra. Ao entrar em casa é assassinado pela esposa, ultrajada com a morte da filha, contando com a cumplicidade de seu amante, Egisto, que usurpa o trono. Electra, filha de Agamêmnon, urge que o irmão, Orestes, a ajude a vingar a morte do pai, matando a própria mãe. O crime, insuflado pelo deus Apolo, é finalmente realizado, e as Erinias (as Fúrias) se voltam contra Orestes, enlouquecendo-o. No decorrer da última tragédia da Oresteia, em busca de perdão o protagonista recorre ao Oráculo de Delfos e de lá, a conselho de Atena, segue com Apolo para Atenas, a fim de ser julgado pelos mais sábios da cidade. As Erinias são as acusadoras e querem a morte de Orestes. Durante o julgamento, o veredito fica empatado pró e contra sua morte. O desempate se dá com o voto de Atena (Minerva, para os romanos), que o perdoa. As Erinias não se conformam e exigem a punição. Atena lhes diz que passará a compartilhar com elas o direito de julgar em Atenas; terão o papel de guardiãs da lei e da ordem. Ao receberem esse presente da deusa, transformam-se em Eumênides (Benfazejas). Orestes pode voltar a sua cidade e tornar-se rei e sucessor de seu pai. Esse mito se relaciona ao nascimento de tribunais racionais e do direito em substituição à justiça vindicativa, que o antecede (porém sempre em atividade). Melanie Klein explorou essa questão no trabalho “Algumas reflexões sobre a Oresteia” (1963/1991).
Em Édipo em Colono (Sófocles, 401 a.C./1990), o protagonista se questiona sobre a utilidade de ter se cegado e se jogado no exilio como miserável, arrastando consigo as filhas e deixado os filhos sem pai, o que resultou numa guerra fratricida, com a morte de ambos e a destruição da familia e do reino. O julgamento implacável e violento que evolui para a uma reflexão sobre a qual se poderia desenvolver aprendizado pela experiência. Após atingir a sabedoria, o local onde Édipo morre e é sepultado torna-se sagrado e protegido pelos deuses.
Algumas situações clínicas me vêm à mente. Vejo pacientes que sofrem por não terem compaixão de si mesmos e de seus padecimentos. Certa vez, anos atrás, um deles prensou acidentalmente a mão numa porta e, ao chegar à sessão, começou a tratar-se com violência, dizendo-se extremamente burro por deixar aquilo acontecer. Observei que sua conduta me convidava a tratá-lo de igual modo, atacando-o. Disse-lhe que me parecia não poder aceitar o fato de ser uma pessoa comum, com quem esse tipo de acidente – nada raro – acontece. Para piorar, à dor e ao sofrimento de que já estava padecendo, acrescentava-se o tormento de todas aquelas admoestações inúteis, que não só não o ajudavam como agravavam sua situação. Era como um bebê que, ao cair no chão, ainda levasse cascudos de um adulto por tê-lo feito. Melhor seria ele se colocar no colo e tentar se aconchegar naquele momento de dor.
A compaixão costuma ser confundida com a pena e a piedade. Consideramos que as duas são expressão de sentimentos e atitudes diversas. A pena, assim como a piedade, parece estar intimamente associada a sentimentos de desprezo e superioridade. A com-paixão, por sua vez, refletiria a capacidade de alguém se posicionar e se ver no lugar do outro, tendo noção de seu sofrimento, junto com a ausência de julgamento moral e com um impulso para colaborar, se possível. Aquela terrível situação em que vejo o outro também pode me ocorrer. Não sou diferente ou melhor do que ele para estar livre de tais males.
Um problema frequente é a apresentação de trabalhos em que se constata a ausência de compaixão pelos pacientes, reduzidos a um compêndio de definições de psicopatologia e colocados à distância do observador, que em princípio nada teria a ver com tais situações. Não muito raramente, até um espírito de deboche dessas situações aparece. Outro problema comum é tratar o analisando como alguém sem recursos, que precisaria ser patronizado por um analista piedoso da condição de destituído do paciente.
Quais as condições necessárias ao desenvolvimento da capacidade para a compaixão? Ela é inata? Ela é desenvolvível? Que importância a análise do analista desempenha nisso?
Instigamos os colegas a enviarem suas contribuições sobre tão importante tema – fundamental, a nosso ver, para a construção de um pensar civilizado, que proporcione real desenvolvimento mental e criativo.
Os trabalhos deverão ser encaminhados para o email da revista – rbp@rbp.org.br – até a data-limite de 20/4/2022. As orientações para a submissão de artigos encontram-se em nossa página eletrônica: www.rbp.org.br.