Winnicott afirmava que “não pode estar muito longe da verdade dizer que cada analista tem em mente um Freud que abrange aspectos cruciais de sua própria história pessoal” (2017, p. XXXII). Como psicanalista e bióloga, vários elementos da obra de Freud que se servem da biologia me inquietam. O fisicalismo da primeira tópica, o recapitulacionismo, os instintos e seus destinos ou a pulsão de morte, que hoje dialoga com o encurtamento dos telomeres,4 todos flertam com a biologia. Em muitos subjazem dois aspectos que me parecem fundamentais para o debate sobre a crise ambiental: Freud aponta para uma separação radical entre natureza e cultura e para a ideia de cultura centrada no masculino, apoiada no mito de um pai que rege a vida e a cultura (contra o qual estamos fadados a nos rebelar), decorrendo do enfrentamento desse pai a ansiedade de castração. Dois aspectos para pensar nossa relação com o mundo, com a vida e com o que convencionamos chamar de natureza. É dessa concepção de natureza que parto, para em seguida escutar Winnicott e depois culturas que têm concepções radicalmente distintas do que seja estar no mundo. Finalmente, tento pensar sobre o papel da psicanálise e dos psicanalistas na grave crise climática que vivemos, que é atravessada por nossa forma de viver no mundo e pela necessidade de reconhecer nossos laços e dependência dele.
A natureza de Freud: Freud e a natureza
Embora Freud rompa com ideais de razão e individualismo da modernidade ao afirmar a primazia do inconsciente e a importância da intersubjetivi-dade, sua segunda tópica mantém intacta a noção moderna de natureza, hostil e separada da cultura.5 Em O mal-estar na civilização, ele situa a natureza como uma das principais causas do sofrimento humano: “a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade” (Freud, 1930/2010e, p. 29). Só nos resta reconhecer resignadamente as duas primeiras. A despeito de nossos esforços para dominar a natureza, ela sempre nos ameaça. A fragilidade de nosso corpo é confirmada pela inevitabilidade da morte, limite que nos mostra o caminho da cultura como forma de mitigar o sofrimento provocado pela natureza inclemente. O fato de a cultura ser nossa arma para enfrentar a natureza torna mais doloroso o reconhecimento de que ela também é fonte de sofrimento – tema central do ensaio –, porque a transformação da natureza em cultura, ou seu controle pela cultura, passa pela repressão e sublimação de forças instintuais.6 Até o fim da vida Freud sustenta a dualidade e o conflito entre natureza e cultura, ideia fundante da modernidade. Mais do que isso, pulsões agressivas (parte da natureza filogenética) invadem a terceira fonte de sofrimento, a intersubjetividade. Sendo inclinações naturais e destrutivas do ser humano, as pulsões agressivas seriam o maior impedimento à civilização. Como resultado, o sujeito da psicanálise, mesmo descontente com a civilização, vê a natureza como sofrimento e dor. Se a civilização não alcança a meta de nos conceder a felicidade ansiada, isso acontece, em grande parte, por causa da natureza externa, com seus obstáculos e carências, e de nossa natureza interna, de onde vem a força destrutiva da agressividade.
Aqui vale a pena considerar as raízes filogenéticas do inconsciente freudiano e sua relação com a história narrada da espécie humana, enquanto animal e enquanto ser cultural. Freud foi treinado em biologia por Brücke e Claus, na tradição fundada por Haeckel, sob forte influência de Lamarck (Ritvo, 1992). O inconsciente freudiano reproduz parcialmente em sua ontogenia a filogenia da espécie. Embora esse recapitulacionismo tenha diferenças em relação ao de Haeckel (como a possibilidade de diferentes estágios coexistirem e estágios antigos persistirem reprimidos no inconsciente), a teoria geral da neurose se apoia fortemente na ideia de recapitulação mental, herdeira de Lamarck, e o projeto recapitulacionista de Freud vai adiante. Como lembra Gould, ele pretende “nada menos que a reconstrução da história humana a partir de dados psicológicos sobre o desenvolvimento de crianças e neuróticos” (1977, p. 159). Há um paralelismo entre a história individual e a história da humanidade:
A criança, o selvagem moderno, nosso ancestral primitivo e o neurótico adulto representam o mesmo estágio filético – o primitivo como verdadeiro ancestral, o selvagem como sobrevivente moderno, a criança como ancestral adulto recapitulado em termos haeckelianos, e o neurótico como uma criança fixada. (p. 158)
No caso do Homem dos Lobos, Freud assinala: “Na fobia dos lobos ele passa pelo estágio do sucedâneo totêmico do pai, que então se interrompe e é substituído por uma fase de devoção religiosa” (1918/2010c, p. 101). Não somente o desenvolvimento biológico seria repetido ao longo da vida, mas também o cultural.
Esse recapitulacionismo é ainda teleológico – e, assim, verdadeiramente lamarckista – com respeito à cultura: povos “primitivos” e primatas de outras espécies e gêneros não teriam atingido nosso grau de desenvolvimento (ainda?). “Nossa” cultura – europeia, ocidental, judaico-cristã – está à frente, é mais avançada, é farol para as demais. Os sinais do avanço inexorável (e orientado) da cultura e de seus esforços para derrotar as vicissitudes impostas pela natureza são encontrados nos mitos e na própria história da civilização, “restos” conservados dessa jornada. Assim, no mito totêmico, os filhos matam o pai, decorrendo daí a culpa e o medo da castração. No mito bíblico, o Éden é perdido em troca do conhecimento para o domínio da natureza. Na história da humanidade, portanto, os seres humanos abandonam um modo de vida primitivo e nômade, como caçadores e coletores, e sentam raízes em um território que passa a ser desmatado, controlado, dominado. Em todas essas narrativas, a humanidade deixa alguma coisa para trás (a natureza) em nome da civilização.
Essa “humanidade” sobre cujo inconsciente Freud se debruça é ainda marcada pela castração, da qual deriva a lei, pelo uso da razão e pela primazia do falo. A ameaça de castração e a renúncia instintual decorrentes permitem o avanço da cultura. Sublimada e espiritualizada (primazia do intelecto sobre o instinto), a ameaça de castração transforma-se também em arte, literatura e outras expressões “superiores” da cultura. A própria ideia de angústia de castração é remetida de volta ao hereditário (herança de caracteres adquiridos) e fica gravada na memória da espécie. O biológico – a natureza – é parte importante do inconsciente, mas é “invadido” pela angústia de castração, que num movimento circular deixa o cultural para fazer parte da herança biológica, retornando e imprimindo marcas na cultura.
A primazia da cultura sobre a natureza resulta numa ética baseada na lei e na dominação humana sobre a natureza. É também uma ética constitutivamente masculina. Sendo naturalmente castradas, às mulheres seria impossível o exercício de uma ética avançada, já que sua castração constitutiva não favoreceria seu pleno desenvolvimento ético e cultural, com uma vaidade manifestada como “tardia compensação por sua inferioridade sexual original”, inferioridade que resulta em vergonha e no fato consequente de que “as mulheres fizeram poucas contribuições para as descobertas e invenções da história da civilização” (Freud, 1933/1996, p. 131).
Que natureza, em 2020?
Articulando as ideias de Freud com aspectos do movimento ecológico, Carvalho (2007) lembra que ele nasce como porta-voz dos descontentes com a civilização sem atribuir à natureza as raízes do sofrimento humano; ao contrário, para o movimento ecológico, é do afastamento do natural que resulta nosso sofrimento. A solução, então, seria um retorno à natureza. Assim, “o sujeito ecológico partilha em algum nível a crença na possibilidade de curar o conflito entre natureza e cultura que Freud identificou como fonte da infelicidade humana em O mal-estar na civilização” (Carvalho, 2007, pp. 15-16). Novas epistemologias ecológicas, sobretudo no campo da antropologia, buscam uma compreensão ecológica ou ambiental do mundo, “uma epistemologia encarnada e imanente aos contextos do mundo da vida” (p. 19). Nesse processo, a própria divisão entre natureza e cultura, e entre ciências humanas e ciências naturais, ficaria sob questão.
Decorridos 90 anos da publicação de O mal-estar na civilização, e diante de uma crise ambiental que ameaça o futuro de todas as humanidades (não somente aquela descrita por Freud), podemos apresentar algumas perguntas a Freud, à psicanálise e aos psicanalistas: haveria outras formas de conceber psicanaliticamente a relação entre natureza e cultura? O que outras culturas podem nos dizer sobre o inconsciente humano e nossa maneira de habitar o mundo? Começo a pensar sobre essas perguntas tomando como ponto de partida a encíclica Laudato si’ (2015), sobre o cuidado com a Terra, do papa Francisco, que trata de uma mãe/irmã Terra presente em muitas culturas, como nas andinas, na forma de Pachamama. Aqui não cabe a imagem de uma mãe Terra “naturalmente” castrada; ao contrário, ela é pensada como potência, receptividade e acolhimento, como a mãe descrita por Donald Winnicott – a concepção deste autor sobre instinto e suas ideias sobre fenômenos transicionais e cuidado refletem uma ética feminina e outra concepção de natureza e cultura.
Winnicott: a natureza humana é natural
Winnicott pode nos ajudar a pensar nossa relação com a natureza a partir de uma ética regida por uma contribuição feminina, uma ética do cuidado. Ele frequentou o curso de biologia no Jesus College, em Cambridge, antes de estudar medicina em Londres (Rodman, 2017), e suas ideias têm fortes raízes biológicas, com sua concepção de desenvolvimento natural refletindo uma crença na potência dos instintos e da biologia. A própria existência humana é estruturalmente psicossomática, e o substrato do corpo que permite o desenvolvimento da psique é dele indissociável.
A base da psique é o soma, e, em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar. A psique começa como uma elaboração imaginativa das funções somáticas, tendo como sua tarefa mais importante a interligação das experiências passadas com as potencialidades, a consciência do momento presente e as expectativas para o futuro. (Winnicott, 1990, p. 37)
A concepção winnicottiana da natureza tem importantes distinções em relação à de Freud. Um aspecto salientado por Fulgencio (2009) é a diferença radical entre o conceito freudiano de pulsão e o conceito winnicottiano de instinto. Enquanto para Freud a pulsão é uma representação psíquica de uma fonte psicossomática, um “conceito-limite entre o somático e o psíquico” (Freud, 1915/2010d, p. 42), para Winnicott “os instintos são dados empíricos, excitações corporais que recebem um sentido e que exigem ação para serem satisfeitas” (Fulgencio, 2009, p. 83). Assim, para Winnicott, não há diferença entre Instinkt e Trieb, como propôs Freud, e não faz sentido pensar em termos de pares de instintos. Os instintos humanos são da mesma natureza daqueles dos outros animais, não somos especiais em relação a eles. O que diferencia o animal humano dos demais é o fato de o ser humano atribuir um sentido humano, fazer uma elaboração imaginativa de suas vivências corporais instintivas (Winnicott, 1990). Enquanto na psicanálise de Freud há primazia da mente sobre o corpo,7 Winnicott enfatiza uma existência psicossomática vivida e significada nas relações inter-humanas – seja consigo mesmo, seja com o ambiente (Fulgencio, 2009).
Os fenômenos transicionais também refletem uma concepção diferente da natureza. Na identificação profunda entre mãe e bebê, forma-se uma área de ilusão na qual o bebê acredita que o peito da mãe é sua própria criação. Esse objeto imaginado e tornado possível pela criatividade primária do bebê precisa ser concretamente apresentado pela mãe/ambiente no momento em que é imaginado, de modo que a criança precisa de sua “criatividade primária” natural e da mãe/ambiente para se organizar. Tal capacidade criativa ingênua vai gradualmente sendo moldada pela realidade material, e várias manifestações adultas são herdeiras dessa área de ilusão: a capacidade de estar só, a criatividade artística, o jogo e outras expressões de cultura. Para Winnicott, além disso, a agressividade não é apenas uma força destrutiva, mas também uma expressão criativa de motilidade, um impulso que anima o indivíduo, juntamente com o erotismo.
Peço ajuda ao poeta Manoel de Barros, que em “O livro de Bernardo” nos apresenta um menino pantaneiro em cuja relação com o mundo dentro e fora, natureza e cultura, vivo e não vivo transitam de um lugar para outro.
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha.
A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)
Outra consequência da metapsicologia de Winnicott é a ênfase no cuidado em dois momentos fundamentais. Primeiro, a disposição ambiental oferecida pela mãe – que também pode ser exercida por homens. Tal preocupação nasce da identificação feminina fundamentada não na incompletude, mas no desenvolvimento distinto das meninas. Enquanto para Freud a mulher é um homem castrado, Winnicott vê a identidade feminina surgindo “da identificação e rivalidade com a mãe e da elaboração imaginativa da função do órgão genital especificamente feminino” (Winnicott, 1990, p. 67). À medida que o desenvolvimento do bebê avança, surge outra preocupação: a responsabilidade que o bebê começa a assumir, em relação ao seu ambiente e à mãe, quando atinge a posição depressiva, base de nossa capacidade de cuidar e reparar como adultos.
Em entrevista a Gabriel Bogossian, Ailton Krenak conta sobre uma experiência vivida por Darcy Ribeiro numa comunidade karajá que ilustra essa capacidade materna de cuidar, esperar e oferecer holding a um infante imaturo:
O Darcy Ribeiro escreveu uma vez sobre uma experiência que teve com uma mulher karajá ali onde é hoje Goiás. Ele disse que estava em campo, fazendo seu trabalho, e um dia observou uma mãe ensinando uma criança a fazer as bonecas karajá. A mãe fazia uma e a criança passava e quebrava. Ela fez outra, a menina passou e quebrou, e ele pensou: “Ela vai dar um tapa nessa menina”. A mãe fez isso várias vezes, a menininha quebrava e ela continuava fazendo. Aí Darcy se incomodou, a mente ocidental não aguentou o ensaio, e perguntou: “Por que você não manda ela parar com isso? Por que você deixa que ela quebre a sua arte?”. Aí ela disse: “Porque para ela ainda não está bom”. (Duarte & Gorgulho, 2020)
A sensação de que a vida vale a pena vem desse dinamismo, com um ambiente de cuidado (uma mãe suficientemente boa) que permite o surgimento da singularidade e da felicidade possível. A natureza não é apenas perigo e dor. O exterior (natureza externa) é também um ambiente que cuida e satisfaz as necessidades básicas do bebê. O interior (natureza interna) é também uma constituição inata para uma vida plena. O ambiente é o lugar onde a mãe vive e, juntamente com o bebê, permite a “loucura” criativa vivida entre eles, da qual emerge a nossa capacidade de existir como ser humano imerso na – e produtor de – cultura. A cultura é o resultado não só do enfrentamento da natureza, mas também da nossa inexorável dependência e coexistência com ela. Em certo sentido, a natureza é produzida pela cultura na mesma medida em que a natureza produz a cultura. Natureza e cultura são assim entidades irmãs intrinsecamente enraizadas na natureza humana, que se desenvolvem e se sustentam com base numa ética de cuidado que aprendemos com a experiência que vivemos – natural e culturalmente – com a nossa mãe e o nosso pai. A nossa dependência da natureza não é, necessariamente, fraqueza ou desamparo – é laço.
Outras naturezas, outras culturas, outros laços?
Viveiros de Castro discute o papel da guerra e do canibalismo nas sociedades tupinambá (que ocupavam a costa brasileira), assinalando a forma como elas estavam profundamente assentadas sobre a relação com o outro, fosse esse outro humano ou não:
A religião tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius constituía-se na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si – o exterior estava em processo incessante de interiorização, e o interior não era mais que movimento para fora. (2017, p. 199)
A leitura dessa passagem me remeteu ao espaço transicional de Winnicott e à ênfase do autor sobre as relações humanas – conscientes e inconscientes – na administração dos instintos (Fulgencio, 2009). Entre os Tupinambá, a relação com o outro - fundamento do espaço transicional – é a base ontológica da cultura, uma forma de estar no mundo e de se reconhecer como parte dele.
Como salientam Fonagy e Target, “a dimensão fundamental do desenvolvimento não é individual e subjetiva, e sim compartilhada” (2009, p. 133). Winnicott atribui à capacidade de habitar o espaço transicional, mantida ao longo de nossa vida, a “experiência comum entre os membros de um grupo na arte, na religião ou na filosofia” (1971/1975, p. 29). Embora, ao se referir à cultura, o autor esteja interessado na “experiência cultural” como fenômeno transicional, ele lembra que “em nenhum campo cultural é possível ser original, exceto numa base de tradição”, e que “a integração entre a originalidade e a aceitação da tradição como base da inventividade” constitui mais um exemplo da “ação recíproca entre separação e união” (p. 138).
Assim, os fenômenos transicionais são um fundamento da natureza humana e uma base da experiência cultural - mesmo na cultura moderna, marcada pelo individualismo. O diálogo entre Winnicott e os Tupinambá nos remete à pergunta sobre como se dá a relação com a natureza em sociedades que têm por base, justamente, a relação com os outros (relação radical, que pode – ou podia – incluir o canibalismo).
Nossa ideia corrente de cultura projeta uma paisagem antropológica povoada de estátuas de mármore, não de murta: museu clássico antes que jardim barroco. Entendemos que toda sociedade tende a perseverar no seu próprio ser, e que a cultura é a forma reflexiva deste ser; pensamos que é necessária uma pressão violenta, maciça, para que ela se deforme e transforme. Mas, sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade é seu perseverar: a memória e a tradição são o mármore identitário de que é feita a cultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outras que si mesmas, as sociedades que perderam sua tradição não têm volta. Não há retroceder, a forma anterior foi ferida de morte. ... Talvez, porém, para sociedades cujo (in)fundamento é a relação aos outros, não a coincidência consigo mesmas, nada disso faça o menor sentido. (Viveiros de Castro, 2017, p. 178)
Viveiros de Castro assinala que a própria noção de identidade, como reconhecida pela civilização ocidental, é posta em xeque por esse modo de estar no mundo das coisas vivas e não vivas, no mundo que é, ao mesmo tempo, da cultura e da natureza. A alma selvagem, inconstante e ligada essencialmente ao outro, resulta numa subjetividade que se fundamenta na abertura e graças a ela se mantém.
A inconstância da alma selvagem, em seu momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde “é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado”, para relembrarmos a profunda reflexão de Clifford. Afinidade relacional, portanto, não identidade substancial, era o valor a ser afirmado. (p. 188)
Mesmo a antecedência da natureza em relação à cultura (e a “superioridade” da segunda sobre a primeira) não existe em algumas culturas originárias. Danowski e Viveiros de Castro (2014) apresentam cosmogonias ameríndias que acreditam na existência de uma humanidade anterior ao mundo (e, portanto, ao que chamamos de natureza), em que parcelas de uma “primigente” vão se transformando nas espécies biológicas, nos acidentes naturais e nos corpos celestes. Aqui a cultura produz a natureza, que não é fonte de infelicidade, mas parte da própria humanidade.
Outras cosmogonias amazônicas, como a dos Yawalapíti, claramente não reconhecem uma divisão entre natureza e cultura:
O traço mais saliente da taxonomia yawalapíti do que chamaríamos seres vivos é a ausência de separação entre os humanos e os demais animais. Não existe o conceito correspondente à nossa noção de “animal (não humano)”; é impossível, portanto, fazer a natureza corresponder a uma ideia geral de animalidade. ... Os arquétipos da humanidade, Sol e Lua, nasceram da união do Jaguar com uma humana (feita pelo demiurgo Kwamuty), e estão associados aos “bichos” em oposição aos peixes e pássaros. Vale notar que, ao negarem a relação com o Jaguar e se ligarem afetiva e “especificamente” à mãe humana, os gêmeos míticos procederam a contrapelo da teoria concepcional indígena, que atribui exclusivamente ao pai a substância do filho. Negar a animalidade negando a paternidade, atingir a cultura afirmando a maternidade – eis aí uma ideia que não se pode dizer ortodoxamente freudiana. (Viveiros de Castro, 2017, p. 38)
É impossível não pensar no menino Bernardo. Tudo é inconstante. Tudo se transforma em tudo – pessoas, animais, coisas. Tudo se liga, os laços se impõem. Tudo, no mundo de Bernardo (e de Manoel), é natureza – inclusive os instrumentos da caixa de ferramentas do menino e as paredes com que o poeta se depara:
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
Não somos Tupinambá – não tivemos a oportunidade de sê-lo. A invasão das Américas pelos europeus resultou no quase extermínio de populações originárias e no sufocamento de suas culturas. Nossa cultura original feita de murta foi em grande parte massacrada pelo peso do mármore, mas é aqui, no sul do mundo, que resquícios de murta podem nos ajudar a compreender, ex-perienciar e ensinar formas mais maleáveis de existir, com a ajuda dos poetas e, esperamos, da psicanálise.
E a psicanálise?
Como o próprio Winnicott nos ensinou, ao compor o Grupo do Meio nos anos de luta entre Anna Freud e Melanie Klein na Sociedade Britânica de Psicanálise, pensar além de Freud não é o mesmo que deixar Freud para trás ou abandoná-lo. Ao contrário, é empurrar o pensamento freudiano para além dos limites de sua vida, empurrá-lo para além do tempo em que viveu, quando o patriarcado, o colonialismo e o racismo em relação aos não europeus permeavam a cultura europeia. Se estivesse aqui conosco, Freud provavelmente estaria pensando a crise climática, quem sabe interessado pelo que culturas de murta podem nos ensinar. Pensamos além de Freud para pensar com ele o que a psicanálise tem a dizer sobre a crise que vivemos, especular o que a clínica pode fazer face à ameaça concreta de extinção e qual o papel de nosso campo para uma possível resolução da crise. Também nessa tarefa escuto a voz de Winnicott convocando ao pensamento e à ação dos psicanalistas:
Na maturidade, o ambiente é algo para o qual o indivíduo contribui e pelo qual o homem ou mulher individuais se sentem responsáveis. Nas comunidades em que há uma proporção suficientemente elevada de indivíduos maduros existe um estado de coisas que proporciona a base para o que chamamos democracia. Se a proporção de indivíduos maduros se encontra abaixo de um certo número, a democracia não poderá se tornar um fato político, na medida em que os assuntos da comunidade receberão a influência de seus membros menos maduros, aqueles que, por identificação com a comunidade, perdem a sua individualidade, ou aqueles que jamais alcançaram mais do que a atitude do indivíduo dependente da sociedade. (1990, p. 173)
Pensar a relação da psicanálise com a natureza, mesmo que de formas distintas daquelas propostas por Freud, pode ser uma imposição ética à psicanálise neste momento. O desmatamento no Brasil, a elevação da temperatura na Terra, a ocorrência crescente de fenômenos climáticos extremos, a fome que assola porções enormes da população humana nos impõem o compromisso de pensar nossa relação com o mundo.
Essa preocupação pode se expressar de várias formas. Podemos nos perguntar se os pacientes trazem as mudanças climáticas em suas análises e se seus analistas deveriam buscar entender os efeitos da crise sobre eles. Ou então especular se a psicanálise pode ajudar a compreender o comportamento humano diante da crise climática, ou mesmo se tem alguma contribuição para pensar saídas para ela. Do clínico ao social, do ético ao político, a psicanálise e os psicanalistas, necessariamente, são confrontados com o tema.
As mudanças climáticas são assunto de nossos pacientes? Colegas europeus relatam que elas comparecem cada vez mais nas análises, como conteúdo consciente ou inconsciente, demandando dos analistas uma reflexão sobre esse fenômeno na clínica. Aqui, do lado de baixo do Equador, aqui onde a murta se incrusta no mármore, nossos pacientes se referem ao mundo social e natural apresentando questões que, embora se relacionem à crise climática, não aparecem como tal. Pobreza, desemprego, violência são antigas mazelas da sociedade brasileira, sempre presentes em nossas salas de análise. Países do sul, pobres, litorâneos, com grande desigualdade social são os mais atingidos pelas mudanças climáticas, e velhos problemas podem dar a falsa impressão de serem distantes da crise global. Mas a tendência é de que se agravem, comparecendo com mais frequência em nossos consultórios. Ainda um privilégio da branquitude, essa agenda, como a psicanálise, precisa ser descolonizada.
Os psicanalistas devem tentar compreender os efeitos da crise climática sobre seus pacientes? Tanto quanto o fizeram em outras graves crises da humanidade. Em 1918, o 5° Congresso Internacional de Psicanálise, em Budapeste, teve como tema os traumas de guerra. Os efeitos do clima sobre a subjetividade já se fazem sentir no Brasil. Em pesquisa realizada com 10 mil pessoas, com idades entre 16 e 25 anos, em 10 países, 48% dos brasileiros entrevistados disseram que as mudanças climáticas afetam negativamente a intenção de ter filhos – maior proporção da lista e acima da média de 39% entre as nacionalidades pesquisadas (Hanna, 2021).
A psicanálise pode ajudar a entender o comportamento humano diante da crise climática e a pensar saídas? Desde Freud, ela buscou compreender a dinâmica de crises sociais e políticas. Em 1915, Freud (2010a) analisou o 2° Reich Alemão. No fim do século 20, Hanna Segal (1987) pensou a Guerra Fria, que via como sustentada por ansiedades esquizoparanoides, com desejos inconscientes de destruição e morte presentes em ambos os lados da disputa e projetados no adversário. Mais tarde, interpretou a Guerra do Golfo como um redirecionamento da hostilidade esquizoparanoide dos eua e de seus aliados para Saddam Hussein (Segal, 1995). Entre Freud e Segal, e depois dela, muitos se apoiaram na psicanálise para pensar crises humanas. Para Rustin (2013), a dinâmica das elites do capitalismo, ignorando os riscos do descaso com o planeta, se assemelha ao que descreve Segal. Elas não querem simplesmente consumir mais, mas garantir seu poder em relação a rivais imediatos e aos demais. O consumo converte-se em sinal de sucesso competitivo, e a crise ambiental reflete a dinâmica de destrutividade do conflito interno descrito por Segal. Rustin vê o risco de exaustão do que a natureza produziu durante milênios como um ataque inconsciente às gerações futuras, numa cultura individualista em que a exacerbação do narcisismo leva ao enfraquecimento do senso de comprometimento com as gerações futuras e à negação da herança recebida dos ancestrais.
A psicanálise tem muitos recursos para analisar os mecanismos inconscientes que reforçam e refletem uma estrutura social que parece cada vez mais suicida. A psicanálise brasileira tem maturidade para se engajar nessa tarefa, e a posição do Brasil nos põe diante da necessidade ética disso. Nosso país é detentor da maior floresta tropical do mundo, mas também autor, atualmente, de ataques criminosos ao meio ambiente, que provocam olhares preocupados do planeta. Além disso, nossas culturas de murta ensinam que é possível conceber uma relação diferente de dependência do ambiente, sem uma pressão tão defensiva para dominar e controlar um objeto visto como perigoso.
No espaço da clínica, esse trabalho acontece analisando os mecanismos inconscientes que se entrelaçam ao mundo externo e produzem novas formas de sofrimento psíquico. No plano político e social, investigando como o funcionamento inconsciente dos sujeitos desses tempos suicidas pode oferecer abertura para caminhos de mudança. No plano teórico, pensando a relação dos seres humanos com o mundo natural, pelas lentes da psicanálise. Não serão caminhos fáceis, pois alguns envolvem uma mudança radical em nosso modo de vida, transformações estruturais na sociedade e uma disposição individual para o enfrentamento de enormes desafios. Se o trabalho com os pacientes só pode acontecer na sala de análise, a passagem da compreensão para a ação ocorre no âmbito político e social. É nesses dois espaços – tão distintos, mas tão entrelaçados – que os psicanalistas podem contribuir com a busca de saídas para uma crise que ameaça concretamente as futuras gerações e todos os seres vivos do planeta. Pensar essa crise vai exigir da psicanálise e dos psicanalistas pensar também nosso modo de estar no mundo e nossos laços indestrutíveis com ele.