O conceito de agressão é problemático em Freud, desde o início, quando é tido como o componente sádico da pulsão sexual, até o final de sua obra, ao ser equalizado com destruição e ódio. Proponho uma releitura crítica desse percurso, e para tanto começo apresentando o material clínico de Raul, que nos permitirá pensar o lugar da agressão na clínica cotidiana, nos casos em que, no momento da constituição especular narcísica do eu, algo se desvia e a agressão se imprime como degradação na essência do ser, transformando o discurso em cacos que se expressam como pedaços de desejo, abrindo, regressivamente, fendas num aparelho de linguagem que já não pode se constituir.
Raul procurou-me para análise por insistência de uma família muito perturbada e com fortes traços autodestrutivos, o que causava nele profundo desespero e certeza de que nunca poderia abandoná-la, com medo do que poderia acontecer à integridade de seus membros. A mim, comove-me seu imenso desamparo.
RAUL: Não consigo imaginar uma figura em cinco dimensões. Sei que existe, mas não consigo imaginar. Pode ser interessante ler a tese do cara que diz que um mais um pode ser três. No final, a matemática é lógica pura. Talvez por isso que, apesar da matemática me encher um pouco com as contas, gosto dela. [Cantarola uma melodia que não identifico.] Não sei. Sabe o que é surpreendentemente lógico? A música. [Cantarola.] Desculpe, sei que na verdade isso é horrível.
ANALISTA: O que é horrível?
RAUL: Esse som que não ressoa para quem ouve do mesmo modo que para quem canta. Ouço as vibrações e o som, que são diferentes para mim e para as pessoas que estão ao redor. Quanto ao ser bizarro, por serem vibrações, seguem por meu corpo inteiro e chegam aos meus ouvidos. Estou ouvindo e sentindo elas ao mesmo tempo. Todo movimento faz um pouco de som, a menos que seja no espaço. Não que no espaço não se faça som, mas o som não se propaga, as ondas desaparecem. Aliás, deve ser bizarro não conseguir falar. Má, má, má, máááá. Como os astronautas com aqueles tubos para não se perderem no espaço. Aqueles fios têm possibilidade de transmitir o som.
ANALISTA: Como é difícil essa comunicação.
RAUL: A impressão é que falei de várias coisas diferentes. Uhnnn, uhnnn, uhn, uhn [melodia].
ANALISTA: Você sabe que música é essa?
RAUL: Sei lá. É uma junção de músicas. Tem um pouco da abertura dos Simpsons, um pouco da Pantera Cor-de-Rosa, algo de jazz, algo de música instrumental. [Estica os braços e faz um movimento como se estivesse segurando um revólver.] Pam-pam-pam, pororó, pam-pam-pam.
ANALISTA: Vejo o esforço para me comunicar o que está aí dentro, como sente sua inserção neste mundo, e manter-se vivo.
RAUL: Taram, tam, tam... Taram, tam, tam... Quando estou mais poético, às vezes saem letras também, e quando estou sozinho, é muito embaraçoso cantar, pois não sei cantar. Taram, tam, tam. [Faz a batuta com os dedos.]
A fala de Raul nos põe, de modo primoroso, em contato com o efeito da tendência agressiva sobre a constituição de um narcisismo que não chega a estruturar um eu coeso. O esforço comovente que faz para tentar atar as pontas esgarçadas de suas falas e seus sentimentos, o esforço que tenho de fazer para manter-me ligado a ele, os recursos musicais, onomatopeicos, de que lança mão para vibrar dentro de mim, são expressões de uma estrutura psíquica precária e insuficiente para fazer dele um in-divíduo. As marcas da agressão degradada são evidentes e profundas.
Fundamentando a agressão: um ato em dois tempos
Para a etologia, agressão é o ato de ir em direção a um semelhante para impor-se sobre ele, um instinto de combate do animal dirigido contra o próprio congênere para afastá-lo (Lorenz, 1973/1974). Um ato, portanto, em dois tempos: ir em direção a, para afastar. É diferente da predação, que se refere ao ataque a outras espécies, com a finalidade de destruí-las. Portanto, a agressão no reino animal é um ato de aproximação que visa o distanciamento – que irá possibilitar o acasalamento sexual e a autopreservação – e, note-se, não envolve a destruição imediata e direta do outro. É o paradoxo da vida. Talvez no homem, por não ter claro o que é o outro, a diferenciação desses dois comportamentos fica comprometida, sobrepondo-se agressão e predação. Homo homini lupus.
Numa primeira visada, a etimologia da palavra agressão (ad-gradus = ir em direção a) pode nos levar a um lugar diferente daquele proposto pela etologia, ou seja, ir em direção a, com o fim de destruir. A psicanálise subscreve, desde Freud, essa confusão etimológica.
Inicialmente, para Freud, a agressividade é compreendida como um componente da pulsão sexual, que liga, que une, que tem como meta o domínio. Ele considera a agressividade uma energia corporal, cuja fonte é a força muscular e que vai em direção ao outro, visando dominá-lo, tendo uma intenção ativa - portanto, masculina. É o componente da pulsão sexual que busca vencer a resistência e dominar o outro como objeto sexual passivo (feminino). A agressividade seria, portanto, em sua essência, o componente muscular da pulsão sexual, que tem como meta o domínio do outro e a perpetuação da espécie. Vemos que escapa a Freud, nesse primeiro momento, o segundo tempo do ato agressivo, que é a intenção de provocar o afastamento, o que só será introduzido após 1920, com a proposição da pulsão de morte, ainda que de modo distorcido.
Mas caminhemos em nosso tempo, o tempo da construção teórica proposta por Freud. O que faz Freud com esse conhecimento linguístico-etológico? Perverte-o a ponto de torná-lo independente, ao transformar aquilo que está dado como lógica da natureza em lógica humana e cultural, na qual, no lugar do instinto, propõe a pulsão, essencialmente humana. A agressão é transformada no componente sádico da pulsão sexual. Esta já não constitui um saber, como o é a carga instintiva dos animais, mas um não saber, que tende mais ao desvio do que à determinação de caminhos. É aqui que a destrutividade humana pode ou não se instalar como perversão da agressão, um caminho sem rota definida, mais degradação do que agressão. Vemos isso impresso no discurso de Raul.
Em 1915, em “Pulsões e destinos da pulsão”, Freud define o ódio como uma das polaridades do amor, no que tem razão, mas introduz, a meu ver, uma petitio principii de consequências profundas na compreensão psicanalítica da agressão, ao equalizá-la com o ódio e com a destrutividade, e não com o potencial de corte que insere na natureza humana. O ódio e a destrutividade podem ser sobrepostos, a agressividade não, pois esta carrega o paradoxo da aproximação para desligar, negativar, o que não acontece com os outros dois impulsos, que são paixões, ligações, que podem chegar ao extremo da incorporação.
O segundo tempo da agressão: afânise do eu e constituição do ser
A agressão e o eu são dois conceitos que vão se tornando cada vez mais problemáticos na obra de Freud: o eu pelo lugar central que vai assumindo na constituição do ser, e a agressão pela equalização que vai sofrendo com a destrutividade. Enfrentemos o desafio de recolocá-los em seus lugares: o eu em seu lugar de engano, e a agressão em seu tempo de constituição, como potencial de corte. Assim procedendo, propomos engano e corte na essência da natureza humana.
Lacan faz, de modo muito preciso, a articulação desses dois conceitos quando propõe ser a agressividade “a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico, e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades característico de seu mundo” (1948/1998, p. 112). A agressividade seria, portanto, corolário da constituição narcísica do eu, sendo ela antes tendência regressiva que ato, dando-se, portanto, em dois tempos. Seria esse o tempo tangenciado por Freud quando fala em agressão com meta inibida, ou seja, “atos de agressão de que alguém se abstivera” (1930/1974a, p. 161)? Essa agressão inibida como ato implicaria, então, uma tendência estruturante por efeito de corte, lugar mítico do pai da horda primeva, Urvater, registro real do inapreensível da pulsão de morte (Magdaleno Júnior, 2019)?
Ao acompanharmos o desenvolvimento das funções do eu na teoria freudiana, podemos perceber como vai se tornando um conceito-problema. Confundido com o sujeito, o eu toma a frente como instância de negociação, de resistência, de defesa, de projeção e introjeção, como ilusão de integridade e de conjunto. Nada mais distante do que encontramos em nossa clínica e em nós mesmos. O eu, essa construção narcísica, passional, alienada a um outro, construção melancólica a partir de investimentos abandonados, sem fronteiras próprias e que tende a se dissolver, ocupa um lugar cada vez mais destacado na estrutura da mente e, por conseguinte, na técnica psicanalítica, o que não deixa de trazer grandes problemas para nossa práxis. A ilusão de um eu íntegro, forte, lógico e amoroso apresenta-se como ponto de chegada na constituição do ser, passando a ser esse o objetivo de um tratamento psicanalítico bem-sucedido, com o enorme risco de transformar a psicanálise em um método ortopédico e normatizante.
Sendo o eu uma organização passional, sua constituição estabelece, necessariamente, uma tensão conflitiva interna, pois seu desejo aliena-se ao desejo do outro especular, passando a ser objeto do desejo do outro. É aqui que se impõe o segundo tempo da agressão, tempo do corte, que estabelece uma concorrência agressiva, da qual “nasce a tríade do outro, do eu e do objeto, que fende o espaço da comunhão especular” (Lacan, 1948/1998, p. 116). Entendo que é nesse contexto que Lacan afirma que “o eu, desde sua origem, se afigura marcado por essa relatividade agressiva” (p. 116), guardando sempre, em sua essência, uma opacidade, que o confunde com as estruturas que o envolvem como sua realidade, seu Umwelt, e um elemento agressivo, que o ameaça em direção à imagem de despedaçamento, que é, ao mesmo tempo, terrorífica e potencialmente criadora do novo.
A alteridade fundamental na constituição especular do eu introduz a aporia do “o eu é um outro” (Lacan, 1948/1998, p. 120), que causa um aparente fechamento de sua compreensão, mas que, muito pelo contrário, nos permite desenvolver o campo da agressão de modo muito promissor, como tendência constitutiva do ser que possibilita o movimento criativo, desalienante, de vida, para o bem ou para o mal, dependendo da ação imprevisível do outro. A característica própria de sua constituição é determinada, portanto, pela presença indispensável do Nebenmensch, semelhante do qual depende e no qual se espelha, mas do qual se afasta agressivamente, rompendo-se e despedaçan-do-se, pela tendência ao desligamento constituinte da essência agressiva da pulsão. É nesse mesmo processo que se constitui o não eu, o outro que nada mais é do que a marca da agressão no sujeito, o outro lado da mesma moeda, complemento negativo, ou negativado, do eu narcísico, passional, e que é confundido com aquilo que sou. Desse modo, a dialética do eu e do não eu concebidos como superfície moebiana nos permite expandir a compreensão de seu lugar na constituição da psique e na clínica psicanalítica, colocando-nos frente a um problema ontológico que impõe a compreensão do ser humano a partir de referenciais próprios: ao não discriminar claramente o que sou eu e o que é o outro, o ser humano agride a natureza e cria em seu lugar a natureza humana, determinada pelo significante, que se nos apresenta em nossos divãs.
Assim, a questão fundamental que se coloca é que no filhote de homem, diferentemente do que acontece nos outros animais, “a identificação primária estrutura o sujeito como rival de si mesmo”, ou seja, a tendência agressiva que seria dirigida ao outro semelhante passa a ser, primariamente, uma “tensão correlata à estrutura narcísica no devir do sujeito” (Lacan, 1948/1998, pp. 119-120). Entendo ser esse o ponto de ruptura entre o humano e seus aparentados viventes: ao se reconhecer jubilosamente no espelho como eu, cria a ilusão de uma unificação imaginária de si que não resiste aos menores movimentos de seu entorno. Aquele semelhante que sou e não sou eu, e que teimosamente insiste em responder à minha demanda de completude com o desencontro ou com o excesso desejante, passa a ser causa de uma tendência agressiva que é ânsia ambivalente de aproximação e de afastamento e que se instaura na essência mesma do ser.
O eu, desde sua origem, se afigura marcado por essa relatividade agressiva, nunca sendo “redutível à sua identidade vivida” (Lacan, 1948/1998, p. 116), confundindo-se com seu Umwelt, tendo como corolário a montagem do corpo despedaçado, referencial imaginário daquilo que virá a ser o modelo posterior do desamparo e suas formações defensivas, sempre agressivas. Desse modo, o eu se constitui faltoso, carregando em sua essência a marca regressiva de seu despedaçamento original, sendo por isso sempre uma estrutura frágil e precária, que depende de seus processos defensivos para se manter imaginariamente coesa, coesão essa que se perde ao se colocar frente a um outro. É nesse contexto que podemos entender o eu como engano. A transferência apresenta-nos esse fenômeno o tempo todo na clínica, e de modo muito mais radical nos fenômenos de massa, tão naturais e espontâneos em nossa vida.
É no estudo da psicologia das massas que Freud (1921/1976b) vai, por outros caminhos teóricos, sustentar que esse campo da agressão, que impõe ao eu sua afânise, é desencadeado por um efeito hipnótico – portanto, imaginário e especular – do líder em relação aos indivíduos que constituem o grupo e que, alienados a ele, narcisicamente, despem-se de seus eus, passando a funcionar como parte de um todo, perdendo suas fronteiras e sua individualidade. Diz ele que, na massa, “encontramos o prodígio do desaparecimento completo, embora apenas temporário, exatamente daquilo que identificamos como aquisições individuais” (p. 163). Em nenhum outro ponto da teoria freudiana seus paradigmas são colocados em questão de forma tão radical: o eu é entendido como uma superfície de Moebius e o ser como quântico.
A agressão como expressão primária da pulsão de morte
Com base na formulação freudiana de que o objeto é constituído pelo afastamento daquilo que causa desprazer, temos de admitir um efeito primário de negativação. Nesse sentido, proponho a agressão como expressão primária da pulsão de morte, que se constitui, num tempo lógico, a partir da experiência monádica, narcísica, do infans, e que tem efeito de corte e afastamento. Trata-se de uma experiência subjetiva, não um ato, que nos é apresentada como intenção de agressão, ou seja, tendência de corte com efeito direto na própria constituição da essência do ser.
A separação do objeto e do eu prazer purificado, narcísico, seria, portanto, decorrente da agressão como expressão primária da pulsão de morte, ainda não atravessada pela pulsão sexual, um resto real da presença humanizante do Urvater proposto por Freud em Totem e tabu (1913/1974b). Penso ser esse efeito estruturante da agressão central na constituição do ser dividido que é o homem, efeito que se impõe antes que a pulsão sexual tenha sido nele construída a partir da libidinização da ajuda alheia.
Onde localizar a agressão nessa nova proposição? Podemos dizer que é ela que determina o parlêtre como ser dividido, condenado a ter como causa de seu desejo o objeto necessariamente perdido, aquele que poderia ter sido, mas que nunca foi, pois construído a partir da dor causada por não ter estado ali, au pair, no tempo justo. O desejo, ao redor do qual fala o homem, é marca da agressão enquanto expressão primária da pulsão de morte, sendo essa tendência imaterial, a-histórica, a causa do humano e, poderíamos dizer, sua única saída, pois é dela que depende a não alienação do ser ao outro, a resistência ao fanatismo e ao adoecimento narcísico e psicossomático.
Freud, ao não sustentar a pulsão de morte como tendência humana ao desligamento, reforça, vicariantemente, o lugar de um eu como tendência de integração e síntese, que determina um exterior e um interior, um fora e um dentro, um para fora e um para dentro, que pode ser rompido, danificado, mas que está sempre lá, mantido por uma espécie de determinação primária à ligação.
Essa forma de constituir-se deixa em sua esteira grandes problemas para esse ser desamparado genial. Como um eu constituído narcisicamente e um não eu constituído pela dor geradora de ódio podem chegar a formar laços, isso que chamamos de Kultur? Como nos afastarmos do conflito hobbesiano permanente, imposto pela constatação de que cada homem é inimigo de outro homem? Quais opções têm o ser humano para não se perder na barbárie, em guerras intermináveis, submetido para sempre ao “Lupus est homō hominī, nōn homō, quom quālis sit nōn nōvit”,3 de Plauto, retomado por Hobbes como “homo homini lupus”? Enfim, como um ser estruturado a partir dessa lógica agressiva pode amar algo que não seja a si mesmo ou, no máximo, seu complemento narcísico?
O desamparo do eu, a corrupção regressiva da agressividade em predação e a felicidade possível
Os homens são criaturas dotadas de uma tendência de corte, que pode ser facilmente degradada pela sua condição de prematuridade e desamparo iniciais, em montagens destrutivas, expressas pela maldade e pela crueldade. O papel do Nebenmensch é essencial no sentido de extrair da tendência agressiva seu potencial para o novo, ou degradá-la em predação ou no mal pelo mal. O filhote de homem é, portanto, uma criatura frágil e de alto risco, que se constitui a partir de uma sequência interminável de acasos, cuja resultante nunca pode ser prevista. O sujeito humano, sempre barrado por essa natureza agressiva de sua constituição, decorre de uma lógica probabilística com poucas garantias, visto que o Nebenmensch que o viabiliza está atravessado pela mesma incerteza que acompanha a espécie desde seu momento mítico fundante, em que se incrusta um assassinato, causa do desejo jamais realizado. Em função de seu desamparo e da dor decorrente dele, transforma facilmente o não eu, que é parte de si mesmo, em estranho, em relação a quem desenvolve uma atitude mais predatória do que agressiva. Bellum omnium contra omnes.4
Mas como evitar a inviabilidade dessa espécie tão particular? A Kultur, ao proteger os homens da natureza, proporciona segurança, mas para ajustar seus relacionamentos impõe um mal-estar, a infelicidade, pois seu estabelecimento é marcado pelo impasse, pela tensão imposta pela constituição elementar de seus indivíduos. Como no homem não há propriamente um externo e um interno, são campos que se confundem, há uma perda do senso de direção e da distinção clara entre o que é realidade e o que são os outros, sempre construções imaginárias. O Innenwelt toma a cena do Umwelt. A proteção contra a natureza volta-se contra si e desliga-o da própria natureza. A tendência agressiva cinde o sujeito e desliga-o de sua natureza biológica, tornando-o ser cultural, ser de linguagem, potencialmente criativo e mau em razão de seu desamparo e fragilidade.
A agressão, dependendo do lugar/tempo ocupado pelo Nebenmensch, transforma o homem em ser de digressão, de transgressão ou de degradação, tendo em seu limite a predação indiscriminada, quando tudo que é não eu torna-se sinônimo de ameaça, ódio e necessidade assassina, estado de natureza (Hobbes, 1651/2014), com seu altíssimo potencial de destruição.
Frente a essa ameaça de caos destruidor, em que aparecem “a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um”, Freud vai enxergar como saída a construção do supereu, que se constitui pela incorporação da autoridade paterna e que produz a “natureza profundamente moral da humanidade” e o “sentimento inconsciente de culpa” dela decorrente (1930/1974a, p. 143-147), ao preço, entretanto, de um mal-estar incontornável e uma infelicidade necessária, que acabaria por gerar mais tensão no seio da civilização formada por esses seres nada dóceis, sedentos de suposta felicidade plácida e segurança.
Concordo com Freud que os homens são criaturas dotadas de uma poderosa quota de agressividade, mas penso que somente quando essa agressividade se deteriora e se transforma em crueldade e assassínio, sempre no limiar da destrutividade e do autoaniquilamento, é que nos deparamos com a maldade. É nesse sentido que Freud diz que via de regra essa agressividade espera por alguma provocação, ou seja, que ao ser provocada pode degradar-se, passando de elemento essencial da criatividade humana para seu corolário destrutivo e assassino. Visto que a agressão é primariamente tendência ou inclinação, para se tornar ato ela necessita de provocação, sem a qual mantém sua essência como tendência probabilística em direção ao desligamento. Não devemos, portanto, equacionar a agressividade, expressão primária da pulsão de morte, com seus desvios em ódio, maldade e crueldade. Contudo, o limite é sempre muito tênue, e a banalização do mal está sempre muito próxima, bastando para fazê-la surgir pequenas provocações narcísicas, pequenas diferenças ou pequenos ressentimentos.
A agressão seria, então, a inclinação que possibilita a existência tão particular do homem enquanto sujeito barrado/desejante, marcado pelo significante, com seu alto potencial de ruptura e criatividade. Essa tendência agressiva impõe ao homem um deslocamento, um movimento interminável de ruptura que o determina, sendo a felicidade um estado de espírito decorrente do movimento do desejo em direção a outro desejo, que desencadeia um novo movimento (Hobbes, 1651/2014), ou seja, uma vertente cíclica de busca interminável, e que inclui, necessariamente, um outro como causa. Essa concepção afasta a felicidade humana, de maneira definitiva, de um improvável estado de nirvana, estado de imobilidade satisfeita, muito mais afeito a um processo de hibernação do que à inquietude que contempla a felicidade possível, compartilhada, dos homens.
A felicidade é um sentimento que se ancora, portanto, numa inquietação e num movimento que tem em seu fundamento a agressão, o ir em direção a um desligamento, ou melhor, à tendência ao desligamento como elemento constitutivo essencial da natureza humana, que provoca uma inquietude desejante e possibilita ir ao encontro da meta freudiana “Wo Es war, soil Ich werden”,5 e que aponta para uma psicanálise que favoreça a expressão do sujeito do inconsciente (Ich) a partir de um verdejar (werden) do isso (Es), livre da repetição predeterminada, monótona, imposta pela natureza ou pela neurose, e para quem a beleza da transitoriedade possa ser alcançada pelo potencial de criatividade do olhar, atravessado pelo desejo, barrado, do homem.