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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.2 São Paulo  2022  Epub Aug 19, 2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n2.05 

Trabalhos do 28° Congresso Brasileiro de Psicanálise

Por uma clínica implicada1: Atendendo um órfão de mil homens

Por una clínica implicada: atendiendo a un “huérfano de mil hombres”

For an implied clinic: attending to an “orphan of a thousand men”

Pour une clinique impliquée : la prise en charge d’un «orphelin de mille hommes»

Denise Zanin2 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (Sbprp)

Josimara Magro Fernandez de Souza3 

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (Sbprp)

2Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (Sbprp)

3Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (Sbprp)


Resumo

Neste artigo, as autoras utilizam uma situação clínica, o atendimento de um menino em vulnerabilidade psicossocial, para tecer considerações a respeito do alcance do trabalho psicanalítico. Propõem ser possível trazer para o campo da atuação clínica diferentes dimensões imbricadas na constituição do humano – aí incluídas as dimensões históricas, sociais e culturais – sem perder a especificidade do encontro analítico. Consideram também que um trabalho assim pode ser transformador para ambos, paciente e analista, contribuindo para a constituição do paciente enquanto sujeito de sua história e expandindo a perspectiva de trabalho do psicanalista.

Palavras-chave psicanálise infantil; laços sociais; subjetivação; clínica extensa

Resumen

Este artículo utiliza una situación clínica, el cuidado de un niño en vulnerabilidad psicosocial, para hacer consideraciones sobre el alcance del trabajo psicoanalítico. Propone que es posible llevar al campo de la acción clínica diferentes dimensiones que están imbricadas en la constitución de lo humano, incluyendo las históricas, sociales y culturales, sin perder la especificidad del encuentro analítico. También considera que tal trabajo puede ser transformador tanto para el paciente como para el analista, contribuyendo a la constitución del paciente como sujeto de su historia y ampliando la perspectiva de trabajo del psicoanalista.

Palabras clave psicoanálisis infantil; vínculos sociales; subjetivación; clínica extensa

Abstract

This article uses a clinical situation, with a boy in psychosocial vulnerability, to make considerations about the scope of psychoanalytic work. It proposes that it is possible to bring to the field of clinical action different dimensions that are imbricated in the constitution of the human, including the historic, social, and cultural ones, without losing the specificity of the analytical encounter. It also considers that such a work can be transformative for both: patient and analyst, contributing to the constitution of the patient as a subject of his history, and expanding the psychoanalysts perspective of work.

Keywords child psychoanalysis; social ties; subjectivation; extended clinic

Résumé

Cet article utilise une situation clinique, la prise en charge d’un garçon en situation de vulnérabilité psychosociale, pour faire des réflexions sur la portée du travail psychanalytique. Il propose qu’il soit possible d’apporter au champ de la pratique clinique de dimensions différentes imbriquées dans la constitution de l’humain, y compris les historiques, les sociales et les culturelles, sans perdre la spécificité de la rencontre analytique. Il considère également qu’un tel travail peut être transformateur à la fois pour le patient et l’analyste, tout en contribuant à la constitution du patient en tant que sujet de son histoire et en élargissant la perspective du travail du psychanalyste.

Mots-clés psychanalyse de l’enfant; liens sociaux; subjectivation; clinique étendue

O modo como nos relacionamos com a infância diz muito sobre como nos relacionamos entre nós, como concebemos a ideia de alteridade e lidamos com ela. Crianças costumam despertar olhares e gestos de proteção e cuidado. Mas será que nós cuidamos de todas as crianças da mesma forma?

O escritor Valter Hugo Mãe, no livro O filho de mil homens (2012), sugere que uma criança nunca é filha apenas daqueles que biologicamente a geraram. Uma criança é filha de mil homens, filha do mundo. Todos são responsáveis por ela. Nas palavras do autor, “somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”. E acrescenta: “Solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo” (p. 188). Em nossa percepção, este é um tempo de muita solidão, em que as pessoas “se esqueceram” de se ver umas nas outras. Tentamos aqui, ao propor uma clínica psicanalítica implicada, resgatar essa capacidade de ver qualquer criança como nos pertencendo.

Pretendemos abordar uma situação clínica como estímulo para a reflexão, a posteriori, de nosso papel como psicanalistas. Acreditamos que podemos ter uma função muito valiosa ao considerar, tanto na sala de análise como em projetos mais amplos, diversas dimensões imbricadas em nossa constituição enquanto humanos. Fabio Herrmann, apoiado em sua teoria dos campos, apresenta à psicanálise o conceito de clínica extensa, que trata de uma concepção ampliada de psicanálise e também diz respeito à prática clínica, “uma psicanálise que pensa as múltiplas condições do homem no mundo” (2003, p. 7).

Dessa forma, buscamos conceber o pensamento clínico sem a falsa oposição entre interno e externo, entre mental e cultural, na medida em que todas essas dimensões estão entrelaçadas, constituem-se mutuamente e podem ser experimentadas na intimidade do encontro psicanalítico. Acreditamos ainda ser fundamental que o psicanalista, enquanto ser inserido no mundo, tenha condição de se aproximar das dores do paciente em diferentes níveis. Assim, a experiência compartilhada no par, por vezes sem palavras, pode ser ampliada pela compreensão dos diversos modos de violência e preconceito presentes na estrutura da sociedade e perpetuados na cultura, que também atravessam a dupla analítica. Esses elementos podem alcançar palavras e representação, caso o analista tenha a capacidade de ser receptivo a eles, percebê-los e levá-los em consideração.

Ter uma casa neste mundo

Um bebê chega ao mundo e precisa encontrar “uma casa”. Necessita, ainda antes, encontrar espaço no ventre/na mente da mãe, sua primeira morada, podendo, aos poucos, construir seu próprio psiquismo, em que as fronteiras psíquicas (eu-outro, dentro-fora) ordenam, organizam e delimitam o eu, inicialmente imerso em um caos de indiferenciação e transbordamento. Quando uma criança nasce, há uma rede de mensagens (em sua maior parte, inconscientes) veiculadas pelo seu entorno que lhe atribuem um lugar: no casal, na família, no mundo (Rosa, 2018). Mas também pode haver uma rede de mensagens que a destituem de um lugar na sociedade. Em nosso país, de passado marcadamente escravocrata e com uma desigualdade social assombrosa, qual seria esse lugar subjetivo designado a uma criança negra, nascida na periferia? Seria esse um lugar ou um não lugar?4

Rosa ressalta que “os discursos que circulam num dado tempo indicam os modos de pertencimento possíveis para cada sujeito, atribuindo a cada um valores, lugares e posições no laço” (2018, p. 24). Segundo a autora, a criança pode nascer em meio a um desamparo discursivo – o desamparo que a lança em um apagamento –, e o indivíduo necessita encontrar em seu espaço-tempo um lugar no qual suas angústias e conflitos psíquicos sejam atualizados e significados, o que, acreditamos, pode ser oferecido pelo trabalho psicanalítico.

A ambivalência básica entre o amor a si mesmo e o amor aos objetos – isto é, a tensão e o conflito permanentes entre os registros do narcisismo e da alteridade, entre o eu ideal e o ideal de eu – é um aspecto essencial para a psicanálise, entendendo-se que o ideal de eu seria resultado da inflexão promovida pelo complexo de Édipo com o impacto da experiência da castração (Birman et al., 2016). Conjecturamos que, apoiados no narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1930/2020) e na humana necessidade de sermos especiais, podemos, enquanto psicanalistas brancos(as), enxergar as situações de exclusão como naturais, o que pode se refletir em novas situações de exclusão e violência, até dentro de um processo analítico. Ogden discorre sobre a enorme importância de mantermos constante diálogo conosco: “O analista precisa ser capaz de experimentar e falar consigo mesmo” (1998, p. 58). Ao empreendermos trabalhos clínicos com sujeitos em situação de vulnerabilidade, necessitamos nos abrir para conversarmos profundamente com nosso próprio desamparo, com nossa casa interior e também com nosso narcisismo, inclusive com nossos ímpetos de expulsar o incômodo e doloroso outro, expulsar o estranho de nossa casa/mente.

Pretendemos propor que, na relação analítica e em projetos psicossociais, podemos ter uma visão ampliada e articular as questões gerais com as singulares, ou então, dito de outra forma, considerar como questões gerais (que transcendem aquele sujeito) estão presentes em sofrimentos singulares. O modelo utilizado é o de uma espiral, que nos permitiria localizar uma mesma questão em vários níveis, o que também contribuiria para uma compreensão do humano de maneira ampla e complexa.

Um órfão de mil homens

Lucas começou a ser atendido por uma de nós ainda na época da graduação em psicologia, por meio de um estágio que oferecia psicoterapia psicanalítica, em alta frequência, a crianças em situação de vulnerabilidade psicossocial. Os atendimentos prosseguiram por vários anos, e mesmo após o término do processo era frequente que Lucas contatasse a psicóloga que o atendeu para dar notícias de como estava. Lucas era uma criança negra, vinda de uma comunidade da periferia. Quando iniciou a psicoterapia, tinha 5 anos de idade, mas vivia acolhido institucionalmente em uma casa abrigo desde os 2 anos, devido a maus-tratos dos pais.

De sua família, só tinha contato com um irmão, que também morava no abrigo. No início do acolhimento institucional, ainda recebia visitas esporádicas da mãe, no entanto, com o processo de destituição do poder familiar, ela foi proibida de visitar os filhos. Lucas se mostrava bastante confuso em relação à sua família, à sua constituição e ao que havia acontecido com ela. Não tinha clareza sobre noções básicas, misturando o que era pai, avô e filho, ou mãe, avó e filha, por exemplo.

A construção de laços de confiança e de intimidade psíquica foi parte desafiadora e fundamental desse trabalho. A princípio, ele parecia não ter segurança para confiar à psicóloga suas emoções mais difíceis e turbulentas, mostrando-se um menino “bonzinho”. Como ele poderia confiar suas emoções mais intensas à psicóloga se suas experiências eram marcadas por violência e abandono, a começar por suas figuras de referência? Por outro lado, o abrigo, que tinha a função de garantir proteção à criança retirada de sua família, acabava por reeditar algumas violências.

A observação sugeria que, tal qual aquelas crianças esquecidas, o abrigo também se configurava como uma instituição esquecida pelo poder público, recebendo pouca atenção e poucos recursos financeiros. Os funcionários eram igualmente pouco valorizados, e ficavam desmotivados com o trabalho e descrentes da viabilidade de aquelas crianças aproveitarem um trabalho psicanalítico.

Isso tudo se refletia no atendimento de Lucas, que parecia ter pouco espaço, tanto concretamente, com a falta de sala para os atendimentos no abrigo, quanto na mente dos funcionários e educadores, que com frequência esqueciam o horário fixo das sessões e levavam a criança para outras atividades, em vez de mantê-la no abrigo para a realização da psicoterapia. Para empreender projetos dessa natureza, é preciso enfrentar muitas resistências, pois parece se configurar uma rede discursiva que vai reforçando a ideia de que “essas crianças não têm jeito, não”. Ciclos viciosos de descrença e apagamento do outro.

Dessa forma, a casa abrigo em que Lucas vivia pouco tinha de casa -muito da sua rotina na instituição era impessoal. Havia grande rotatividade de funcionários, bem como constantes trocas de endereço do próprio prédio do abrigo. Lucas demonstrava acreditar que, em suas frequentes transferências de abrigo, as pessoas das quais ele gostava ficavam sem saber para onde ele ia, permanecendo, dessa maneira, impossibilitadas de encontrá-lo. Do mesmo modo, as roupas e os pertences das crianças eram em sua maior parte coletivos, e as comemorações de aniversário se davam de maneira pouco individualizada, pelos aniversariantes do mês.

“Psicóloga, quando é meu aniversário?”

Certo dia, a psicóloga, ao chegar para uma das sessões com Lucas, foi surpreendida com a pergunta: “Psicóloga, quando é meu aniversário?”. Mobilizada por tal questão, perguntou a uma funcionária se poderia pegar a certidão de nascimento de Lucas. Descobriu, então, que ele não sabia informações básicas, como o nome do pai e o nome completo da mãe. Tampouco sabia de sua história, onde tinha nascido e quando. Consideramos que esse gesto espontâneo surgiu na intimidade da relação (sendo produto dela), mas ao mesmo tempo a transcendeu, ancorando-se na realidade externa. Ou seja, a psicóloga parece ter sido convocada para ser, por um tempo, abrigo para aspectos fundamentais da identidade do paciente. Tornou-se assim “sua memória”. Como diz Chreim (2019), ofereceu-se para ser “arquivista” de sua história, sua referência acerca de sua própria existência, passando a trazer de cor (de coração) dados importantes da vida de Lucas e a trabalhar também pelo não apagamento dele. Com isso, configurava-se um novo nascimento de Lucas: existir para o olhar do outro, nascer para o mundo, e aí sim fazer aniversário.

Intuitivamente, nesse “gesto psicanalítico”, a psicóloga estava sendo a experiência que Lucas demandava na relação analítica (o registro de uma existência afetiva no par), bem como a experiência necessária para Lucas se reinserir em uma história, em um contexto, o que, segundo Rosa (2018), é parte essencial do trabalho analítico. Pellegrino (1983) fala da importância de a criança herdar um nome, um lugar na família, para se constituir enquanto sujeito, inserido na sociedade e na cultura, em detrimento da livre satisfação dos prazeres instintivos.

Imaginamos ainda que, a partir da relação com a psicóloga, Lucas começou a conhecer outra faceta da vida, que até então ele parecia em grande parte impedido de usufruir – a dos vínculos de intimidade emocional entre duas pessoas. Surgiram condições para que ele, um menino que inicialmente se mostrava inibido, com uma fala restrita a poucas palavras e de difícil compreensão, pudesse ousar se interessar pelo mundo, pela psicóloga e por si mesmo. Lucas passou a fazer perguntas: “Psicóloga, você faz cocô?”, “Você nasceu da barriga da sua mãe?, Onde você mora?. Em alguns momentos, parecia querer verificar se a psicóloga compartilhava de suas descobertas: “Você sabe o que é manga? [a fruta]”, “Você sabe que a Terra roda?”, “Você sabe que mulher tem perereca?”. Começou a fazer diferenciações, criar fronteiras organizadoras do pensamento: “Você é mulher, né? Então você tem perereca, e eu sou homem, tenho minhoca”. Em vez de se ligar ao conteúdo de cada fala de Lucas, como seria de esperar na formulação de uma interpretação tradicional, a psicóloga compreendeu que o paciente precisava conversar com ela sobre várias situações da vida. Como diz Alvarez (1994/2020), mais do que formular interpretações, na relação com crianças que sofreram sérias privações, algo precisa existir pela primeira vez. Dessa forma, além de Lucas estar em um movimento de constituir-se e conhecer-se, tendo como referência a relação com o outro, ele estava podendo exercitar seu pensamento para explorar o mundo.

Uma criança que caiu

Psicóloga, você tem mãe?

Fala de Lucas, em uma das sessões

Algumas crianças não encontram um entorno que as acolha e as sustente. Parecem ter caído do ventre da mãe em lugar nenhum. Essa mãe, por sua vez, também pode não ter tido uma morada no ventre/na mente da própria mãe, tendo igualmente caído sem lugar, em uma rede esgarçada e esburacada que, em vez de proteger, expõe o indivíduo à violência do desamparo. No contato com Lucas era frequente a experiência de cair, enquanto mergulho em vivências de desamparo, impotência, exclusão e solidão. Por vezes, a comunicação desses sentimentos acontecia de forma visceral, momentos em que a psicóloga, em algum nível, se aproximava do desespero e da dor de Lucas. É importante destacar que, por mais que existissem momentos de compartilhamento de estados emocionais humanos, a distância entre a realidade da psicóloga e a de Lucas, um menino negro privado dos direitos básicos, era incalculável. Assim, é provável que muitas das violências sofridas por Lucas, órfão de mil homens, não pudessem sequer ser imaginadas pela psicóloga, habitante de outro lugar no mundo.

Embora estejamos aqui usando o cair em sentido simbólico, esse era um termo frequentemente empregado por Lucas em suas narrativas, para dar forma a seus desastres e à experiência de desamparo. Transcrevemos a seguir trechos de sessões psicanalíticas que possibilitam pensar alguns desses aspectos. Ressaltamos que essas sessões fizeram parte de um momento inicial das incursões psicanalíticas da psicóloga que atendeu Lucas, e muitas destas reflexões ampliadas, que estamos integrando ao olhar para o mundo mental, só puderam ser realizadas a posteriori.

Trecho 1

Lucas: Psicóloga, você nasceu da barriga da sua mãe?

Psicóloga: Nasci. Você nasceu?

Lucas: Também! Todo mundo nasceu, né?

Psicóloga: Ah… E como foi?

Lucas: Eu nasci da barriga da minha mãe. Ela me pegou no colo, eu olhei pra ela e disse: “Mãe, quero mamar na teta”.

Psicóloga: E aí?

Lucas: Aí ela me deu. Depois me deixou no berço até eu crescer. Aí ela me deu mamadeira e eu dormi e a mamadeira caiu.

Trecho 2

Lucas pede à psicóloga para brincarem de mamãe e filhinho. Finge que é bebê. Pede que ela traga um presente para ele, um carrinho.

Psicóloga: Você sente falta de uma mamãe pra estar junto com você, te dar carinho, cuidar de você. Toda criança deveria ter uma mamãe junto dela.

Lucas diz que nasceu da mãe dele, da barriga dela, e aí ela morreu e depois ele cresceu e a mãe viveu de novo. Diz:

Lucas: Você lembra quando eu era pequeno, que eu chorava muito?

Psicóloga: Por que você chorava?

Lucas: Porque eu queria leite. Aí a tia me deu mamadeira e eu parei.

Observamos que Lucas traz, em suas brincadeiras, narrativas relacionadas à relação entre mãe e filho. Bastante presente na transferência, a relação com a mãe parecia ser um grande buraco em sua vida, pelo qual ele frequentemente caía. Com a psicóloga, foi possível construir um contato lúdico e uma linguagem de intimidade em que predominavam os cuidados afetivos – a linguagem do universo mamãe e filhinho, onde aparecia a sua fome de contato afetivo.

Era nítido que Lucas pedia um contato vivo em que a psicóloga demonstrasse verdadeira disposição para estar com ele. Compreendemos que isso se expressava na fala do filhinho à sua mãe: “Quero mamar na teta”. Seu relato, porém, culminou com o filhinho deixado sozinho no berço, acompanhado da mamadeira – um objeto inanimado – no lugar da mãe. No segundo trecho aparece ainda uma mãe que “morreu”, deixando o pequeno Lucas triste e privado de contato humano, que ao final foi novamente substituído pela mamadeira. Conjecturamos que Lucas possa ter sentido muitos dos cuidados que recebeu como vindos de maneira impessoal, sem afeto. É provável que a própria instituição de acolhimento tenha veiculado uma cisão dessa espécie, encontrando extrema dificuldade em prover cuidados materiais integrados aos afetivos, o que nos remete ao conceito de Bion (1962/2021) de splitting forçado.

No primeiro trecho transcrito, parece estar implícito que o filhinho/bebê era o único responsável por sua condição, o que se expressa na necessidade de sustentar a mamadeira sozinho e na consequente fantasia de ter falhado nessa tarefa, pois – na narrativa de Lucas – a mamadeira que ele segurava acabou caindo. Nesse sentido, o fato de Lucas ter sido violentado e abandonado pelos pais parece ter contribuído para o acréscimo de sentimentos de culpa; ele parecia sentir-se responsável pelos desastres em sua vida, especialmente na relação com a mãe.

Acreditamos ser de particular importância nos atentarmos para o risco de interpretações que se concentram unicamente no chamado mundo interno – sem a necessária articulação com a história individual e com o contexto histórico e sociocultural em que a criança está inserida – se tornarem parciais e culpabilizadoras, ao colocar no sujeito toda a carga e responsabilidade por uma situação. O não reconhecimento, pelo analista, da privação vivida pela criança pode trazer acréscimos à situação traumática, retraumatizando-a. Nesse sentido, Alvarez (comunicação pessoal, 27 de novembro de 2021) recomenda que, no trabalho com crianças que sofreram muitas privações, o analista use uma espécie de linguagem de justiça, em que as perdas sofridas por elas sejam reconhecidas e suas possíveis reivindicações sejam validadas, o que foi feito intuitivamente pela psicóloga quando disse ao paciente: “Toda criança deveria ter uma mamãe junto dela”.

A cor de Lucas

Trecho 3

Lucas começa a misturar tinta preta, fazendo uma cor escura.

Lucas: Véia. Cor de véia. A vó é véia.

Psicóloga: [Pensa que Lucas está contando da família dele.] Você tá pintando pessoas… Pessoas de uma família. A gente tava falando da mamãe rosa, depois a pintura ficou escura.

Lucas: Tem rosa ainda na água. Aqui ó. O pai é preto.

Então, Lucas passa a pintar as mãos com a tinta escura.

Psicóloga: Agora você tá me mostrando o filhinho?

Lucas: É cor de bruxa. A mãe é bruxa. … Ela matou os filhinhos… [Silêncio. Lucas continua a pintar as mãos com a tinta escura, cor de bruxa.] Ela deixou o filhinho. … O filhinho mentiu pra mãe. …

Psicóloga: As mães não deviam deixar os filhinhos, né? O filhinho fica até pensando se ele fez alguma coisa de ruim pra mãe ir embora.

Lucas: A mãe também mentiu. Ela enganou ele.

Psicóloga: E o filhinho fica triste. Ele acha que não era pros adultos enganarem as crianças.

Lucas: É, o filhinho ficou triste, viu? Até chorou.

Com relação a este trecho, levantamos a hipótese de haver uma superposição das experiências de rejeição e abandono de Lucas com as introjeções ligadas ao racismo estrutural de nosso país, constituinte da subjetividade e que leva a criança negra a atitudes de autodesprezo: a cor preta é cor de bruxa, cor da maldade. Lucas era um menino preto. Quais alternativas teria de se constituir como alguém possuidor de qualidades e potencialidades? Uma das autoras viveu uma experiência com outra criança, uma menina de 4 anos, branca, de classe média, que às vezes brincava de bandido nas sessões. Para isso, pintava as mãos de preto e dizia: “Preto é cor de bandido”. Crianças de mundos tão distantes, compartilhando representações semelhantes advindas da cultura da branquitude (Souza, 2021). Serão possíveis, na clínica, caminhos para desconstruir essas representações inconscientes tão arraigadas em nossa cultura?

Em busca de um lugar no mundo

No atendimento de Lucas, eram frequentes brincadeiras que se referiam à ideia de ter uma casa, quando ele parecia estar lidando, através do contato íntimo com a psicóloga, com experiências muito primordiais e com a primeira de todas as moradas, o ventre da mãe. Lucas fazia de conta que era um bebê e entrava em sua caixa lúdica, ocasião em que parecia buscar um abrigo dentro da mamãe/psicóloga. Além disso, o paciente costumava fazer descrições imaginativas sobre o interior do corpo da mãe, que aconteciam no contexto lúdico do universo mamãe e filhinho, e eram compreendidas com o colorido afetivo das sessões analíticas.

Trecho 4

Lucas: Na barriga da mãe é escuro, mas acende a luz, porque o coração dela é muito vermelho que ilumina. Depois a gente pede pra ela apagar o coração pra gente dormir de novo.

Ao longo de seu percurso psicanalítico, Lucas passou a encontrar imagens e palavras para compartilhar seu desamparo nas sessões, bem como a construir narrativas sobre as experiências de violência e abandono que sofreu. Era comovente a sua busca por um lugar – na mente da psicóloga e no mundo. Aos poucos, Lucas e a psicóloga foram “construindo uma casa”, um espaço para abrigar a dor, para narrar a sua história, para reconhecer as suas perdas, para viver as turbulências emocionais e, quiçá, para confiar um pouco mais no mundo.

Trecho 5

Lucas: Minha mãe mora longe. [Pausa.] Faz uma casa pra mim [de massinha], bem grandona?

Psicóloga: Faço!

Lucas: É uma casa pra gente morar. Faz ela bem grossa. … Faz uma porta pra gente entrar na casa e uma chave. Faz uma casa grande, do tamanho do mundo, pra gente caber? Você não mora longe, né?

Para Lucas, que ficava “solto” no mundo, sem referências de tempo e espaço, a relação com a psicóloga pareceu se tornar uma espécie de âncora que poderia situá-lo, mesmo em momentos de turbulência, em que ele expressava sua raiva e, por vezes, fugia para longe. Nessas ocasiões, a psicóloga precisava empreender uma longa travessia de busca até minimamente alcançá-lo emocionalmente. Acreditamos que o trabalho com Lucas, desenvolvido ao longo de vários anos, teve uma importância muito grande para a sua vida. Observamos que ele guardou com zelo o contato da psicóloga e a procurava sempre que tinha notícias para compartilhar (tanto boas como ruins). Lucas passou a existir para si e para alguém no mundo. Cabe lembrar aqui a afirmação de Rosa (2018) sobre a importância de a clínica historicizar o sujeito, inseri-lo em uma cadeia de acontecimentos.

Foi necessário ainda ampliar a concepção de setting para que fosse viável atender Lucas dentro da sua realidade, pois as sessões aconteciam onde era possível encontrá-lo (na instituição, na rua, eventualmente no consultório). Esse setting ampliado também remete à concepção de clínica extensa de Herrmann (2003), de uma psicanálise inserida no mundo real, mas que preserva as condições para um encontro de intimidade psíquica em que seja possível realizar observações psicanalíticas.

Perguntamo-nos qual pode ser o alcance da psicanálise para a reconstituição de redes de amparo tão esgarçadas. A psicóloga se deslocou de seu lugar seguro no mundo para buscar e oferecer algum abrigo a esse menino. Junto a ela, ele parece ter podido experimentar a intimidade em que os significados são criados (Meltzer, 1994). Em contrapartida, essa experiência proporcionou à psicóloga o aprendizado de que, como diz Mãe (2012), todos somos responsáveis uns pelos outros. Experiências assim podem nos salvar do risco de cair na solidão de não nos sabermos mais pertencentes uns aos outros – e, quem sabe, podem nos ensinar a “construir casas” do tamanho do mundo!

1Menção honrosa no Prêmio Fábio Leite Lobo, para membros efetivos, conferido durante o 28º Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado de 23 a 26 de março de 2022.

4Estamos chamando de não lugar o espaço, tanto mental/relacional quanto físico – por exemplo, aperiferia das cidades (Bracco, 2018) –, criado apartir de múltiplas exclusões, impedimentos e marginalização do outro.

Referências

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Recebido: 04 de Abril de 2022; Aceito: 18 de Abril de 2022

Denise Zanin denisezanin@gmail.com

Josimara Magro Fernandez de Souza josimfs@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.