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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.2 São Paulo  2022  Epub 19-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n2.06 

Trabalhos do 28° Congresso Brasileiro de Psicanálise

Atravessando a tempestade1: Thomas Ogden, a mente do analista e a função continente do grupo

Cruzando la tempestad: Thomas Ogden, la mente del analista y la función contenedora del grupo

Crossing the storm: Thomas Ogden, the analyst’s mind and the group’s containment role

Traverser la tempête : Thomas Ogden, la pensée de l’analyste et la fonction contenant du groupe

Cibele Maria Moraes Di Battista Brandão2 

Analista didata e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp) e atual presidente do Núcleo de Psicanálise de Marília e Região (Npmr)

Cristiane Castilho Cadan3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Edna Carlos de Souza Cardoso3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Elony Conversano3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Maria Angélica Amorieli Bongiovani4 

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Natalia Martin da Silva3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Olivia Pala Falavina3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Robson Thiago Barbosa Nakagawa3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Rosemari Boer Antonio3 

Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

Wadad Ali Hamad Leoncio4 

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

2Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

3Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

4Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp)


Resumo

Este trabalho é uma reflexão grupal em decorrência da tempestade ocasionada pela pandemia de covid-19. A turbulência produziu inicialmente uma relativa paralisação no seminário eletivo O Pensamento de Thomas Ogden, integrado pela analista didata e pelos membros em formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. O impacto considerado vultoso assolou nosso cotidiano de forma universal. Novas configurações, relacionadas aos meios de comunicação, foram paulatinamente sendo criadas ou reinventadas em meio à tempestade, como as plataformas online. No caso específico desse grupo, o enfrentamento foi suscitado aos poucos, de maneira particular pelo manejo e continência da coordenadora, pela motivação grupal e principalmente pelas ideias do autor Thomas Ogden, tema central do seminário. Vários artigos propostos pela coordenadora seguiram balizando e entrosando, entre a teoria e a técnica, os laços afetivos do grupo. Cada componente, em sua singularidade, experienciou vivências peculiares e angústias diante do novo, devido à diversidade de reações comportamentais, no âmbito do campo analítico e na vida, com a chegada tão inesperada da pandemia. Os autores têm como objetivo apresentar a forma como foi realizada a travessia pela tempestade e também elucidar como a coordenadora (metaforicamente representando uma bússola) pôde, aos poucos, nortear o grupo e dar sequência ao seminário.

Palavras-chave formação psicanalítica; pandemia de covid-19; tempestade; paralisação; travessia

Resumen

El presente trabajo es una reflexión grupal debido a la tempestad ocasionada por la pandemia covid-19. En el seminario electivo El Pensamiento de Thomas Ogden, compuesto por la didacta y miembros en formación por la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo, la turbulencia generó una relativa paralización inicialmente. El impacto considerado vultuoso arrasó de manera universal nuestro cotidiano. Nuevas configuraciones, relativas a los medios de comunicación, fueron gradualmente siendo creadas o reinventadas en medio a las tempestades, como, por ejemplo, las plataformas online. En el caso específico de este grupo, el enfrentamiento fue suscitado progresivamente de manera particular, por el manejo y control de la coordinadora, por la motivación grupal y principalmente por las ideas del autor Thomas Ogden, tema central del seminario electivo. Infinidades de artículos propuestos por la coordinadora siguieron señalando el rumbo y articulando entre teoría y técnica, los lazos afectivos del grupo. Cada integrante, en su singularidad, experimentó vivencias peculiares y angustias delante de lo nuevo, debido a las diversidades de reacciones conductuales, en el ámbito del campo analítico y en la vida, con la llegada tan inesperada de la pandemia. El trabajo tiene como objetivo presentar la forma como fue realizada la travesía de la tempestad y también elucidar en cómo la coordinadora, metafóricamente, representando una brújula, pudo poco a poco orientar el grupo y así dar secuencia al seminario.

Palabras clave formación psicoanalítica; pandemia covid-19; tempestad; paralización; travesía

Abstract

This work is a group reflection which resulted from the storm caused by the covid-19 pandemic. The turbulence at first brought the elective seminar The Thought of Thomas Ogden, composed by the training analyst and participants of the Brazilian Psychoanalysis Society of São Paulo, to a relative standstill. The tremendous impact devastated our daily lives in a universal way. New configurations regarding the media, such as on-line platforms, were gradually created or re-invented amid the storms. In the specific case of this group, coping was gradually stimulated in a particular way by the training analysts management and continence, by the groups motivation, and mainly by the ideas of the author Thomas Ogden, the central topic of the elective seminar. Countless chapters suggested by the training analyst kept on guiding and interlocking the groups affectional bonds between theory and technique. Each participant, in their singularity, had peculiar experiences and suffered from anxieties facing the new, due to the diversity of behavior reactions within the analytical field and in life, with the arrival of the pandemic. The objective of this paper is to show how the storm was crossed, and also to explain how the training analyst, metaphorically representing a compass, was able to, little by little, guide the group, and thus continue the seminar.

Keywords psychoanalytic training; covid-19 pandemic; storm; standstill; crossing

Résumé

Le présent travail est une réflexion de groupe suite à la tempête provoquée par la pandémie de covid-19. La turbulence d’abord a fini par générer une relative paralysie dans le séminaire électif La Pensée de Thomas Ogden, composé par l’analyste didactique et les membres en formation de la Société brésilienne de psychanalyse de São Paulo. L’impact, considéré comme important a ravagé notre vie quotidienne de manière universelle. Au milieu des tempêtes, de nouvelles configurations liées aux moyens de communication, telles que les plateformes en ligne, ont été progressivement créées ou réinventées. Dans le cas spécifique de ce groupe, la confrontation a graduellement été suscitée, en particulier par la gestion et la maîtrise de la coordinatrice, la motivation du groupe et principalement par les idées de l’auteur Thomas Ogden, thème central du séminaire électif. Une infinité d’articles, proposés par la coordinatrice, ont continué balisant et enchaînant entre la théorie et la technique, les liens affectifs du groupe. Chaque composant, dans sa singularité, a vécu des expériences particulières et des angoisses face à la nouveauté, en raison de la diversité de réactions comportementales, dans le cadre du champ analytique et dans la vie, eu égard à l’arrivée inattendue de la pandémie. L’objectif de ce travail, c’est de présenter la manière dont s’est déroulée la traversée de la tempête et, également, d’élucider comment la coordinatrice, (représentant métaphoriquement une boussole), a su, peu à peu, guider le groupe et donner suite au séminaire.

Mots-clés formation psychanalytique; pandémie covid-19; tempête; paralysie; traversée

De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo.

Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.

Fernando Sabino, O encontro marcado

Thomas Ogden é tido como um dos escritores psicanalíticos mais originais da atualidade. Suas ideias e conceitos visam a uma reflexão sobre os modos de ser analista e pensar a psicanálise clínica. Seus artigos abordam a interação das mentes inconscientes de paciente e analista no fenômeno transferência-contratransferência, que gera o terceiro analítico (Ogden, 1996). Essa construção é produzida pelo interjogo dialético das subjetividades individuais da dupla no contexto da análise. O trabalho e a elaboração desses aspectos oferecem experiências potencialmente transformadoras para a dupla. A psicanálise, para o autor, pretende ajudar o analisando a fazer mudanças psicológicas profundas, que possibilitem viver a vida de modo mais plenamente humano (Ogden, 2013).

No primeiro semestre de 2020, um seminário eletivo foi composto no Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, para pensar e ampliar o contato com todas essas questões. Esse seminário previa 16 encontros e propunha o estudo de parte da obra do autor. O seminário formou-se com 12 participantes, sendo eles e a coordenadora os autores deste trabalho.

Começamos o seminário em março e tivemos apenas dois encontros presenciais. O Instituto decretou o encerramento das atividades presenciais devido à pandemia de covid-19. Após três semanas de interrupção, surpresos e impactados, reiniciamos o seminário via internet e assim permanecemos até o fim do semestre. A retomada das conversas foi fundamental para o atravessamento daquele período turbulento e incerto para todos.

As vivências de ruptura ocasionadas pela pandemia não foram poucas: interrupção dos seminários e de outras atividades da formação, dos atendimentos presenciais nos consultórios e de qualquer outro contato propriamente dito em várias situações cotidianas. Todas essas perdas mobilizaram muitas angústias. Além do medo e das dúvidas sobre a doença, tivemos de enfrentar o isolamento social. O confinamento deixou tudo em suspenso e indefinido por algum tempo. Em poucos dias, tudo mudou drasticamente. Nesse contexto, surgiram também as novas e – à época – ainda estranhas formas de nos relacionarmos por meio da tecnologia, junto com as exigências e a dedicação que isso requeria. Retomar as atividades e os atendimentos no consultório, exclusivamente de maneira remota, parecia no início um grande desafio. Dentro desse contexto, podemos fazer uma analogia com o seguinte trecho da obra O nome da rosa, de Umberto Eco: “Onde finalmente se penetra no labirinto, tem-se estranhas visões e, como acontece nos labirintos, fica-se perdido nele” (1980/2003, p. 165).

Ao viver a experiência de sermos retirados da nossa vida comum pela pandemia, fomos colocados em meio a um labirinto, perdidos em incertezas, angústias, medos… Que escuridão! O que fazer? Como estar? Como ser?

No nosso grupo, percebemos vivências emocionais de angústia, aniquilamento, terror, profundo desamparo, falência e medo do colapso diante da ameaça de ruptura dos laços existenciais e da própria vida. Estranhas visões começaram a aparecer no nosso cotidiano. Pela televisão, assistíamos a caminhões que transportavam inúmeras vidas perdidas pela pandemia, covas abertas em série em virtude dos muitos enterros realizados às pressas, sem que os rituais de despedida fossem possíveis. Ouvíamos constantemente o ruído das ambulâncias em nossas cidades. A morte estampou-se diante dos nossos olhos. Continuaríamos vivos, nós e nossos familiares? Como ficariam nossos analisandos? Como ficaríamos enquanto analistas? Nossa formação psicanalítica poderia continuar? Como ficaria nossa sobrevivência em face dos impactos na vida econômica?

A proposta da coordenadora de reagendar os encontros foi bastante importante para todo o grupo, pois atendeu a um desejo não verbal de retomar os seminários, sustentando assim o desejo latente do grupo de dar continuidade à vida. Os nossos seminários foram agendados com antecedência na plataforma online, e os textos a serem discutidos foram enviados previamente pela coordenadora.

O retorno às atividades de formação não foi o mesmo para todos (coordenadores de seminários, analistas, analisandos, supervisores e supervisionandos), pois as condições internas de cada um para se adaptar à nova situação variavam. Nossos planos em relação à formação ficaram ameaçados. Um membro do grupo, por exemplo, ficou muito impactado pela desistência de um paciente cujo caso era fonte de um relatório já em fase final de supervisão. O impacto foi ainda maior quando o supervisor do caso clínico resolveu interromper a supervisão em decorrência de dúvidas e incertezas que experienciava naquele momento, quando da tempestade que invadia toda a instituição psicanalítica. O membro compartilhou a experiência com a coordenadora do grupo e obteve a seguinte resposta:

Obrigada por dividir comigo esse seu momento. De fato nos pegou de surpresa e agora temos que dar um jeito de juntarmos o que temos e irmos em frente. Tente entrar no seminário. Caso você não consiga, não se preocupe. Mas digolhe isso porque foi voz comum que voltarmos tem servido de fonte de renovação de energia, tanto pelo grupo como também pelo assunto. E acabou ficando uma atividade importante para todos nós. Abraços. [Resgate da coordenadora Cibele Brandão a um membro resistente ao retorno em função da tempestade.]

A resposta acolhedora da coordenadora estimulou o colega a retomar as atividades e a renovar o convite para o supervisor e para o paciente. Como desfecho, o supervisor aceitou o convite, e a supervisão pôde continuar. O paciente aceitou experimentar o novo modo de atendimento e pôde continuar nessa modalidade. Percebemos a importância da resposta da coordenadora para gerar esse círculo de vitalização. O que ocorreu com a colega estava ocorrendo também, de modo semelhante, com o grupo. A desvitalização estava sendo elaborada.

O enquadre foi retomado e reconstruído. Instalou-se, de novo e de maneira cuidadosa, um ambiente mais previsível, de constância e continuidade, que contribuiu fortemente para que o caos fosse sendo processado.

A possibilidade de retomar o nosso trabalho nos fez pensar na

representação do início de um processo em que a vivência de desvitalização … estava se transformando de uma coisa em si impensável em experiência viva. … Começara a gerar-se um espaço analítico intersubjetivo, em que a desvitalização podia ser sentida, vista, vivenciada e conversada. … Desvitalização se tornara um sentimento, não mais um fato. (Ogden, 2013, p. 46)

O autor refere-se a algo que se passa no contexto analítico, sendo o conceito de vitalização/desvitalização uma questão central em sua obra. Entendemos que esse conceito não se restringe ao espaço analítico, mas abarca outros espaços que compõem as experiências humanas intra e intersubjetivas, como a nossa própria vivência grupal e cotidiana.

A volta dos encontros semanais no mesmo horário e das discussões, além da permanência de todos os colegas, gestou a possibilidade de retomar a esperança e a manutenção da vitalização, bem como os próprios laços em si.

Ao mesmo tempo, a modalidade online passou a provocar novos impasses. Será que conseguiríamos trabalhar desse modo, tão longe uns dos outros e, ao mesmo tempo, tão perto? Tão pequeninos que ficaríamos “dentro de uma tela”? Em outros momentos, éramos tomados por outras impressões: como grupo, apoiados pela disponibilidade da coordenadora e amparados pela obra de Thomas Ogden, sentíamos que não só estávamos sobrevivendo, mas que nossos pensamentos, discussões e trocas estavam criando condições de conter, elaborar e transformar nossas experiências de dor. Continuávamos a sonhar os sonhos que pareciam ter sido interrompidos. Em nossa clínica, agora também de modo virtual, podíamos penetrar no labirinto com nossos pacientes e, juntos, criar saídas emocionais de continência.

O constante fluxo da experiência vivenciada entre os componentes do grupo e a coordenadora, por meio dos textos estudados, passou a promover compreensões que só puderam ser produzidas através desse espaço e dessa interação.

Ogden assim define a expressão terceiro analítico intersubjetivo: “Compreendo-o como uma experiência em evolução, em fluxo constante, na medida em que a intersubjetividade do processo analítico é transformada pelas compreensões geradas pelo par analítico” (2013, p. 43).

Nós não estávamos numa situação analítica, mas todos os componentes (cada um com sua forma individual, peculiar e espontânea) traziam experiências advindas dessa relação, de modo que a vitalidade, o sonho, as associações e suas transformações eram evidentes a cada encontro.

O grupo transformou-se numa rede para suportar esses momentos de tamanha descontinuidade. Ao longo do tempo, notamos que se criou um espaço para a troca de momentos de tristeza e de certo estado depressivo. Pela obra de Ogden, que abordava conteúdos em sintonia com o que estávamos vivendo, construíamos uma atividade de estudo conjunto, que nos fez retomar a capacidade de pensamento e desenvolvimento e manter um espaço intersubjetivo vivo. Pode-se dizer que esse “fazer junto”, de modo cooperativo e empático, deu origem a um verdadeiro grupo de trabalho (Bion, 1961/1975).

Vários participantes do grupo começaram a relatar como era imprescindível esse acontecimento semanal agendado. Durante a semana, era algo esperado e ansiado em virtude do próprio estímulo que a obra de Ogden nos despertava naquele momento tão turbulento.

Seguem palavras de alguns membros do grupo, as quais evidenciam a assimilação de conceitos de Thomas Ogden e a utilização deles em sua vivência cotidiana:

Entre o tempo de o feijão ficar pronto e a hora do almoço, sento para ler meu texto do seminário, o único que permaneceu durante a pandemia. Aprendo sobre sustentar.

Mergulho nos artigos escolhidos de Ogden, desfruto de sua escrita e passeio pela sequência escolhida com primor. Mantenho meu apetite pela psicanálise. Aprendo sobre vitalização.

Depois do almoço, passo o café e dou uma passada final também no setting para o encontro: caderno, caneta, anotações, água e o tal do café. A conexão está boa hoje. Esteve boa durante todo o semestre. Aprendo sobre Bion e bons grupos de trabalho.

Recebo a notícia de que mais uma pessoa da minha família está com covid. É a terceira. Espero que não precise ser internada também, torço para que se cure como os outros. Aprendo sobre tentar sonhar pesadelos.

Durante um atendimento com uma paciente anoréxica, me pego observando a vizinha da frente fazendo flexões. Como ela é hábil e forte! Parece saber exatamente o que faz. Penso que estou distraída. Não, espera. Aprendo sobre reverie.

Quando o seminário termina, depois do feijão, do almoço e do café, corro para a cozinha de novo. Preciso adiantar essa louça na pia. Enquanto lavo e esfrego, pego emprestado o comentário de uma colega que me ajudou a pensar mais profundamente uma questão clínica. Aprendo sobre o que é verdadeiro, e não importa de quem foi a ideia.

Pelo WhatsApp, recebo fotos de um paciente que quer me mostrar sua maquete feita com papelão, pedras e caixas de leite. Fico estarrecida com sua habilidade manual e respondo impulsivamente: “Muito lindo!”. Aprendo sobre o meu estilo analítico.

Outro dia, atendendo a um paciente por vídeo, direcionei meu olhar para os livros que serviam de apoio para o celular. Lá estavam Leituras criativas, Essa arte da psicanálise, Reverie e interpretação. Muito obrigada pelo que aprendi!

Outra integrante destacou:

Quando eu via toda a bibliografia de Ogden, o grupo discutindo e se organizando novamente de forma viva, decidi permanecer, mesmo sentindo as perdas inerentes a esse momento, mas tentando fazer o meu possível dentro do contexto.

Todos os textos lidos me tocaram em algum ponto. Quando lemos o texto “Sobre sustentar e conter, sentir e sonhar”, de Ogden (2010), consegui sentir um certo alívio interno. Foi tão bom fazer essa leitura. Várias passagens me remeteram a mim enquanto mãe, ao meu filho e a tudo o que estamos construindo juntos, que só existe nessa relação. É único, é nosso, dessa dupla.

Em alguns momentos juntos, penso em como estamos crescendo. Sentia-me, sem me dar conta na época, tendo a condição de sustentar aquele “ser” (meu bebê) no tempo em que ele precisava. Essa lembrança me remeteu ao conceito de holding, de Winnicott (1956), citado por Ogden (2010) como o processo vivo de continuidade do ser, tendo muito a ver com a construção da condição de conter.

E, com certeza, esse grupo de trabalho também exerceu a função de holding para mim, trazendo muito mais sentido e significado para a minha clínica e para o meu mundo interno, sendo possível estar mais viva.

Por sua vez, outra participante observou:

Em pouco tempo, o coronavírus atravessou o Atlântico e logo bateu em nossa porta. Ficou marcado para mim o dia em que, tendo sido decretado o isolamento na cidade, deixei o consultório, pois vivi muitas incertezas. Uma delas era não saber se um dia eu ali regressaria. Naquele momento, tudo se passou como numa cena de filme. Lembrei-me dos tempos das grandes guerras mundiais, em que as pessoas viam sua vida sendo devastada.

Lembrei-me de que a psicanálise sobreviveu às guerras, e isso me ajudou a pensar que existia certa potência nela que favorecia a sua sustentação. Para minha surpresa – e, por que não dizer, alívio -, fui percebendo que também estávamos formando um grupo, assim como um exército, para enfrentar esse inimigo invisível.

Rapidamente fomos nos amparando uns nos outros e organizamos uma rede de ajuda que pudesse manter vivo o nosso trabalho analítico. Isso era a prova de que podíamos contar com os instrumentos que a psicanálise nos oferecia. Não foi assim que a psicanálise sempre atuou em momentos de crise, mantendo o diálogo com a sociedade e não se isentando de lidar com as dificuldades e possíveis saídas a serem criadas? Eu lia os textos, ávida por aprender com Ogden e com os colegas. Sua presença marcante através do seu pensamento profundo conversava comigo naquelas horas angustiantes e não me deixava perder de vista aquilo com o que eu tinha de lidar e que se mantém na essência da psicanálise, ou seja, tudo o que faz parte do humano: os medos, as angústias, a tristeza – e, por que não, a alegria, a criatividade e o sonhar.

Tal experiência ajudou-me a buscar novas maneiras para enfrentar essa realidade e prosseguir no meu trabalho, querendo manter o espaço reflexivo e o laço afetivo que, juntos, fomos construindo passo a passo.

Freud ressalta que “cada indivíduo é um componente de muitos grupos, tem múltiplos laços por identificação. Assim, cada indivíduo participa da alma de muitos grupos e pode também erguer-se além disso, atingindo um quê de independência e originalidade” (1921/2011, p. 92).

Nesse sentido, pudemos notar que a experiência silenciosa de cada participante do grupo à espera do retorno do nosso trabalho, bem como de todas as trocas interpessoais advindas dele, juntamente com o espírito de liderança demonstrado pela coordenadora, possibilitou que pensássemos em nossa mente grupal e na capacidade criativa operando continuamente. A questão destacada por Freud também promove reflexões a respeito da nossa experiência, visto que cada integrante atribuía ao próprio grupo o estímulo gerador da criatividade e das transformações vivenciadas. Assim, observamos que o que nutre o analista para viver períodos com tantas exigências, sem perder sua capacidade de sonhar, seria também a vivência grupal.

Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud afirma:

Primeiro, que evidentemente a massa se mantém unida graças a algum poder. Mas a que poder deveríamos atribuir esse feito senão a Eros, que mantém unido tudo o que há no mundo? Segundo, que temos a impressão, se o indivíduo abandona sua peculiaridade na massa e permite que os outros o sugestionem, que ele o faz porque existe nele uma necessidade de estar de acordo e não em oposição a eles, talvez, então, “por amor a eles”. (1921/2011, p. 45)

A seguir, apresentamos uma experiência clínica no atendimento de uma criança durante a pandemia, realizado por outra participante do grupo.

T tem 10 anos e sofre de síndrome de Tourette. Está em atendimento psicanalítico, com frequência de três sessões semanais, desde fevereiro de 2019. Segundo os pais, o menino, desde pequeno, apresenta comportamento agressivo, o que dificulta a sua socialização e adaptação à escola. Teve uma interrupção do atendimento presencial, durante a pandemia, por 15 dias. Foi oferecido atendimento online, e pôde recomeçar nessa modalidade, na época, com os sintomas muito intensificados. A criança apresentava vários tiques motores e verbais. Sua intolerância à frustração havia aumentado bastante. Com a retomada, em algumas semanas percebeu-se uma diminuição dos tiques, mas com o tempo a analista notou que T estava muito intolerante e agressivo. Ele ficou aliviado ao ver a analista, online, após a interrupção dos atendimentos. No primeiro dia, no início da sessão, pediu que a analista sugerisse algo que ele e os pais pudessem fazer juntos para se divertirem. Quando lhe foi questionado o que poderia ser, T respondeu que poderia ser um jogo que eles pudessem jogar juntos, um desenho que eles pudessem fazer ou alguma brincadeira. A analista lhe disse que, uma vez que teve essas ideias todas, talvez ele mesmo pudesse fazer o que estava pensando. Logo em seguida, ele pergunta para a analista se já assistiu ao filme da Annabelle. A analista responde que não, mas que ele pode falar sobre o filme se quiser. T diz que é de terror e que Annabelle fica possuída por um espírito, o qual manda matar o pai, a mãe e os amigos. T pareceu estar aterrorizado. A analista diz para T que talvez esteja com muito medo da covid. Ele responde que não. Começa a falar de vários personagens vilões, muito maus, depois de personagens heróis, e depois de mais vilões. A analista percebe que T está com um conflito de muita ambivalência, conflitos edípicos e incremento da agressividade. A criança se queixa da tristeza de não ir ao consultório, de não ir à escola, de não poder passear, ver os colegas da escola e os seus brinquedos do consultório. Em outra sessão, T fala da mãe, que sai para fazer compras e não volta, e ele pensa que a covid a matou, ficando muito desesperado e aflito. A analista pensa na tristeza que ela tem vivido por tudo o que está acontecendo. Em outra sessão, T fala do quanto a vida está cheia de tédio. Os pais se queixam de ele querer ficar só jogando. Acham que ele está ficando obcecado com o jogo. Passa a ser muito agressivo. Quando tentam retirar o celular dele, reage agredindo fisicamente o pai. Nas sessões, T passa a jogar também. Pedia o auxílio da analista para acabar com os monstros. Por não saber nada sobre o jogo que T jogava, a analista tentava pesquisar para conhecer mais. T ficava muito aborrecido por ela não saber. Queria que tivesse as respostas na ponta da língua. A analista falava do quanto era difícil tolerar o não saber. Como queria que ela pudesse saber e dar respostas a tudo! Era difícil ver que ele não sabe, que a analista não sabe e que os pais também não sabem. Ele estava sempre querendo jogar um jogo que tinha monstros, e o que ele dizia era tudo muito fragmentado. Jogava nas sessões e queria jogar nas aulas. Os pais interferiram e disseram que ele não ia poder usar o computador como castigo por tê-lo usado, sem permissão, para jogar nas aulas. A analista pensou que acabar com os monstros podia ter a ver com acabar com a covid e com os monstros dentro dele, que ameaçavam matar seus objetos amorosos. A analista pensava no quanto ele queria ter e sentir que tinha potência e força para acabar com os monstros, sobrevivendo junto com seus amados. A analista se lembrava do medo e da aflição que teve ao se sentir em perigo de morte, junto com a sua família, assim como se sentiu também em vários momentos da sua vida. Pensa nos sentimentos de raiva e de desespero. Passa a acompanhar melhor o jogo de T e deixa de lado qualquer ideia sobre vício e obsessão. Tenta entender, junto com uma supervisora, o que T pode estar expressando em todas as ações comunicativas (sua fala, seus gestos) e o que isso mobiliza na analista. Começa a notar que T passa a narrar o jogo para ela. A analista se propõe a ajudar T no jogo, a pesquisar se ele não souber de algo. Fica sabendo que o nome do jogo é Minecraft e que ele tem um modo sobrevivência. Numa sessão, T diz: “Vou criar um mundo novo”. A analista percebe o quanto é importante o jogo para comunicar algo sobre as vivências de T. Pensa sobre quantos de nós não gostariam de criar um mundo novo. O tempo todo, o personagem escolhido por ele precisa lutar para não morrer. A luta envolve ter alimento, casa segura e ferramentas e matar monstros. A analista se dá conta do quanto esse jogo tem a ver com a luta nossa de todo dia, de homens e mulheres, para garantir a vida. Conversa com T sobre isso. Depois, conversa com os pais sobre o quanto está sendo necessário ele ter essa vivência ativa de se sentir cada vez com mais com recursos para não morrer no jogo e para se proteger dos monstros, e diz que ele precisa se sentir forte e potente para viver neste mundo e lidar com suas angústias de morte. No jogo, ele pode morrer, o mundo acabar e recomeçar tudo de novo. A agressividade de T tem diminuído bastante, e ele tem se mostrado muito mais feliz com os pais. Recentemente, fez um desenho do que seria o quarto dele e o dos pais, separados por uma porta. Num nível mais profundo, a analista pensa que está havendo melhor aceitação da exclusão e que ele está podendo elaborar os conflitos edípicos.

Considerações finais

Consideramos que foram fundamentais essa experiência do grupo e o estudo dos textos de Ogden para cada participante. Através desse processo de coesão grupal, foi possível dar sequência ao trabalho clínico e às demais atividades relacionadas à formação psicanalítica, que estavam sendo realizados em condições extraordinárias. Assim, mantivemos a capacidade de sustentar, conter, sentir e sonhar. Os laços entre os membros do grupo, a coordenadora e as ideias de Ogden proporcionaram continência para criarmos as ferramentas necessárias, dando continuidade aos pensamentos e atitudes criativos e férteis.

A psicanálise, em sua essência, torna-se um grande laço, que nós, em intimidade, atribuímos a Eros. Vem do nosso ofício, que entrelaça teoria, técnica e prática no dia a dia com nossos pacientes, e vem das relações de todo o contexto em que estamos inseridos. A psicanálise contribui para termos um contato íntimo com o sentir, o pensar e o agir. Nosso trabalho dá sentido ao nosso viver. Identificados uns com os outros e acolhidos uns pelos outros e pela coordenadora, sentimo-nos fortalecidos para a travessia da tempestade.

1Menção honrosa no Prêmio João Bosco Calábria Oliveira, para membros filiados, conferido durante o 28º Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado de 23 a 26 de março de 2022.

Referências

Bion, W. R. (1975). Experiências com grupos (W. I. Oliveira, Trad.). Imago. (Trabalho original publicado em 1961) [ Links ]

Eco, U. (2003). O nome da rosa (A. F. Bernardini & H. F. Andrade, Trads.). O Globo. (Trabalho original publicado em 1980) [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921) [ Links ]

Ogden, T H. (1996). Os sujeitos da psicanálise (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. [ Links ]

Ogden, T. H. (2010). Sobre sustentar e conter, sentir e sonhar. In T. H. Ogden, Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos (D. Bueno, Trad., pp. 17-38). Artmed. [ Links ]

Ogden, T. H. (2013). Reverie e interpretação: captando algo humano (T. M. Zalcberg, Trad.). Escuta. [ Links ]

Recebido: 04 de Abril de 2022; Aceito: 18 de Abril de 2022

Cibele Maria Moraes Di Battista Brandão cibelebrandao@cibelebrandao.com.br

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