A tortura pressupõe, exige e anseia a revogação de nossa capacidade de imaginar outros sofrendo, desumanizá-los tanto que a sua dor não seja a nossa dor. A tortura exige isso do torturador colocando a vítima fora e além de qualquer forma de compaixão ou empatia, e exige dos outros mais distantes a mesma dormência.
Ariel Dorfman
Iniciar a narrativa pelo ponto que me situa envolvida tem seus riscos, mas penso que a experiência e o sentimento são o único ponto a partir do qual uma abordagem psicanalítica pode se dar. A reverberação dentro de mim de cenas que envolvem crueldade, tortura, completa desconsideração pela humanidade do outro e seus desdobramentos me levou a refletir sobre a compaixão, que numa primeira formulação se apresenta como estado de abertura ao sofrimento do outro, abertura a um corpo que sofre e à alma que paradoxalmente se vê aprisionada em estilhaçamento, contínua fonte de terror e horror, matriz dos fantasmas de morte, psíquica e física.
Sentada diante da televisão, ouço e vejo notícias do dia. Mais um dia de guerra. Já é o 20º. Tomada de horror e indignação, vejo cenas de barbárie. Cidades devastadas, frio rigoroso, neve cruel para quem não tem mais casa nem qualquer outro abrigo, crianças no colo de mães exasperadas para dar guarda e salvar seus filhos, carregadas de malas e mochilas, gente idosa com dificuldade de locomoção obrigada a transportar o que lhe é essencial, além de seus pequenos animais domésticos, para quem eles são essenciais, pois há até pouco tempo lhes garantiam o reconhecimento do amor e da compaixão vivos dentro de si. Esses animais, seres vivos, vão junto ao essencial, talvez por extrema necessidade dos humanos de evitar sentimento de culpa e vergonha, consequência do desmoronamento da compaixão.
Assim, carregam a compaixão, todos exasperados, com medo, aterrorizados, tentando fugir dos incessantes ataques por terra e por ar – executados com armas ultramodernas, produtos do desenvolvimento tecnológico -, na busca de algum abrigo que lhes garanta a continuidade da vida. Vejo gente vítima de uma violência que insiste em se disseminar por meio de formas eloquentes de crueldade, que alcançam todos os redutos da vida e inscrevem a todos nos frágeis limites que separam os espaços sagrados da vida e da morte, implantando radical insegurança e desesperança. Converso com amigos, colegas, parentes e vejo que o medo instaurado em todos nós passa a ser um estilo de vida, colocando-se a questão: como se propor a lutar por uma vida ética, na qual haja reconciliação entre o que temos em nós de mais sombrio e a necessidade de manter viva nossa compaixão pelo humano?
Percebo que estar viva é, de certa forma, depender da participação em processos internos contra os quais não temos como nos isentar e com os quais somos por vezes instados a colaborar.
Na vã tentativa de encontrar sentido e compreender mais profundamente o que se passa dentro e fora de mim, bem como o que se passa com pessoas que participam e provocam barbárie, recorro à etimologia da palavra compaixão. Mesmo sabendo da frágil resposta ao que me aflige, procuro aquilo que de imediato me parece ser estímulo para algum pensar.
A palavra compaixão vem do latim compassio, que significa o ato de partilhar o sofrimento de outra pessoa. Sentir compassio é ter a capacidade de se colocar no sapato do outro que está sofrendo, compreendendo a necessidade e a dor do outro. A palavra compassio vem da raiz compatior, que significa “ter compaixão, poder se compadecer de alguém.
Creio ser interessante ir um pouco mais fundo na etimologia e destacar o fato de que compassio é a junção das palavras cum e patior. Cum significa “companhia”, “junto com” ou ainda “ao mesmo tempo que”. O verbo patior significa “sofrer ou aguentar alguma situação dolorosa”.
Levando em conta esses pequenos desdobramentos da linguagem, eu me dou conta da continuação, dentro de mim, da exigência de buscar a minha verdade, ainda que a saiba relativa à minha singularidade, e portanto limitada.
Reflexões foram se desfraldando. A primeira dizia respeito a uma lembrança dos escritos de Hannah Arendt, autora que distingue a compaixão em área privada daquela que se dá em área política, mas afirmando que é a condição de encontro com a compaixão em área privada que dá sustentação à que se desdobra no campo social. Os governos fascistas, totalitários, muitas vezes responsáveis por extermínios em massa, tratam os homens como coisas e são conduzidos por seres que não são nem psicopatas, nem monstruosos, nem perversos. O mal está neles, sem que haja nenhum sinal de perversão. A tese que Arendt propõe é de que esses sujeitos, em seus inícios, nunca puderam estar sustentados e/ou ancorados na compaixão, e portanto suas necessidades e dores jamais receberam atenção e/ou cuidado. No entanto, essa tese não se sustenta se observarmos a história da infância deles, que foi sim bem cuidada e atendida.
Não faltou vigor ao discurso psicanalítico, que desde sempre buscou discutir com agudeza e rigor as questões do amor e da violência. Freud já descrevia o terrífico cenário da barbárie. No trabalho “Reflexões para os tempos de guerra e morte”, ele é contundente ao dizer:
O indivíduo que não é combatente sente-se confuso na sua orientação, e inibido nos seus poderes e atividades. Duas coisas nesta guerra suscitaram nosso sentimento de desilusão: a baixa moralidade demonstrada exteriormente pelas nações que nas relações internas se exibem como guardiãs dos padrões morais e a brutalidade mostrada por indivíduos que, como participantes da mais elevada civilização, não se esperaria que fossem capazes de tal comportamento. Então, a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu e trouxe a desilusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer guerra de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa; é pelo menos tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido. Esmaga com fúria cega tudo que surge em seu caminho, como se, após seu término, não mais fosse haver nem futuro nem paz entre os homens. Corta todos os laços comuns entre os povos contendores, e ameaça deixar um legado de exacerbação que tornará impossível, durante muito tempo qualquer renovação desses laços. (1915/1974b, p. 315)
Assim, pode-se dizer que Freud foi o primeiro a avaliar o alcance da falta de compaixão presente em diferentes graus na sexualidade humana. Na obra O mal-estar na civilização (1930/1974a), em que enunciou o conceito de pulsão de destruição, sadismo e masoquismo foram delineados e passaram a ser representantes da destruição e da autodestruição. Todo o trabalho teórico de Freud caminhava, a partir daí, para as formulações decorrentes da desintricação da pulsão de morte da pulsão de vida, acrescentando-se que essa defusão se caracteriza por diferentes atos de agressão, crueldade e autoagressão e pela expressão do que há de mais primitivo em nós.
Roudinesco (2008) é enfática ao afirmar que nenhuma crueldade é pensável sem a instauração de interditos fundamentais. Se há um interdito, é porque o elemento sombrio é desejável. Liga-se a uma exigência pulsional, com toda a intensidade que isso envolve, e se faz presente no ódio de si, na fascinação pela morte, no anseio pelo gozo ilimitado. A crueldade e a ausência de compaixão nos defrontam com uma clivagem diante da qual, frequentemente, usamos bodes expiatórios, que mostram em seus atos as tendências inconfessáveis que nos habitam. Outras vezes, a dissociação interna é de tal amplitude que funcionamos como se fôssemos duas pessoas distintas. Se existe uma parte em nós com alguma consciência da situação, ela se mantém inoperante, pois não tem nenhuma ascendência sobre a outra parte, aquela que atua a partir da pressão do instinto mais primitivo.
Sejam sublimes quando se voltam para a arte, a criação ou a mística, sejam abjetos quando se entregam às suas pulsões assassinas, os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, parte obscura de nós mesmos. (Roudinesco, 2008, p. 13)
Levinas propõe que a face humana é possibilidade de resposta para esse dilema. Enfatiza que há um senso ético inscrito em nós através de nossa experiência com o outro, aquele que tem em relação a nós uma face expressiva. Essa necessidade se expressa por meio de nossa vulnerabilidade, que é um apelo infinito ao outro – outro que também chama por nossa resposta. O ser humano é sempre necessitado e, portanto, está em contínuo risco. Necessitamos dos outros, e esse algo de que necessitamos é o que também buscamos dar (Ouaknin, 1992).
Almejamos o encontro com um humano que não conhecemos. Seu rosto não é algo que se conhece a partir da visão, pois esta pode se transformar em estreitamento. Trata-se de um encontro que se abre para o infinito, convidando ao movimento. Nenhum desses elementos pode se esgotar. O apelo por outra parte está em outro lugar. É um apelo universal, entranhado na experiência -um apelo imediato que é a própria experiência. Esse apelo íntimo está inscrito em nosso olhar, ouvir, imaginar e sentir o nosso corpo. É isso que impele a vida para além da destruição. Esse é um acontecimento/encontro que traz um sorriso para o coração e a face, um sorriso espontâneo em resposta ao outro vivo e expressivo. É essa face do outro que possibilita a hospitalidade no mundo.
Quanto à doação, ela diz respeito a um transitar por sentimentos, disponibilizar as vivências necessitadas pelo outro e úteis para ele, não havendo quem possa substituir a singular doação daquele que foi canibalizado e no qual houve um mergulho.
A experiência de infinito encarnado e imediato como resposta à face materna constitui a possibilidade de desenvolvimento de ambos. Trata-se de um abraço paradoxal, que sustenta dentro de si uma distância, uma íntima distância, que anseia por respeito e cuidado. Essas necessidades e buscas primárias ainda não são suficientes para compreender a prevalência da crueldade sobre outros impulsos.
Outro aspecto diz respeito à falta de compaixão, que pode se manifestar em atos de crueldade consigo e fora de si. A compaixão é frequentemente ignorada por aqueles que carecem da tolerância necessária à frustração para fazer dialogar dentro de si aspectos cindidos.
Nessas personalidades, os fragmentos internos habitam realidades distintas sem que um aspecto se beneficie do outro. O analista imerso nessa situação se vê tendo que operar em uma dimensão que não é a das neuroses, com interpretação de material reprimido. Ele passa a se sentir convocado a sustentar as transformações que não alcançaram representação e a oferecer significado ao universo prevalentemente alucinado/fantasioso. Uso o termo fantasioso no sentido que Winnicott (1971/1975) atribui ao termo fantasing. A atenção do analista precisa se dirigir aos elementos primitivos, projeções que até então não encontraram um continente que pudesse lhes dar sentido e que habitam uma mente fragmentada, incapaz de percepção e/ou de integração. É frequente a presença de engessamento do movimento psíquico, uma forma falsa de autocura caracterizada pela ausência das oscilações vitais, pois não há onde mantê-las, nem como expulsá-las. Em consequência dessa rigidez se presentificam na mente estados fascistas, cruéis, sem nenhuma compaixão pela verdade de si e sem possibilidade de uma oscilação interior, na qual um aspecto pode, pela convivência e pela intimidade com sua verdade, influenciar e enriquecer o outro.
A escolha pela vertente sombria, sem compaixão, constituída pela extrema busca de sua realização destruidora, se fundamenta na adoção de regras que eliminam qualquer potência que impeça sua realização. Esse aspecto se liga a todo tipo de perversão, inclusive àquela que não se limita ao sexual. A presença de um superego cruel e as consequências de suas exigências internas e externas impõem várias formas de flagelo e falta de empatia pela condição humana de si e/ou do outro.
Podemos pensar num exemplo ligado a um paradoxo. Um sujeito que, não sendo brutal, se sente sendo nada, ninguém, vazio. Prevalece nele o temor de perder a dependência da brutalidade e deixar de se sentir vivo. Algo próximo dos homens-bomba, atraídos por dois pontos que se combinam: um flash de brutalidade e a plenitude de uma doação de si. Esses dois pontos reproduzem internamente uma turbulência comparável à de um acelerador de partículas que opera a partir de intensidade afetiva, com partículas densas colidindo entre si. Está, desse modo, estabelecido o obstáculo para que qualquer compaixão de si ou do outro surja. Até aquela compaixão necessária para proteger a si mesmo é abandonada.
Outra possibilidade diz respeito ao fato de que elementos internos podem se tornar claustrofóbicos. Passamos a nos sentir enclausurados pelo mundo que construímos e, quando isso se dá, a destrutividade interna e externa parece liberdade. Precisamos destruir o que criamos para escapar do aprisionamento estabelecido por nossa criatividade.
Para Melanie Klein, a agressão, expressão da pulsão de morte, está nos registros primordiais, em que se inscrevem os fantasmas fundamentais do infante, descritos por ela meticulosamente. O modelo é sempre o da relação mãe-bebê, e o contexto é o da tolerância ou intolerância à angustia inevitável ligada à potência pulsional. A agressividade se produz no psiquismo como forma primordial de defesa contra o possível e temível retorno da fragmentação. A tolerância à dualidade de pulsão de vida e pulsão de morte, com seus desdobramentos em angústia, é o elemento responsável pela transformação dos atos em representação.
Usando e expandindo muitos dos conceitos introduzidos por Klein, Bion destaca a importância das transformações, de projeções carregadas de violência em algo que possa ser pensado e digerido, sendo esse o início dos processos de simbolização, elemento importante para o desenvolvimento do ego e o alcance da expansão psíquica. Bion foi o analista que mais claramente enfatizou a necessidade da fé e da compaixão para o exercício da função analítica, que envolve a experiência vívida da correlação de elementos como função alfa, reverie, compaixão, ser e at-one-ment.
A possibilidade de compaixão do analista é mencionada como fundamental para o exercício da função analítica e imprescindível para aqueles que estão longe de experimentar algo parecido, por jamais terem encontrado alguém que os ajudasse a sair da dimensão sensorial e/ou concreta em que prevalecem nossas paixões mais primitivas.
Neste trabalho não será possível desdobrar e aprofundar todos os aspectos envolvidos nesses elementos, dada a riqueza que existe neles.
A impossibilidade de alcançar o pensar e transformar projeções violentas através de reverie impede a percepção do outro, que passa a existir apenas para prover necessidades, expectativas e desejos. O outro passa a ser visto e vivido como algo indefinido e vago. Aprisionado nesse universo, o sujeito carece de condição de mudança devido à profunda clivagem que mantém aspectos seus vivendo em diferentes dimensões do mundo interno, sem que estas se intercomuniquem. A compaixão, que depende da empatia com o outro e do reconhecimento de si com a sua verdade, não é experienciada, e em seu lugar vicejam mecanismos de defesa.
Bion alerta: “Caso prevaleçam os instintos de vida em uma personalidade, orgulho se torna respeito a si mesmo; quando prevalecem instintos de morte, orgulho torna-se arrogância” (1967/2022, p. 122).
Winnicott, por sua vez, introduziu a noção de amadurecimento e apontou a compaixão como uma capacidade a ser alcançada através das tarefas que o viver nos convida a realizar. Poder estar concernido/ter compaixão por si e pelo outro depende de um complexo trajeto de múltiplas experiências, principalmente dos destinos dos estados de excitação que podem se fazer presentes de forma agressiva ou impetuosa, e que na concepção winnicottiana existem desde o início da vida, constituindo uma expressão de força vital. A imaturidade do bebê impede que se importe com o efeito de seus impulsos em si e no outro e se sinta concernido/responsável pelas consequências de seus atos. A agressividade nesse período, anterior ao estabelecimento de unidade, permite que o bebê se sinta em relação com o objeto, mas ainda não responsável por seus impulsos.
Faz parte do amor primitivo estar colorido com as tintas da crueldade. Parte do movimento desse amor primeiro se traduz em atividade e criatividade, e ainda se configura dentro desse encontro a possibilidade de expressão do ódio como pertencente à ambivalência humana. A expressão dessa agressividade é fundamental. Se essa agressividade se perder nesse estágio primitivo, ocorrerá também a perda da capacidade de amar e de se relacionar com objetos.
A passagem do amor impiedoso para a capacidade de concernimento e para o poder sentir responsabilidade sobre o que se passa dentro e fora de mim e quais são as consequências no outro a partir do que sinto e realizo se fundamenta em elementos primitivos, como tendências que precisam se realizar. A partir de estados de excitação, e da consequente integração de força de ego, vai sendo alcançada a capacidade de experimentar preocupação e concernimento. A culpa não está presente e não é ela que move em direção ao concernimento. Nesse espaço está presente a gratidão e a potência. Realiza-se a passagem da ética da sobrevivência para a ética da criação pessoal do sentido da vida, espaço em que predominam o respeito e a compaixão, e a força passa a ser utilizada para cuidar de si e do outro.
O reconhecimento da alteridade abre espaço para a conquista do sentimento de culpa e o desejo de reparação, que se expressa transformado em compaixão. A criança passa a fazer parte do mundo, não mais submetida à ordem materna, em um mundo subjetivo no qual suas necessidades são atendidas; passa a se relacionar com um horizonte mais amplo e mais complexo, agora mais ligada a uma ordem de família, dando-se conta com mais precisão de relações internas que determinam consequências para si mesma e para o outro. A percepção do seu incompadecimento anterior se faz presente enquanto a compaixão se fortalece.
Nessa passagem, que envolve um tipo particular de relação com a mãe, se estabelece o alicerce para que a compaixão exista e se expresse de modo pessoal no entre das relações humanas.
Para Winnicott, a conquista dessa capacidade não decorre da interdição paterna sobre o desejo incestuoso e agressivo, e sim da atitude amorosa da mãe, que através de pequenas desilusões e apresentações miúdas do mundo vai mostrando que é independente e não retalha a agressão sentida, sobrevivendo amorosamente.
Nessa concepção, a capacidade de empatia e compaixão constitui uma tendência da natureza humana, que se manifesta quando se estabelece o fluir no self e a identidade se compõe de um ir adiante em vez de romper ou se recolher. É nessa perspectiva que Winnicott declara confiar mais no amor do que na educação para o desenvolvimento da compaixão.
O que garante a substância dessa experiência depende do que nos acontece e também do destino que damos a esse acontecer. Precisamos conviver com o paradoxo de nos preocuparmos conosco e com o outro quando nos damos conta de que não há mais nada a fazer.
A necessidade da presença que sustenta e contribui, a partir de adaptação ao percurso, precisa ser empreendida a partir da verdade, da fé, da confiança e da esperança, para alcançar as experiências que possibilitam o convívio com a própria verdade, seja ela qual for, constituindo ponto de apoio para um viver e sentir que a vida vale a pena.
Apesar de tantas contribuições, ainda prevalecem em relação à compaixão os desafios impostos por nossa ambivalência. Uma questão apresentada por Eigen (2014) reforça o impasse que enfrentamos continuamente: de onde vem a ideia de que podemos cuidar da paz quando seres humanos são tratados como fins, em um mundo permeado pela necessidade de sobrevivência, fato que frequentemente se antagoniza com o anseio por poder? Esse impasse representa nosso mundo interno. Somos nós.
Muitas vezes, ampliamos nosso conhecimento teórico, mas deixamos de estar atentos às nossas próprias vivências emocionais. Sabemos como infligir machucados e ler a dor que causamos ao outro que está diante de nós. Sabemos desviar o inimigo, o estrangeiro, e também destruir o íntimo. Somos uma espécie abusiva, um grupo de seres vivos infligidores de dor, mas sabemos também o que precisamos para suportar a vida. Sabemos aquilo que necessitamos que esteja em nós, que nos atravesse enquanto ajuda e torne possível suportar a vida que se concentra em nossa singularidade, com toda a incoerência, transformação, espanto e verdade que isso inclui.
A clínica psicanalítica está diante da constante tarefa de buscar em si aquilo que torna fecunda a arte de “cair em si” para se reencontrar com o compadecimento. Na clínica psicanalítica, o ponto fundamental do vínculo com o outro confronta, sustenta e trabalha com a destrutividade entre os humanos, e questiona como um ser humano pode sobreviver ao outro e a si mesmo e de que maneira realiza esse desafiador percurso.
Na relação analítica são inevitáveis momentos que envolvem destruição. Eu destruo você, e você me destrói. Isso diz respeito à experiência e à capacidade de suportar a experiência. Destruir o outro, sobreviver ao ser atacado e poder incluir a compaixão nessa clareira não significa abolir do homem aquilo que marca sua ontologia. Não é possível “curar a vida”, mas deixar se contaminar por ela é enriquecedor. Isso significa crescer e preservar aquilo que em nós se mantém vivo e precisa se expressar.
Somos assassinos um do outro submetidos a impulsos criativos e destrutivos, e na relação analítica é possível ver e experienciar o quanto esses aspectos contribuem para o self como um todo. Esse duplo movimento é parte das oscilações necessárias. É o ritmo de fé e compaixão que faz o movimento se manter e a dupla atravessá-lo de modo enriquecedor.
O que fazemos com nossa parte destrutiva é uma questão para cada um de nós. Pensamos que sabemos. Jesus talvez tenha chegado perto de uma resposta mais consistente: “Pai, perdoe-os. Eles não sabem o que estão fazendo”.
Estas notas me levaram à reflexão sobre a importância da manutenção do trânsito e à possibilidade de afirmar que as feridas e os temores da ambiguidade que nos atravessa podem revelar o que em nós está vivo e é capaz de compaixão. É isso que nos dá a chance de avançar, de ir adiante, sem sermos traídos por nós mesmos. É assim que podemos dar conta do nosso ofício, que exige de nós compaixão.