Introdução
Por meio da identidade pessoal, o ego arregimenta, ainda que de modo inconsciente, uma mesma imagem de nós mesmos capaz de transformar um trauma – entendido a partir de uma definição econômica segundo a qual ele se refere a um sofrimento intenso de ordem psíquica que perdura quando o sujeito não lhe oferece uma resposta adequada (Laplanche & Pontalis, 1974) -ou um sofrimento profundo numa marca identitária. É nesse sentido que entendo que o trauma ou o sofrimento pode ser lido em alguns casos, e de acordo com as indicações de uma clínica psicanalítica, à qual este artigo se reserva, como um mecanismo narcísico de defesa, que consiste na procura pela preservação da identidade pessoal diante da acidentalidade da existência. Isto é, em face dos rumos imponderáveis e irreversíveis nos quais existimos como expressões do tempo, muitas vezes o trauma é convertido num mecanismo de defesa egoica para evitar lidar com a imponderabilidade da existência, que pode desalojar a compreensão identitária que guardamos de nós mesmos. Assim, a construção da identidade se arraiga tão fortemente em nossas práticas que é preferível, muitas vezes, sofrer e manter a ilusão de que somos os mesmos, subjetivados por certos sofrimentos ou traumas, a nos libertar de uma compreensão unilateral e fantasmática2 que guardamos de nós mesmos como sujeitos identitários.
Para lidar com o sofrimento como marco identitário em que o ego opera para fortalecer e sedimentar uma imagem de si mesmo como um sujeito fadado ao sofrimento, lanço a hipótese de que é preciso descompreender-se, no sentido de tomar consciência de que o sofrimento, por mais agudo que seja, não fixa uma referência absoluta sobre o si mesmo. Embora o sofrimento, como um marco identitário, nos sirva para alimentar a fantasia de que podemos dominar o tempo impondo-lhe sempre a mesma narrativa do sofrimento, ele não para o tempo, nem a sua imponderabilidade. É preciso, nesse contexto, fragmentar a narrativa do sofrimento por meio do recurso ao perdão de si, como vou apresentar neste artigo.
O perdão é entendido por mim como uma ação de desbotamento da identidade e, consequentemente, da pretensão narcísica de mineralizar certos afetos como sentimentos que não cessam e que poderiam nos definir num único quadro categorial. Isto é, o perdão é visto aqui não apenas como uma ação que se estende ao outro, a quem normalmente se dirige o pedido de perdão; ele é visto sobretudo como um perdão de si mesmo. Isso não significa dizer que o perdão não ocorra pela mediação do outro. Sabemos que na clínica o perdão pode ocorrer transferencialmente. Meu ponto é que ele se constitui numa volta para si mesmo a fim de infringir aquilo que fantasmaticamente nos define. Perdão que é, portanto, a tarefa de sair não propriamente de si, mas de certa fantasia, expressa na crença da identidade pessoal, para se dirigir a outras possibilidades de ser si mesmo que igualmente nos habitam. Perdoar é, nos termos que proponho e no contexto do sofrimento identitário, se desidentificar.
Para cumprir meu objetivo, estruturo meu artigo em três etapas.
1) Sustento que é possível entender a liberdade como uma ação de reconhecimento da indeterminação e da imponderabilidade da existência por meio da qual se pode operar uma descompreensão de si mesmo. Isto é, agir de modo livre significa se entender como alguém cuja narrativa de si não pode instituir uma identidade definitiva. 2) Mostro que o esquecimento e a compulsão à repetição, duas formas frequentes de lidar com o sofrimento, convergem para um sofrimento identitário e muitas vezes funcionam para manter a integralidade do ego na forma de uma identidade pessoal. 3) Apresento o perdão como um processo de descompreensão de si mesmo por meio do qual se elabora o sofrimento com vistas à quebra da identidade que lhe dá suporte.
No registro do imponderável: a liberdade como consciência da indeterminação
A psicanálise não torna impossível a liberdade, ela nos ensina a concebê-la concretamente, como uma retomada criadora de nós mesmos.
MAURICE MERLEAU-PONTY, “A dúvida de Cézanne”
A psicanálise em geral desautoriza a liberdade quando compreendida como ação estritamente normativa cujo propósito é colonizar os nossos afetos numa circunscrição identitária. Ela não autoriza a construção de um latifúndio no qual depositamos, a partir de uma decisão racional, todos os nossos afetos e nos certificamos da propriedade sobre eles. Portanto, a liberdade que a psicanálise desautoriza, seguindo aqui as indicações de Merleau-Ponty, é aquela que aponta para um exercício de certa determinação de si plenamente consciente e completamente identificável consigo mesma. Portanto, a liberdade impossível em termos psicanalíticos é a que determina, que fecha caminhos.
Por isso, a liberdade não deve ser entendida como estar em posse de algo – em especial, de si mesmo – e normatizar a si mesmo num processo plenamente consciente de autodeterminação. O seu caminho deve ser outro. A liberdade deve ser entendida como a vivência do reconhecimento de que não é possível ter posse sobre si mesmo. Por conseguinte, para tornar possível a liberdade é preciso redirecioná-la para o âmbito da descompreensão de si.
Assim, a liberdade não se opõe ao inconsciente, porque a sua pretensão não é domar nossos afetos e nos fazer soberanos diante de todas as formas de insubmissão da vida inconsciente. O que a psicanálise pode nos ensinar é que a concretude da liberdade não está assentada na fantasia da autonomia, principalmente da autonomia irrestrita. A liberdade orienta quando nos retira a pretensão narcísica de tudo cristalizar como nosso – inclusive a imagem que tecemos de nós mesmos – e nos faz reconhecer a transitoriedade dos afetos, mais especialmente a sua temporalidade, isto é, a sua acidentalidade e a sua contingência, por meio das quais os afetos tanto operam quanto existem.
Nesses termos específicos, é possível entender a liberdade como um des-compreender-se, no sentido de desapropriar-se de uma visão unilateral de si mesmo, sobre a qual se assenta a identidade, tomada também como a fantasia do domínio racional e afetivo sobre si mesmo. A liberdade é um exercício de mobilizar uma descompreensão de si mesmo por meio da abertura a outras experiências afetivas de si. É com a liberdade que se instaura uma abertura para as diversas perspectivas que nos atravessam ao longo de nossa vida e que não formam necessariamente um elo encadeado e teleologicamente determinado de acontecimentos.
Desse modo, a psicanálise não é contrária à liberdade por alimentar subrepeticiamente um determinismo psíquico, do qual já foi, aliás, várias vezes acusada. Ela apenas localiza a liberdade no interior de um quadro de referências afetivas para a tomada de consciência de que devemos caminhar nos afetos sem a pretensão de subordiná-los a um único propósito, como a instituição da identidade. A psicanálise torna possível a liberdade porque a retira da pretensão de indiferença em face dos afetos e do modo pelo qual eles nos mobilizam. A liberdade é circunstanciada no conhecimento de que a melhor forma de lidar com os afetos é assumindo tanto a sua impermanência quanto a sua acidentalidade, sem guardar a pretensão egoica de conter tudo dentro de uma narrativa completamente coerente e uniforme de si (Butler, 2015).
A liberdade é entendida aqui como indeterminar-se no sentido de não estabelecer um fim/limite para si mesmo, que seja responsável por nos definir numa única rede de afetos. Viver essa indeterminação é se permitir experienciar a existência no sentido radical da acidentalidade que devora as pretensões de garantia – próprias da vontade de controle, da qual falei no meu livro Sobre losers (Andrade, 2019) – e, com elas, a fantasia egoica da identidade. Assim, não é a liberdade que cria a indeterminação. Ela não cria a contingência do mundo nem a dos afetos, mas pode ser entendida como o exercício de confrontar as tentativas – vãs – de determinação. Do meu ponto de vista, a liberdade é a tomada de consciência da abertura que somos como tempo e é a responsável por tornar a vida refratária a qualquer determinação de caráter absoluto.
É pela compreensão dessa indeterminação que podemos descentralizar o trauma. Trabalhar o trauma é percorrer outras possibilidades de se compreender e dar vazão a outros afetos que nos atravessam. Assim, se nenhuma experiência de si é totalizadora, a ponto de condensar todos os afetos numa única imagem de nós mesmos, isto é, se nem mesmo um trauma é um absoluto catalisador de todas as nossas experiências de mundo, é possível transitar por outras narrativas, nas quais se possa diluir o trauma por meio do exercício de se permitir des-compreender-se de uma única perspectiva de si.
Sei que é comum entender a liberdade como atitude afirmativa e que consequentemente ela envolve alguma ideia de controle de si quando pensada no horizonte do indivíduo, como mostrei no meu último livro (Andrade, 2019). A liberdade é sempre tomada como uma prática que requer determinação. Autodeterminação, para ser preciso e para usar a gramática da filosofia moderna. A determinação, no presente contexto, assume a forma de um paradoxo, porque se determinar é a ação de não se enclausurar na fantasia de que podemos ter uma única e acabada perspectiva de nós mesmos. A liberdade é o reconhecimento da indeterminação. A liberdade é o modo pelo qual podemos ser menos resistentes à imponderabilidade que nos atravessa, e para isso é preciso não se determinar.
A liberdade é negativa porque ela também não tem um fim, um objeto para o qual ela deve a priori se determinar. Ela é o exercício de não se obstinar. É o exercício de tomada de consciência de que a imponderabilidade nos atravessa e torna líquida toda pretensão narcísica de unidade do eu. Assim, não se trata de caminhar no registro binário do determinado e do indeterminado, mas de se permitir não se circunscrever a uma compreensão de si cuja hipertrofia da memória, como ensina Paul Ricoeur (1996), nos paralise e crie a ilusão da identidade.
Saber-se diverso é um passo importante para o cuidado de si, entendido como a capacidade de se perdoar em face do que se apresenta como irreversível ou das ações que se constituem como o tempo que não volta, visto que a culpa tem um caráter irremediavelmente egoico. O que propus até agora foi um exercício da liberdade entendida como conhecimento da abertura à possibilidade de visitar outras narrativas de si em que o peso do trauma – que pode, de fato, insisto, se relacionar a certos contextos de ações irreversíveis, como a morte ou um acidente – possa ser elaborado por uma narrativa que estenda o perdão para o si mesmo. Apresentarei o perdão como a narrativa com a qual tomamos consciência de que um sofrimento não nos define. Farei ainda algumas breves considerações sobre a liberdade a fim de relacioná-la com o perdão.
Liberdade e impermanência: a tarefa do perdão
A vida não tem passado. Toda hora o barro se refaz.
GUIMARÃES ROSA, Corpo de baile
A identidade pessoal só pode se manter como fantasia quando ela promove uma contínua e ininterrupta leitura do passado como expressão sempre do mesmo quadro de referências narrativas. É como se fosse possível reduzir fantasmaticamente o horizonte de expectativas a uma mesma narrativa, visto que a leitura do passado seria uma forma de ratificar o presente e cristalizar um único horizonte para a narrativa de si, no qual a identidade está sempre sendo afirmada.
No entanto, é importante notar inicialmente que o horizonte de espera ou de expectativa, aquilo que projetamos como o que ainda não está presente, o futuro, diriam alguns, só pode ser compreendido em toda a sua impondera-bilidade – que, aliás, lhe é aderente – porque a acidentalidade perfaz a própria arquitetura do tempo. Não é apenas o futuro que é acidental, contingente, nem apenas o presente. O tempo na sua integralidade é expressão da acidentalidade da existência. A vida, no sentido de Guimarães Rosa, não tem passado, tomado como uma espécie de museu que visitamos sempre no mesmo lugar. Como nos toca Guimarães Rosa, toda hora o barro se refaz.
Assim, mesmo que a memória seja capaz de registrar acontecimentos que não podem ser desfeitos, a interpretação desses acontecimentos – a sua elaboração, para ser preciso – não está dada. Ela é a ação que se cria na narrativa de si. Em outras palavras, embora o passado seja irreversível, ele também é impermanente no que diz respeito à possibilidade de lhe conferir novos sentidos. A permanência da irreversibilidade do tempo, a consumação dos acontecimentos que forma o tempo que não mais é, que torna o passado consumado enquanto acontecimento, não esgota a sua significatividade, relativa ao modo como criamos não apenas a ordem dos acontecimentos, mas também a narrativa de como eles nos afetam. Em suma, no acontecido não está dada a sua interpretação.
Os afetos, como afirmei em meu livro (Andrade, 2019), são irreprodutíveis, e nisso repousa a margem irrestrita para uma narrativa criativa deles, uma vez que toda lembrança já se constitui, de algum modo, como a criação de uma rede afetiva. Lembrar um afeto é se relacionar afetivamente com ele, mas com uma narrativa que sempre se refaz no tempo presente. Ainda que muitas vezes o trabalho da lembrança seja para reforçar o trauma ou para nos manter na mesma narrativa de sofrimento, como vou mostrar em detalhes, nas frestas das lembranças, no conjunto de fatos que não se adéquam perfeitamente à narrativa de sofrimento, há invariavelmente dobras que podem ser lidas como um fator emancipatório em face do sofrimento.
É nesses termos que gostaria de propor agora o perdão como um trabalho de elaboração e emancipação da imagem afetiva que sedimentamos como a expressão identitária de nós mesmos. Vou tentar compreender o perdão, seguindo o caminho indicado por Paul Ricoeur (1996), como a alternativa mais razoável para lidar com o trauma, por um lado, em relação ao esquecimento, tomado como a ação de recalque na forma da negação da ocorrência de certo sofrimento, e, por outro, em relação à compulsão à repetição, tomada como um excesso de memória que paralisa numa mesma narrativa de si e embota novas experiências de si mesmo, inclusive experiências de sofrimento. Diferentemente de Paul Ricoeur, que se concentrou no perdão do outro, o meu objetivo neste artigo é falar do perdão de si.
Esquecimento
E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
GUIMARÃES ROSA, “A terceira margem do rio”
Primeiramente, gostaria de ressaltar que quem fantasia o esquecimento como forma de lidar com o sofrimento profundo não se perdoa. No máximo, se refugia por mais tempo na fantasia ou – permitam-me usar o vocabulário clássico de Freud, empregado, é bem verdade, em outro contexto – recalca. Desenha para si um quadro de lembranças para evitar tantas outras em que o sofrimento vem, nas palavras do escritor, de sobressalto. Isto é, faz um esforço, às vezes consciente, para apagar uma narrativa de sofrimento, muitas vezes com o recurso, como diria Freud (1899/1969), a lembranças encobridoras ou a uma seleção de fatos que faz supostamente desviar do que permanece como trauma. Tenta-se, portanto, negar certas vivências construindo-se um escudo contra qualquer sofrimento relativo ao que se deseja esquecer.
O esquecimento, nesse caso, é um mecanismo de defesa em face de situações que mobilizaram uma densa carga afetiva – Freud falava de energia psíquica – e as quais optamos, nem sempre de modo consciente, insisto, procurar não trazer à tona. Guardamos um segredo sobre nós mesmos como se pudéssemos esconder o que gostaríamos de esquecer. Bastaria esquecer. Fantasiamos que o silêncio poderia asfixiar o tempo.
O esquecimento opera como um mecanismo de defesa diante de um trauma que poderia, dependendo de sua força, nos desalojar da compreensão unilateral que tecemos fantasmaticamente de nós mesmos e que é em geral tomada como expressão de nossa identidade. Para isso, o ego trama narrativas que tentam diminuir a presença de determinados sentimentos por uma espécie de asfixia. Com efeito, quando nos engajamos com o esquecimento não promovemos uma elaboração da memória crítica, diz Ricoeur (1996). Assim, o esforço de esquecimento não desmembra o trauma, e termina por deixá-lo operando na sombra da vida consciente e com a força performática do que resiste a se esgotar no tempo, visto que ele se mantém como um conjunto de afetos não elaborados – muitas vezes, portanto, como ressentimento, para dizer numa palavra.
Nesse sentido, o esquecimento pressupõe sempre uma propriedade sobre nós mesmos que nos faz repelir – nesse caso, esconder – aquilo que consideramos estranho a nós mesmos e que nos afeta na forma de um trauma. Novamente, o que está no centro é a noção de identidade que o eu, para não ser posto em xeque, assume e pela qual bloqueia o acesso consciente à rede de afetos inscritos em determinado trauma. O ego reconhece no trauma uma ameaça que poderia desintegrá-lo de forma definitiva. Por essa razão, tenta “se esquecer”, mobilizando para tanto uma forma de resistência a uma des-compreensão de si mesmo ou ao que poderia desalojá-lo da estabilidade da identidade. Nesse caso, o esquecimento é uma tarefa de caráter egoico, que tem como meta proteger o próprio ego ou a identidade que ele guarda de si mesmo de uma eventual desintegração, mas é importante ressaltar que nem sempre o ego age de modo deliberadamente consciente.
Assim, o trauma pode ser convertido pelo ego numa forma de resistência a uma descompreensão de si mesmo que vou detalhar com vagar na última parte do artigo. Por ora, é suficiente entender que essa descompreensão de si mesmo só pode ser vivenciada ou elaborada, dissolvendo por conseguinte o trauma, quando o ego abandona a esfera do “esquecimento” e passa a ser objeto de uma narrativa criativa e analítica de si; quando o ego se torna perspectiva, e não uma unidade absoluta e fechada em si mesma. Ou seja, só quando se acessa analiticamente o trauma é que se pode construir uma narrativa criativa de si, capaz de revisitar o passado sobre uma base mais ampla do que aquela sobre a qual se assenta o trauma e que em geral é identitária. Com uma narrativa criativa de si, pode-se conferir ao trauma a sua dimensão de contingência, que como tal o dilui na impermanência do tempo.
Essa é a razão pela qual é preciso mobilizar elementos afetivos que subsidiem uma narrativa que nos faça ter consciência de que o trauma é um momento contingente de nossa existência, assim como são contingentes todos os nossos momentos. Por um lado, isso implica tomar consciência de que, como nos dizeres de Guimarães Rosa, não se pode ter esquecimento – como se fosse possível simplesmente apagar um trauma. Por outro, implica compreender que é preciso proceder a uma análise da lembrança, em cujo centro deve estar a elaboração do passado, no sentido da tomada de consciência de que não nos reduzimos a um ponto dele ou a uma narrativa sobre ele.
Somos uma abertura fundamental, como de algum modo já dizia Heidegger (1927/2000), em que novas narrativas estão sempre presentes e podem dialeticamente presentificar um novo horizonte de expectativas. Diluir o trauma é assumir a abertura fundamental da acidentalidade que no tempo se faz imponderável. Voltarei a esse ponto no fim do artigo.
Repetição
A forma de lidar com o trauma aparentemente oposta ao esquecimento é a compulsão à repetição. No entanto, se o esquecimento é um modo de preservar a identidade por uma decisão de não lidar com algo que pode nos retirar o conforto da fantasia identitária, a compulsão à repetição preserva a identidade por uma espécie de incorporação do trauma à própria estrutura do eu. A compulsão à repetição também é um mecanismo de defesa, mas nesse caso o trauma se transforma num processo identitário em que parte importante de nosso comportamento se constitui como reforço positivo do trauma e, por conseguinte, de nossa fantasia de permanência no tempo na forma de uma unidade.
Assim, embora o trauma possa ser uma ocorrência que se desencadeia em certo momento no tempo, quando se torna uma projeção identitária, por meio da qual o ego estende a compreensão unitária de si para se definir pelo trauma, ele passa a governar nossas ações e nossas narrativas acerca de nós mesmos. O trauma governa as nossas ações de um modo muito próprio, ofertando-lhes um sentido causal que amarra, numa mesma teia discursiva, fatos e situações nem sempre articuláveis entre si, mas que ganham um sentido único a partir do sofrimento.
Nesse caso, a compulsão não se refere a um conteúdo recalcado, que aparece na clínica na forma da transferência, na qual o paciente repete situações da infância. A lembrança do trauma vem sempre à tona como um traço agudo de nossa fantasia de identidade. Ou seja, passamos a viver o trauma como uma destinação própria que governa o nosso horizonte de expectativas; passamos a ser o trauma, mas sem atravessar o processo de elaboração do trauma. Novamente, o trauma não é vivido por uma memória, por assim dizer, elaborada ou crítica, que, longe de o tomar como parte constituinte de nossa singularidade, o redimensiona para a sua compreensão acidental ou contingente, que o dilui com o tempo no tempo.
Nessa perspectiva, o trauma é um catalisador de outros sofrimentos e passa a enquadrá-los numa mesma rede de narrativas e, portanto, de significatividade. Nesse sentido, ele se repete e se presentifica em todos os sofrimentos. Assim, o ego fica fantasmaticamente resguardado quanto à natureza imponderável do sofrimento por lhe oferecer uma linearidade narrativa, como se todos os sofrimentos vindouros pudessem ser costurados como expressão de um único trauma e nos fossem, por conseguinte, de algum modo familiares, porque corresponderiam a nosso marco identitário. Assim, a compulsão à repetição opera por meio do trauma como uma camada protetora da identidade e termina por tornar perenes certos afetos na esperança de colonizar o sofrimento e lhe retirar a sua volatilidade. O passado se mantém fantasmaticamente sólido como granizo.
Perdão
A única solução possível para o problema da irreversibilidade – a impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade de perdoar.
Hannah Arendt, A condição humana
Do estranho ao familiar, tentei mostrar que podemos compreender o esquecimento e a lembrança (essa última entendida como uma compulsão à repetição) como polos de um mesmo mecanismo narcísico de defesa, polos que simetrizam a mesma narrativa unilateral do passado e que fazem o trauma governar nossas ações para nos manter presos a certa imagem de nós mesmos. Por isso, a tarefa do perdão não pode ser de esquecer o passado, nem de trazê-lo à tona como uma repetição da mesma imagem de uma rede de afetos, supostamente não corroída pelo oxigênio do tempo. Para o exercício do perdão, é preciso visitar o passado com vistas a ampliar a sua rede de significados. Ampliar é, nesse contexto, fragmentar a imagem de si, analisar, entender-se como descontinuidade e compreender o passado como uma possibilidade sempre aberta para a narrativa de si.
Ainda que o passado seja consumado temporalmente – o tempo é irreversível, diz Hannah Arendt –, o seu caráter contingente nos abre várias possibilidades de nos experienciarmos a nós mesmos. Esse caráter contingente ou acidental do passado lhe é inerente e permanece, mesmo quando ele é consumado, como abertura a diferentes interpretações, inesgotáveis possibilidades de lê-lo, próprias da acidentalidade que perfaz não apenas o presente, mas a própria experiência do tempo. Isto é, mesmo que a ocorrência de um fenômeno tenha sido consumada, a narrativa sobre ele é tempo que se enreda sempre numa gama indeterminável de possibilidades de interpretação.
Nesses termos, para o perdão é necessário sair da imagem de si, que nos constitui fantasmaticamente como proprietários do passado e, por conseguinte, de nós mesmos, para se deixar permear por sentimentos ou afetos que redirecionem o passado para a transitoriedade do tempo.
O que pode diluir o trauma é a compreensão de que o perdão é um processo capaz de criar o passado, no sentido de lhe conferir uma rede de significados em que sentimentos alternem o sofrimento com a lembrança de que nem todas as coisas – para falar em termos radicais, quase nenhuma – estão sob o nosso controle, como se a nossa vida pudesse ter sido completamente planejada. Ou seja, o perdão é o acolhimento da acidentalidade da existência, que não cessa quando as nossas vivências já escorreram no tempo. Ela prolonga-se para a narrativa sobre o passado. A acidentalidade não ocorre no tempo. Ela é o tempo.
Portanto, a tarefa do perdão consiste na compreensão da impermanência da existência de modo geral, existência que se encontra plasmada na acidentalidade que une o passado ao futuro paradoxalmente pela descontinuidade, no sentido de que a acidentalidade rompe qualquer pretensão de linearidade do tempo. Desse modo, nenhuma sedimentação absoluta de si mesmo pode ser traçada de modo inalterável. O perdão é tomar consciência disso. Ele é a ação de descompreender-se, no sentido de diluir as fronteiras que demarcavam a posse sobre si (muitas vezes, transcrita no imperativo da coerência, na exigência de nos mantermos coerentes) para operar no reconhecimento de que o passado não se fecha. É por isso que o perdão de si só pode existir onde não há identidade, onde não nos definimos e podemos experienciar outras formas de ser si mesmo.
Se o narcisismo é um obstáculo enorme para o perdão de si, uma vez que nos mantém presos a uma compreensão unilateral de nós mesmos, ele não consegue, contudo, pavimentar todas as frestas da existência e estabelecer um elo comum e inexorável entre os diversos acidentes que nos compõem. É possível escapar do buraco negro do narcisismo quando a liberdade deixa a esfera da autonomia, com vistas à afirmação de uma identidade, para se refugiar na indeterminação de si mesmo. É quando, por meio da liberdade, se toma consciência de que não se pode normatizar a existência mediante uma única e definitiva narrativa coerente de si mesmo. Com a liberdade, toma-se consciência de que diferentes compreensões de si mesmo singularmente se articulam e se desarticulam no tempo sem formar uma estrutura identitária.
Notadamente, o perdão não é um rompimento com o tempo, com a acidentalidade que lhe é aderente, para uma espécie de acerto de contas com o que passou – por exemplo, na forma do arrependimento. Perdoar não é necessariamente se arrepender, mas acolher a vulnerabilidade, a falibilidade, que atestam a nossa falta de pleno controle sobre nós mesmos no contexto de determinada ação. Em certo sentido, quem se arrepende não se perdoa, porque é incapaz de perceber que a fragilidade não é algo que nos é facultativo, mas é a própria estrutura acidental da vida que somos. Entender que em certos contextos não soubemos fazer diferente e acolher a nossa incompletude é caminhar na direção contrária ao arrependimento. Perdoar é se reconhecer vulnerável.
Por isso, o perdão consiste justamente no reconhecimento do caráter acidental do tempo. É a compreensão de que a acidentalidade não é uma propriedade do futuro, como se só nele houvesse a imponderabilidade, ou ainda como se o tempo pudesse ser recortado em diferentes fatias, em cada uma das quais haveria uma dinâmica própria e absolutamente particular. A acidentalidade é a arquitetura fundamental do tempo, pois mesmo o passado não deixa de ter sido uma ocorrência acidental, e a sua interpretação mantém-se aberta não apenas porque podemos selecionar outros fatos ou acontecimentos, renovar nosso conjunto de memórias, por assim dizer, mas porque a carga acidental por meio da qual as coisas ocorrem, os caminhos e descaminhos que não controlamos, se presentificam ou vêm à nossa consciência quando nos descompreendemos do que tomamos como propriedade de nós mesmos. É quando entendemos as diversas possibilidades de existir que nos habitam em todos os momentos do tempo. Essas possibilidades que nos perfazem não se localizam num lugar no tempo e, por isso, elas não se esgotam quando o tempo passa. Pelo contrário, essas possibilidades, constituem-se no tempo, na expressão mesma de sua acidentalidade.
Desse modo, é possível entender que o trauma foi uma possibilidade tornada, em alguns casos, irreversível enquanto ocorrência (a morte, por exemplo, de uma pessoa querida), mas ele não perde a sua dimensão acidental, não apenas porque poderia simplesmente não ter ocorrido naquele momento, mas porque, ainda mais radicalmente, não está indisponível para outras narrativas que nos libertem da dívida que consideramos ter conosco – dívida que na verdade é com a nossa identidade.
O perdão nos permite entender que nossas escolhas, as quais podem fomentar um trauma ou mesmo desencadeá-lo, por exemplo, não se opõem à acidentalidade da existência, mas a realizam quando mostram a nossa vulnerabilidade e a falta de controle sobre nós mesmos. Não se trata, claro, de retirar a responsabilidade sobre o ocorrido, sobre as nossas ações. O ponto é relativizar – ampliar, para ser preciso – a compreensão de si mesmo para reconhecer que a descontinuidade e a acidentalidade do tempo tanto estiveram presentes na tessitura de determinada ação (por meio do contexto e da rede incontrolável de ações que levaram àquela ação específica) quanto perfazem o presente apresentando diferentes modalidades de autopercepção. Isto é, não se trata de negar a responsabilidade, sobretudo daquilo que tornamos irreversível, como a violência perpetrada contra alguém, mas saber que ela está imersa na acidentalidade da existência, que torna tudo inessencial, no sentido de que poderia não ter ocorrido se outras escolhas e fatalidades tivessem concorrido para um efeito contrário.
Ou seja, o perdão é a tomada de consciência de que as nossas ações tanto ocorrem numa rede de possibilidades acidentais, inscritas na singularidade de nossa existência, quanto são passíveis de serem entendidas como uma possibilidade de ser si mesmo que realizamos num tempo que não se fecha e que, portanto, não fecha com ele um único modo de nos compreendermos. O perdão se instala com o reconhecimento de que a descontinuidade do tempo configura uma variedade de fendas em todas as pretensões de oferecer um sentido único aos fatos ocorridos. Essas fendas não estão no passado, no presente ou no futuro. O tempo em sua integralidade é fenda.
É nessa perspectiva que o perdão de si mesmo pode ser entendido como um momento de liberdade, talvez a experiência mais radical da liberdade, porque conseguimos nos afastar da pretensão de englobar todas as narrativas de nós mesmos no interior de uma identidade. Assim, a liberdade não se estrutura sobre o domínio de si, que nos habilitaria a determinar o nosso modo de agir em conformidade com o que projetamos como nós mesmos enquanto uma espécie de unidade no tempo. A liberdade se realiza na descompreensão de si mesmo, num dilatar-se que dilui as fronteiras do eu. A liberdade nos retira o insustentável peso de sermos a fantasia acabada de nós mesmos, coerentes e conhecedores do nosso destino e sobretudo movidos pelo que Butler (2015) com precisão chamou de imperativo da coerência.
A liberdade e o perdão se conjugam na forma de uma abertura para uma descompreensão de si que consiste em se reconhecer vulnerável em face da força arrebatadora da acidentalidade do tempo. Mais do que uma identidade, um eu, somos perspectivas acidentais e singulares sobre o tempo e sobre a sua irreversível acidentalidade. Perdoar-se é dar-se conta de que, apesar de fazermos esparsas e raras escolhas, não controlamos a nossa existência, porque a abertura para a acidentalidade não está apenas no futuro, no que ainda não ocorreu, mas atravessa o tempo que somos. Na palavra precisa de Guimarães Rosa: travessia.