Então Jefté reuniu todos os homens de Galaad, ofereceu batalha a Efraim, e os homens de Galaad feriram Efraim. Depois os homens de Galaad tomaram a Efraim os vaus do Jordão, de maneira que, quando um fugitivo de Efraim dizia: “Deixe-me passar”, os galaaditas lhe perguntavam: “És efraimita?”. Se dizia: “Não”, lhe respondiam: “Então dize: Shibboleth”. Ele dizia: “Sibolet”, porque não conseguia pronunciar doutro modo. Então o agarravam e o matavam nos vaus do Jordão.
Juízes, 12,5-6, Bíblia de Jerusalém
Sobre shibboleths e cesuras
H chega à sua sessão de segunda-feira muito pesarosa e triste devido a um fato ocorrido no fim de semana. Almoçando com a família, se dirigiu à mãe e lhe disse: “Finalmente despedi aquela negra que eu tinha contratado como secretária. Não sei onde eu estava com a cabeça quando contratei uma negra”. A mãe não lhe disse nada, mas “o seu rosto se fechou”. Ao olhar o rosto dela, H imediatamente “lembrou” que a mãe era filha de uma mulher negra que havia se casado com um homem branco. O mesmo havia acontecido com sua própria mãe, que tinha pele morena e traços que recordavam os da avó de H. Já o pai da analisanda era um homem alto, de origem nórdica, com uma postura “marcial, de quem está sempre marchando num desfile militar”, e H havia herdado essas suas características físicas. Em muitos momentos anteriores a esse, uma imagem seguidamente me visitava nas sessões com ela. Pela maneira como falava, com erres e esses bem destacados e imperativos, pela forma como caminhava, pelos gestos e pelo aspecto físico, me vinha à mente a vivência de estar analisando uma típica soldada nazista dos campos de concentração (as Aufseherin, que pertenciam à seção feminina da ss), como geralmente são caracterizadas ou até caricaturadas em filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Essa imagem pareceu desfazer-se na sessão que estou descrevendo, e senti algo semelhante a uma profunda pena enquanto a paciente chorava copiosamente pelo que tinha ocorrido. Destaco dois momentos: o primeiro, quando “não se deu conta” de quem era a sua mãe e qual era a sua própria história, e o segundo, quando a verdade foi percebida através de seu registro da dor materna, lhe ocasionando uma dor, agora sua, e uma culpa insuportável. Se chegar a ser suportada, poderá transformar-se em responsabilidade psíquica, permitindo tolerar a incompletude de qualquer reparação. Não entro em detalhes teóricos ou conceituais sobre o que acabo de comentar, e sim o deixo como estímulo aos leitores para pensarem as questões que desejo compartilhar.
Mia Couto observa o seguinte:
A verdade é esta: a vida tem fome de fronteiras. É assim que se passa e não haveria nada a lamentar. Porque essas fronteiras da natureza não servem apenas para fechar. Todas as membranas orgânicas são entidades vivas e permeáveis. São fronteiras feitas para, ao mesmo tempo, delimitar e negociar. O “dentro” e o “fora” trocam-se por turnos. ... O problema é que o nosso pensamento, ao contrário das restantes entidades vivas, facilmente se encerra em si mesmo. Não sabemos fazer paredes vivas e permeáveis. ... De um e do outro lado há sempre algo que morre, truncado do seu lado gêmeo. Aprendemos a demarcarmo-nos do Outro e do Estranho como se fossem ameaças à nossa integridade, mesmo que ninguém saiba em que consiste essa integridade. Temos medo da mudança, medo da desordem, medo da complexidade. ... Vivemos em estado de guerra com a alteridade que mora dentro e fora de nós. Esse é o defeito original das fronteiras que fabricamos. (2013, pp. 196-197)
Shibboleth, termo originário do episódio bíblico narrado em Juízes 12, é muitas vezes utilizado como senha que delimita, identifica e circunscreve os iniciados em um campo determinado de estudos, seguidores de alguma teoria, partidários de uma seita, adeptos de um partido político etc. De acordo com alguns dicionários, shibboleth é uma palavra usada como teste para detectar pessoas de outro distrito, ou país, através da sua pronúncia; uma palavra ou som muito difícil para os estrangeiros pronunciarem corretamente.
Preocupado com o estabelecimento do status científico da psicanálise, Freud foi buscar na metáfora bíblica do shibboleth (“espiga”, em hebraico) o modelo para a definição de quem seria um psicanalista. O inconsciente, a teoria dos sonhos, a sexualidade infantil e o complexo de Édipo são, para Freud, os shibboleths que definem uma identidade: ser psicanalista. Estabelecem fronteiras demarcadas, não transitáveis, dividindo os partidários dos adversários da psicanálise (Freud, 1905/1978), os seus adeptos daqueles que devem renunciar para sempre a compreendê-la (Freud, 1933/1986).
Inspirado na famosa frase de Freud em Inibição, sintoma e angústia -”Existe muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento poderia nos fazer acreditar” (1926/1959, p. 131) –, Bion desenvolveu o conceito psicanalítico de cesura e o transformou em um fundamental instrumento de sua teoria do funcionamento mental e do encontro analítico. Historicamente, surge como resposta de Freud a Otto Rank e sua noção do trauma do nascimento (Chuster, comunicação pessoal, 2012). Com a frase sobre a cesura, Freud inclui, de certa forma, a noção de continuidade (que não está presente em Rank). Para Freud, porém, ela surge apesar da “impressionante cesura”. Bion dirá mais tarde que a continuidade faz parte da cesura, e não ocorre apesar dela.
A cesura marca a própria constituição da mente (interno/externo, inconsciente/consciente, vigília/sonho etc.). Para Bion, no entanto, é uma constituição que se dá a todo momento. O analista tem que observar um trânsito entre diferentes estados mentais antes de qualquer interpretação. A importância da cesura se expressa tanto no campo teórico quanto na prática analítica. Falhas em sua concepção na mente do analista (e de qualquer pessoa) deterioram a capacidade negativa, a intuição e a criatividade, favorecendo preconceitos, racionalizações e todo tipo de concretude. Como se pode observar, a cesura implica um modelo de fronteiras que se insere no paradigma da complexidade, sendo ele, em si mesmo, um paradoxo.
Na sala de análise, um shibboleth pode ser observado quando, por exemplo, há a presença de um analisando que não pode cumprir funções de analista, e de um analista que não pode cumprir funções de analisando. De acordo com Bion, a função psicanalítica da personalidade (FPP) não estabelece fronteiras rígidas entre um e outro (assim como funções paternas e maternas não estabelecem fronteiras entre pais e mães). O ser analista ou o ser analisando, partindo-se do vértice da função psicanalítica, pode ser uma defesa contra o impacto da complexidade na mente humana. O problema é o ou. O ou é uma fronteira difícil de ser atravessada, é exclusivo, é excludente. O modelo espectral em psicanálise, tão presente em Bion desde a noção do espectro narcisismo ↔ social-ismo (Bion, 1948/2006), nos leva a pôr a questão em termos de (+/–) FPP. Supõe-se que o psicanalista teria melhores condições de se aproximar a +FPP. Entretanto, é uma suposição que necessita ser observada em cada sessão e em cada momento de qualquer sessão.
As cesuras nos permitem viver simultaneamente em pelo menos dois mundos (mental/protomental, simbólico/não simbólico, adulto/infantil, psicótico/não psicótico etc.), mesmo que um deles predomine como vértice de observação. Os diferentes lados de um mesmo fenômeno são como dois polos, dois vértices possíveis de abordagem. Cada par implica uma cesura, e cada cesura implica a possibilidade de uma perspectiva espectral. A cesura é uma expansão de um modelo mental de tipo espectral. É um requisito epistemológico desse modelo.
Na configuração espectral não existe lugar para causas ou resultados. O modelo espectral nos ajuda a entender por que a cesura não é um lugar ou alguma espacialidade definitiva ou definível. A cesura é movimento e agenciadora de movimento. Implica uma ideia de movimento que se define por suas possibilidades de oscilação, com sua ausência produzindo inibição no desenvolvimento. Em outros trabalhos, utilizei a gangorra como metáfora dessa oscilação: o jogo se sustenta pela instabilidade, não pelo equilíbrio (Trachtenberg, 1998, 2005, 2012, 2013a, 2013b, 2018, 2019).
A “impressionante” cesura
Como dito antes, quando retomou a frase de Freud sobre a cesura, Bion (1977a) incluiu a continuidade, o que une e o que separa simultaneamente, transformando-a em conceito. Ele modificou de modo substancial as implicações e o significado da frase de Freud ao dizer: “Investigar a cesura; não o analista; não o analisando; não o inconsciente; não o consciente; não a sanidade; não a insanidade. Mas a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans)-ferênda, o humor transitivo-intransitivo” (p. 56).
A cesura vem a ser o vértice através do qual analista e analisando podem observar o fenômeno que acontece na sessão psicanalítica, e ela mesma pode vir a ser objeto da observação (Trachtenberg, 2005, 2012, 2013a, 2013b, 2017). Como diz Chuster, os aspectos criativos da mente, resultantes ou representantes da função psicanalítica da personalidade, revelam-se na radicalidade do conceito de cesura: “Se não nos deixarmos impressionar pelos elementos da memória, do desejo, da necessidade de compreensão e da impressão sensorial, nossa mente recupera a plasticidade de movimento transitando pela cisão temporal, estabelecendo vínculos insuspeitados, criando conjecturas, enfim, exercendo a imaginação” (2001, p. 106).
Todos recordam o impacto sofrido por Freud pelo famoso comentário de Krafft-Ebing quando da apresentação de seus primeiros historiais clínicos: isso não passa de um conto de fadas científico. O modelo de ciência vigente no século 19 não poderia aceitar fronteiras permeáveis entre ciência e imaginação. Portanto, a afirmação “isso não passa”, não existe passagem possível, configurava um shibboleth, uma “impressionante” cesura. Bion dirá mais tarde que “um crítico hostil poderia dizer com facilidade: ‘Tudo isso é pura imaginação!’. Eu diria ‘Sim, mas já é tempo de aceitar-se que a pura imaginação seja reconhecida como tendo um lugar no trabalho científico’” (1978/1980, p. 224). A imaginação, assim como o ato de fé (F) (Bion, 1970), passa a adquirir um status fundamental na psicanálise, permitindo-nos “ver” o outro lado quando o outro lado não pode ser objeto da visão.
Bion se dizia impressionado pela ideia do “impressionante” na frase de Freud. Como indiquei em outros textos, a cesura só é impressionante em sua impossibilidade (Trachtenberg, 2012, 2013a, 2013b, 2017, 2019, 2022). Nesse sentido, a nota de rodapé de Strachey (Freud, 1926/1959, p. 131) sobre o equívoco da edição alemã de 1926 é bastante ilustrativa: publicou-se censura no lugar de cesura – equívoco que ocorre até hoje. Nas palavras de Bion:
Estou impressionado pelo fato de o nascimento físico ser tão impressionante. ... O fato do nascimento certamente impressiona o indivíduo e o grupo. Mas me parece que é muito limitante supor que o nascimento físico é tão impressionante como muita gente supõe que é. ... Penso que a falta de discussão dessa questão é um ponto cego. Freud desenvolveu essa ideia da “impressionante cesura do nascimento”, mas ele não chegou a investigá-la profundamente. (1976/2000, p. 271)
Para Bion, ficou claro que corte e continuidade, ausência e presença, vida e morte, mente e corpo etc. eram somente diferentes lados do mesmo fenômeno, e que a dificuldade em sustentar simultaneamente esses aparentes opostos refletia a dificuldade humana em manter o paradoxo e, com isso, uma cesura criativa (Trachtenberg, 2012, 2013a, 2013b, 2017, 2019).
A cesura, então, retomada e transformada por Bion a partir de Freud, deixa de ser impressionante, seja no nascimento, seja na morte, e nos permite pensar em passagens im-pré-visíveis pelos shibboleths do estabelecido. Hoje, receberíamos a crítica de Krafft-Ebing a Freud como algo generoso e estimulante, pois sabemos que há mais continuidade entre o mundo da ciência e o mundo dos contos de fadas do que as “impressionantes” divisões classificatórias poderiam nos fazer acreditar.
Ética complexa
O modelo espectral, a cesura e a ideia de uma simetria heterogênea constituem três movimentos na obra de Bion que configuram uma ética complexa. Morin (2005) diferencia a ética complexa da ética simples ou moralidade. Apesar da proximidade ou confusão entre os dois conceitos, a ética, observada desde um vértice psicanalítico, é parte essencial da função psicanalítica da personalidade. Por outro lado, a moral, na forma descrita por Bion, é uma das formas em que se apresenta o que denominamos complexidade do mal (Chuster & Trachtenberg, 2009).
O sistema moral ou moralidade é o embrião ou núcleo das diferentes formas de fanatismo, fundamentalismo, preconceito etc. É importante lembrar que para muitos autores, inclusive no âmbito da psicanálise, não existe diferença alguma entre moral e ética – seriam apenas duas formas de falar da mesma coisa. Não é o que eu penso. Para mim, as diferenças são fundamentais para compreendermos por que a noção de ética trabalha com a ideia de um objeto complexo e a moral com a ideia de um objeto simples. Considero que as consequências da investigação dessas questões, na sala de análise, ainda não foram devidamente reconhecidas (Chuster et al., 2014; Trachtenberg, 2008, 2012, 2013a, 2013b, 2018, 2019).
A palavra ética, em sua origem etimológica na antiga Grécia, deriva de éthos, que tinha duas grafias ligeiramente diferentes, o que fez com que se tratasse de dois termos: êthos e ethós. O primeiro sofreu uma derivação de sentido: inicialmente designava o lugar onde se guardavam os animais; depois o lugar de onde brotavam os atos, isto é, a interioridade do homem, seu caráter. Morada de alguém, morada da alma. Como morada da alma, significa a disposição interna da vontade que inclina a pessoa a agir naturalmente de determinada maneira.
Já o segundo termo, ethós, significava hábito, costume, ou melhor, os costumes de um grupo que eram decisivos no balizamento da conduta dos indivíduos (o termo moral vem do latim mor, mores, aquilo que é aceito de forma generalizada). Agir corretamente, portanto, era agir conforme o grupo. Tal significação explica a confusão conceituai entre ética e moral vigente até os dias de hoje. Por decorrência dos dois sentidos, ao falar de ética, fala-se de ação humana. Não qualquer ação, mas a ação voluntária e livre, relacionada a atos que produzem consequências em outros.
Como observa Morin (2005), a ética perpassa as escolhas individuais, sendo o indivíduo responsável por definir a sua ética, e isso será feito através de uma reflexão crítica e disciplinada sobre o comportamento humano, interpretando, problematizando, investigando e encontrando caminhos. A moral manda; a ética recomenda. A moral faz a pergunta sobre o que devo fazer; a ética pergunta sobre como viver, o que desejo fazer. Dessa forma, a ética é um conceito mais amplo, diz respeito à interioridade do sujeito, sem excluir a dimensão da relação com o outro.
A moral, em sua não complexidade, obedece a um código binário: bem/mal, justo/injusto, certo/errado, superior/inferior. A ética, em sua complexidade, aceita que um bem possa conter um mal, um mal um bem, o justo o injusto, o injusto o justo. O bem e o mal comportam incertezas e contradições internas. Assumir a incerteza do destino humano leva a assumir a incerteza ética, e vice-versa. A ética é sempre inacabada, frágil, problemática, em combate, em movimento, como o próprio ser humano.
Como assinalado, o mal também é complexo. Toda tentativa de explicação sempre corre o risco da simplificação, do reducionismo da causa, das generalizações que remetem a uma essência última. Uma ação destrutiva contra a própria complexidade. O mal “é real, mas não pode ser unificado nem reduzido a um princípio. Comporta incerteza e contradição. Não pode ser limitado a um maniqueísmo de absoluta disjunção e separação. No limite, o bem torna-se mal e o mal torna-se bem” (Morin, 2005, p. 192). Deus e Satã são duas figuras do mesmo. Deus e Satã não estão fora nem acima de nós: estão em nós. O melhor da bondade e o pior da maldade do mundo estão no ser humano. Disse um sobrevivente do Holocausto: o único que aprendi é que não existe nada que um ser humano não possa fazer a outro e nada que um ser humano não possa fazer por outro (Baer, 2006).
Hannah Arendt (1970/1994) ensina que, para Kant, a lei moral não nos diz o que fazer, mas opera como critério de universalização ao qual submetemos nossas regras de ação ou máximas, como “não matar”. Assim, toda máxima que puder tornar-se uma lei universal, válida para todos os seres racionais, é moral. A busca de significado empreendida pelo pensamento tende sempre a examinar de novo e, em alguma medida, dissolver doutrinas e regras aceitas. Arendt (1971/2000) diz que não há pensamentos perigosos; o próprio pensar é que é perigoso. A autora ressalta que moralidade e atividade pensante, reflexiva, têm objetivos muito diferentes e são quase incompatíveis em seus propósitos. A ética, por outro lado, se fortalece com o pensar, o exige ao mesmo tempo que o estimula. Pensar é igualmente perigoso para todos os credos e, por si mesmo, não produz nenhum novo credo, observa Arendt.
A ideia de que o maior mal possa ser praticado de modo banal pelo mais insignificante e servil dos homens perturba a mente dos que pensam que o mal vem de um ser monstruoso, fora da categoria do humano. Arendt (1963) expressa essa ideia quando pontua que teria sido reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro. Como diz Derrida, isso é o que nos possibilita não responder com a pureza moral ao ideal de pureza dos diferentes genocídios (Derrida & Roudinesco, 2004).
A ética se estrutura através de princípios. É resultante de conflitos e tensões permanentes entre o eu, o isso e a realidade exterior. Portanto, está sujeita a transformações pelos acordos que se fazem necessários entre as três instâncias, num mundo em movimento constante. Exige pensamento reflexivo, pois demanda decisões e responsabilidade. A diferença que deve ser feita aqui é entre culpa (moral) e responsabilidade (ética). A ética tolera contradições e paradoxos e não suporta codificação; a ideia de um código de ética é fundamentalmente moral (Trachtenberg, 2013b). A ética trabalha com a contextualização. Sua lógica supera a aristotélica, e sua visão de mundo inclui possibilidades não definidas a priori. Aceita dúvidas, incertezas, o complexo, o singular. Inclui o sim e o não simultaneamente. A moral, por outro lado, é textual (tábuas da lei, códigos jurídicos etc.).
É um homem da modernidade que, corajosamente, termina por derrubar um dos mais caros pilares modernistas. Freud, investigando e descobrindo o inconsciente a partir do seu próprio, cria a psicanálise com seu potencial transformador/revolucionário. A revelação dos desejos inconscientes como formadores de uma ética inerente aos humanos, enraizada na mais caótica e profunda estrutura constitutiva do ser, transgride os códigos estabelecidos. A psicanálise inaugura uma ética dos – e para os – homens determinada por aquilo que é o grande reservatório de nossas grandes e pequenas “imoralidades”. O eu, longe de ser uma instância autônoma, é forçado a acordos infinitos com o inconsciente. A ética não se institui fora dele, o inclui e é por ele incluída. Lacan dizia que a experiência analítica nada mais é do que a constatação de que o inconsciente não deixa nenhuma de nossas ações fora de seu campo. Assim, temos que concluir que qualquer escolha ou decisão estará ocorrendo em uma zona de névoa, de imprecisão e incerteza. Essa fragilidade potencial colabora para a constante captura da ética pela moralidade do establishment, os conhecidos “guardiões da moral e dos bons costumes”, condutores de cerimônias de purificação – aliás, uma das origens da palavra holocausto.
Despojada de seu significado essencial e transformada em possessão de alguns, a ética passa a ser utilizada burocraticamente para padronizar condutas ou difamar os pobres outros não possuidores. Em geral, o detentor da “ética”, agora banalizada, se crê também detentor de uma qualidade superior, uma convicção delirante de ser ungido pelos deuses, um poder supremo que o autoriza a separar, com precisão cirúrgica, o bem e o mal. A ética não é um bem de que se possa ser proprietário. Dizer-se uma pessoa ética é incorrer em “moralina” por redução – termo de Nietzsche (citado por Morin, 2005, p. 56) –, tomando a parte pelo todo. Não existem “pessoas” éticas porque o ser é múltiplo, heterônimo e complexo. Como vemos, a moralidade se insinua por caminhos extremamente sutis. Cada vez que dizemos, por exemplo, “Eu sou uma pessoa...” ou “Fulano é uma pessoa...” (psicótica, honesta, negra, homossexual, onipotente, seja o que for), estamos de alguma forma expressando nossa moralidade. O hábito na linguagem não é suficiente como disfarce ou álibi.
Ao querer se desembaraçar do rechaçado em si, por meio de atos de intolerância que projetam no outro o que o eu não quer admitir em si mesmo, abre-se caminho para o fanatismo moral característico das mentes puras, das raças puras e da psicanálise pura. Como mais ou menos observa Pontalis (2007), é uma árdua tarefa resistir a ver no outro diferente o depositário de nossa semelhança rechaçada. O fanatismo “mais fanático” não surge tanto pela intolerância ao diferente, e sim pelo repúdio do semelhante que não queremos que nos habite, fazendo-o habitante do outro.
Em vez de produzir certezas sobre o ser, a psicanálise surge como uma espécie de prática da dúvida – Bion disse em algum momento que o cogito ergo sum é o fracasso do duvidar da dúvida (“Penso, logo hesito”, brincou Luís Fernando Veríssimo). É uma proposta de dúvida metódica e ética como instrumento na progressiva e infinita capacidade de pensar do ser humano.
Morin cita Théo Klein:
A ética não é um relógio suíço cujo movimento nunca se desajusta. É uma criação permanente, um equilíbrio sempre prestes a ser rompido, um tremor que nos convida a todo instante à inquietude do questionamento e à busca da boa resposta. (2005, p. 55)
Na ética permanece uma incerteza irredutível, ligada à ecologia da ação (as consequências imprevisíveis: mesmo uma boa intenção pode produzir o mal), às contradições éticas, às ilusões do espírito humano. Em cada ocasião deve-se estabelecer uma prioridade e fazer uma escolha. Uma aposta, diz Morin. Uma cisão instrumental, diz Bion.
Morin considera que a ética é complexa por
não impor uma visão maniqueísta do mundo e renunciar à vingança punitiva. É complexa por ser uma ética da compreensão, sabendo-se que a compreensão reconhece a complexidade humana. ... Vulnerável ao medo, à ira, ao desprezo, à incompreensão, à mentira, à barbárie, à crueldade, deve, sem parar, resistir a isso tudo. Desarmada diante da ciência, da técnica e da política, deve permanentemente autorregenerar-se contra os endurecimentos, as escleroses e as degradações. O espírito precisa estar vigilante na luta contínua contra as simplificações, cujos riscos aumentam em períodos de histeria coletiva, de crise, de guerra. ... [A ética complexa] não tem a arrogância de uma moral de fundamento garantido, ditada por Deus, pela Igreja ou pelo Partido. Se autoproduz a partir da consciência individual. ... Prega o abandono de todo sonho de controle (inclusive do seu controle). Sabe que é impossível conceber e garantir um bem soberano. Não é a norma arrogante nem o evangelho melodioso, mas o confronto com a dificuldade de pensar e de viver. A ética complexa é sem salvação e sempre promessa. Incorpora o desconhecido do mundo e do futuro humano. (2005, pp. 196-197)
Um filme alemão (Hirschbiegel, 2004) sobre os últimos dias de Hitler no bunker, baseado no livro de sua secretária, mostra o ditador como uma pessoa frustrada, deprimida e impotente frente ao fim que se aproxima. Uma discussão terrível cercou o lançamento do filme, pois muitos insistiam que Hitler havia sido humanizado pelo diretor, se afastando do lugar designado para os monstros não humanos. Mas se o diretor tivesse razão, isso significaria, então, que carregamos dentro de nós um monstro em ebulição, sempre prestes a mostrar suas garras? O mal rechaçado em nós, não reconhecido, colocado em outro(s) não é a razão de muitos preconceitos e fanatismos? Não seria o reconhecimento dele a única forma de evitarmos a catástrofe?
Construindo pontes
Parece-me que os poucos livros que pude escrever são somente passos incertos que me conduzem alternativamente de uma margem a outra sem que eu queira permanecer em nenhuma. Rechaço estar destinado a uma residência, rechaço as oposições definidas. ... Quantas vezes me fizeram notar que a palavra entre figurava nos títulos e capítulos de meus livros a ponto de fazer de mim “um especialista do entre-dois”! Não sabem que, se desgraçadamente eu fosse o “especialista” do entre, cessaria imediatamente de me produzir prazer. ... Pode ser que passar livremente de uma margem a outra, cruzando as pontes ou, melhor ainda, as passarelas, como a da Pont des Arts, vagando daqui para lá sem permanecer ligado a um ponto fixo, me assegure de que não há ida sem volta e que toda travessia se faz nos dois sentidos.
JEAN-BERTRAND PONTALIS
O conceito de cesura mostra que o psicanalista, na sala de análise, está em um estado transiente de tornar-se psicanalista. Quando usamos qualquer shibboleth para determinar quem é e quem não é um psicanalista, esquecemos que a identidade de um psicanalista está sempre em estado de tornar-se. Através da cesura, Bion descreve o analista na sessão como um estar-sendo, trans-tornando o Jordão da mente transitável em qualquer direção e nascendo incessantemente, apesar das “impressionantes” cesuras do nascimento institucionalizado. Nesse sentido, o estado de vir-a-ser um psicanalista é indicador de que existe uma cesura operando, como a cesura do nascimento, que não nos permite afirmar quando uma pessoa nasce ou quanto de uma pessoa ainda não nasceu. Dizer-se psicanalista tem importância para fins profissionais, institucionais, sociais, teóricos, jurídicos etc. Tem importância para as humanas necessidades de pertencimento. O psicanalista no encontro analítico, como a verdade, é um caminho em eterno percorrer, é um estar-sendo sem chegar a sê-lo plena-mente. Nós não somos psicanalistas, diz Pontalis (2009), no sentido de uma identidade adquirida de uma vez por todas. É uma identidade a perder e a reencontrar. Sabemos bem que podemos ser analistas em uma sessão e deixar de sê-lo na sessão seguinte ou no decorrer de uma mesma sessão. Não é um lugar garantido, de repouso absoluto.
A cesura implica a coexistência de múltiplos estados mentais, em uma situação de turbulência emocional e sem um sentido evolutivo de um a outro (sendo esse último, quase sempre, um sinal da presença de juízo moral). Assim, desenvolvimento significa um aumento nas possibilidades dessa coexistência, com o surgimento de novas formas de vínculo entre os estados mentais. A coexistência e a forma como se vinculam, transitam e “negociam” são o que denominamos de singularidade do sujeito. É o que nos diferencia e é o que nos une. A tolerância maior a tal possibilidade, sem uma importante necessidade de exclusões/projeções, é o meu conceito de uma análise de êxito ou consecução (análise of achievement). Como vemos, estão aí implicados o pensamento complexo, a transitoriedade e o paradoxo (pensamento dialógico e não dialético). Bion (1992) observa, apoiando-se em Martin Buber, que uma das fraquezas da linguagem articulada é demonstrada ao usar um termo como onipotência para descrever uma situação que, de fato, não pode ser descrita de modo totalmente preciso apenas por intermédio de um tipo de linguagem. Onipotência deve sempre significar também “desamparo” – não pode haver uma palavra isolada que descreva uma coisa sem descrever também a sua contraparte. Toda palavra inclui seu outro lado. Martin Buber, citado por Bion, diz:
A atitude do homem é dupla, em concordância com as duas palavras básicas que pode falar. As palavras básicas não são termos singulares, mas pares de palavras. Uma palavra básica é o par de palavras “eu-tu”. O que tem significado, quando alguém fala sobre “eu-tu”, não são os dois objetos relacionados, mas a relação – ou seja, uma realidade em aberto, na qual não existe término. (1992, pp. 382-383)
Nessa citação, Buber descreve o que Bion irá denominar modelo espectral narcisismo ↔ social-ismo e, simultaneamente, a cesura e a simetria heterogênea. Toda palavra é um casal de palavras. É um casal complexo como qualquer casal. O ser humano é um ser múltiplo. Nossa identidade é heterogénea e móvel. Somos muitos em nós, viajando constantemente de um eu ao outro, em si e no outro. Nenhuma palavra isolada pode descrever ou definir alguém. Nenhum diagnóstico é válido, nem mesmo o do psicanalista. Quando penso que o mal é apenas um lado do outro, ou de seu outro lado, e não outro lado de mim é porque não consegui melhor negociação entre os diferentes lados de mim. Minha ovelha negra da família deixa de ser reconhecida como ovelha da minha família. O sistema moral, berço de todo fanatismo, não tolera a ideia de outro lado, mas o próprio sistema nos pertence como outro lado. E é essa complexidade que nos ajuda, até certo ponto, a acolhê-lo, contê-lo, tolerá-lo, dentro de nossas possibilidades.
De acordo com Morin (2003), a ideia fundamental da complexidade não é que a essência do mundo seja complexa e não simples; é que essa essência seja inconcebível. De um lado, ela integra a simplicidade e, de outro, abre-se para o inconcebível. A complexidade, então, pode ser considerada como o princípio do pensamento que considera o mundo, e não como o princípio revelador da essência do mundo. Morin se interessa, sobretudo, pelo repensar que os avanços das ciências físicas e biológicas exigem. Passou-se, diz ele, da partícula conceito-fundamento para a partícula conceito-fronteira. A partir de então, a partícula não nos remete de modo algum à ideia de substância elementar simples; ela nos conduz à fronteira do inconcebível e do indizível.
Julio Moreno aponta o seguinte:
Nosso raciocínio tradicional tende a entender diferenças como opostos. Além disso, em geral, nos habituamos a pensar um dos polos do espectro como superior ou melhor que o outro. Essa preponderância varia com o tempo e as circunstâncias sociais e culturais, e eventualmente pode chegar a se inverter, mas o pensamento binário de opostos tende a manter-se. Isso obstaculiza a emergência de novos modos de pensar. É como se a oposição em si encerrasse em um círculo a eventual produção do diferente, que não é o mesmo que oposto. A presença dos opostos costuma fechar caminhos para o radicalmente novo. ... As opções devem estar concatenadas por um E, não por um ou, e devemos estar advertidos de que esse E não conduz a nenhuma síntese dialética final, nem a uma espécie de média entre ambas as posições, nem a uma conclusão. Para nós, ainda sujeitos da modernidade, é demasiado fácil entender a variação de posições – sobretudo através do tempo – como uma espécie de sinal de “progresso”. As ideias, as posições, cremos que vão progredindo, tornando-se cada vez “melhores” (ou piores, o que não se baseia numa ideologia tão diferente). ... Isso se relaciona a uma equivocada concepção da dialética do mundo natural e a uma ideia equivocada do darwinismo. O conhecido diagrama que mostra um Australopithecus seguido por um Homo habilis um pouco mais erguido, depois um Homo ergaster e ao final – como a culminação de um trajeto – um digníssimo e triunfante Homo sapiens ereto, de pele branca (embora se saiba que nascemos na África), olhando com a confiança de quem avança na direção do futuro – futuro que está sempre à direita da ilustração – é um erro que delata nossos preconceitos antropomórficos. É o gráfico de uma ideologia francamente distorcida que vem sendo hegemónica desde que Darwin afirmou que somos descendentes dos macacos e desde que decidimos renegar essa “pouco nobre” ascendência. A criatividade da natureza, da qual somos testemunhas, não se baseia num progresso, e sim numa emergência ininterrupta de diferenças que se multiplicam rizomática e incessantemente. (2016, pp. 71-73)
Na verdade, como vimos, não há direção do “evolutivo”, seja essa evolução de ideias ou de espécies biológicas. A própria ideia de evolução é um problema. Darwin disse que “a variabilidade dos seres vivos e a ação da seleção natural parecem não ter outro projeto que o de uma folha que segue a direção de onde sopra o vento” (Moreno, 2016, p. 73). Bion, por exemplo, praticamente não fala em evolução. Usa o termo inglês evolve (desenvolver, expandir). Como destaca Paulo Cesar Sandler (2009, 2011, 2013) evolve não tem uma direção definida, não inclui juízo de valor (moralidade). Na sua origem etimológica em latim, diz Sandler, tem o sentido de “rodar”, “dar voltas”. É provável – somente provável – que em condições mais ou menos uniformes haja uma tendência à complexidade, mas não ao progresso.
O desenvolvimento da mente humana acontece por infinitos acordos entre os diferentes binômios que costumamos apresentar como polos opostos. Quando colocamos parte psicótica e parte não psicótica em um espectro, o movimento não é de evolução da primeira em direção à segunda. O mesmo em relação ao modelo espectral posição esquizoparanoide ↔ posição depressiva (em Atenção e interpretação: paciência ↔ segurança). Tampouco o espectro narcisismo ↔ social-ismo indicaria uma evolução. Mostraria sim que nos extremos um sujeito se retira do social, do grupo, ou se dissolve/dilui no grupo -massificação (Freud, 1921/1984). Num deles teríamos o egoísmo radical e no outro um altruísmo também radical. Uma evolução delataria seu componente moral. Solidariedade é um conceito que descreve esse estado entre narcisismo e social-ismo. É o vínculo, a cesura. A multi e a bidirecionalidade (↔), com seus infinitos e transitórios acordos, é o lugar da ética, que é o lugar do mal-estar e do mal-estou: mal estou próximo a um acordo e já tenho que repensá-lo. É o conflito interminável entre o eu e as imposições da cultura. Bion (1970) discute as relações entre o gênio, a ideia nova, e o grupo, o establishment. Um pode destruir o outro se não houver algum tipo de “acordo” que preserve a vitalidade de ambos.
O que postulo favorece uma noção de que não existe, ou não deveria existir, algo como uma evolução, uma passagem de analisando a analista, tão aceita, incorporada e referendada em nossas instituições de formação. Mesmo que nosso discurso se oponha a esse tipo de evolucionismo, ele está entranhado nos modelos evolutivos que adotamos. O modelo espectral nos resgata desse impasse. Afastar-nos de nosso lugar de analisandos é um perigo para nossa condição de psicanalistas e para a psicanálise em si mesma. Ou melhor, perdemos a condição de analistas. Somente somos analistas se permanecemos analisandos com cada analisando, e somente somos analisandos se permanecemos, ao mesmo tempo, analistas com cada analista. Analisando/analista é um casal de palavras que deveriam permanecer juntas, em que cada divórcio nos faz perder contato com nossos analisandos e nossos analistas. A esse tipo de relação denomino simetria heterogênea (Trachtenberg, 2022). Como assinalou Buber, o que importa é a relação, o vínculo, a cesura, não os elementos relacionados. O mesmo ocorre numa relação mãe-bebê, por exemplo. A relação não é simplesmente a de um bebê desamparado e sua mãe que o ampara (assimetria). O que os une, o vínculo, é o desamparo de ambos, com diferentes níveis de sofrimento e tolerância. Uma simetria heterogénea. Como diz a filósofa Alejandra Tortorelli (2016), não é a mãe que recebe o seu bebê: é o nascimento que recebe os dois.
Vou recorrer a uma expressão que considero útil, tomando emprestado um termo dos matemáticos: “iniciativa absoluta”. Por “absoluta”, me refiro a ambas as direções – a iniciativa de retornar e a iniciativa de seguir adiante. O ponto importante é a iniciativa, não o rumo. ... Digo “iniciativa” para expressar uma área neutra, intermediária, entre ambas as direções. Quem dá à luz um bebê? A mãe ou o feto a termo? O feto a termo de algum modo indica que já não quer mais estar dentro da mãe? Ou a mãe indica que já não quer mais levar consigo este peso? (Bion, 1978/2001, p. 101)
Essa citação de Bion inclui a ideia de que, em todo vínculo, existe um ponto, uma indecidibilidade da origem, em que não sabemos quem originou um evento ou a quem pertence.
Discordo da ideia iluminista de evolução como positividade. Evolução pode ser positiva ou negativa. Num espectro, a matemática nos ajuda a libertar-nos da moralidade, pois positivo e negativo não têm conotação de melhor ou pior. Menos e mais são noções matemáticas cujos sinais se referem a aumentos ou diminuições. Os números positivos não são melhores que os negativos. Quando falamos de transferência positiva e negativa, o que queremos dizer com isso? A moralidade entra em cena quando queremos com isso significar que uma é boa e a outra é ruim. Fora da moralidade, nenhuma é melhor que a outra. São apenas situações emocionais que fazem parte do ser humano e na psicanálise nos ajudam a entender que emoções predominam em cada momento. Existe uma cesura entre elas, elas não são opostas. A ideia de que o ódio deve transformar-se em amor não pertence à psicanálise real. Em outras palavras, não se inclui numa ética complexa. Pertence a algumas religiões, pertence a modelos evolutivos.
Jack Goody, renomado antropólogo inglês, escreveu um livro chamado The domestication of the savage mind (1977), traduzido para o português em 2012 com o título A domesticação da mente selvagem (em 1977, Bion gravou algumas ideias que iria apresentar na Itália nesse mesmo ano, origem do livro Seminários italianos; essas ideias foram publicadas em 1997 com o título Taming wild thoughts). Goody, desde seu campo de investigação, se refere expressamente a pensamentos selvagens e pensamentos domesticados. Discute o caráter evolucionista da passagem de pensamentos selvagens a pensamentos domesticados. Questiona antropólogos e autores de outras áreas que pensam essa passagem como uma evolução do irracional em direção ao racional (Wilson), do pensamento mítico-poético ao pensamento lógico-empírico (Cassirer), dos procedimentos pré-lógicos aos procedimentos lógicos (Lévy-Bruhl) etc. Alerta para o juízo de valor potencialmente presente nessas concepções. Pergunta-se como avaliar diferenças sem a presença de moralidade. Ou seja, como pensar as diferenças sem critérios do tipo superior/inferior, melhor/pior etc. A flecha era unidirecional, e toda volta era regressão ou patologia. Não esquecer que as doenças ou sintomas regridem quando há melhora, ou progridem quando pioram. A questão da moralidade tem por base uma perspectiva comparativa entre estados mentais, levando sempre, nos diz Goody, a um modelo evolucionário. O autor diz também que qualquer recurso ao trabalho comparativo faz surgir a questão evolucionária. Como pensar a passagem – tão presente na filosofia, na psicanálise etc. – da natureza à civilização sem idealizar o bom selvagem rousseauniano, nem nos transformar em poderosos destruidores da natureza, desprezando o lugar que nos hospedou generosamente e aos seres vivos que aqui estavam? Será essa uma tarefa impossível, como Freud descreveu a própria psicanálise?
No início de nossa prática, talvez tenhamos sido mais atrevidos. “Como fui dizer isso para o paciente naquela vez?!” pode ser uma lembrança de um analista mais domesticado, de outros tempos mais selvagens de nossa caminhada pela psicanálise. Mas também pode ser que tenhamos começado mais domesticados, obedientes, abafados pelo império do medo do superego institucionalizado, e que só agora, mais autônomos, nos sintamos mais livres para pensar o não pensado e dizer aquilo que acreditamos ser interessante que o nosso analisando escute. O selvagem e o domesticado podem estar lá ou aqui, antes ou depois. Apenas pensamentos, sem moral da história...
As ideias que carregam em seu bojo o pensamento evolutivo, ou a ideologia evolutiva, ou a moralidade evolutiva, do tipo princípio do prazer → princípio da realidade, processo primário → processo secundário, natureza → civilização e suas variantes (narcisismo → Édipo, imaginário → simbólico, silêncio → palavra, posição esquizoparanoide → posição depressiva etc.), não só nos afastam daquilo que é real e verdadeiro como também nos afastam do nosso passado sempre presente (selvagem, infantil etc.), da nossa multidimen-sionalidade, desses tantos eus que somos e que condensamos artificialmente numa única palavra: pessoa. Logo, a psicanálise, que surge como sistema de pensamento e de ação transformadora através do resgate desse passado, acaba idealizando “iluminada e positivamente” esse futuro, esse depois, em que seremos adultos, civilizados, evoluídos? A psicanálise favoreceria, então, o esquecimento? O movimento, ou seja, a possibilidade de sermos também o que fomos, seguirá sendo significado, por nós mesmos, como regressão, o outro polo da progressão? Assim pensam as grandes corporações, os que destroem nossas florestas, poluem nossos rios, torturam e fabricam animais para consumo humano, retiram pessoas de seu lugar de origem e devastam as origens de seus lugares. Desse modo, na base de nossas teorias, de nossos sistemas de pensamento ideologizados, estamos de acordo com esse “movimento” simplista de direção única? Por isso Bion nos diz:
Pensamos que é importante ser capaz de transformar esses “instintos naturais” em pensamento consciente e racional sem destruir suas capacidades naturais. Costumeiramente, o treinamento ao qual todos nós somos submetidos no processo de tornarmo-nos civilizados destrói, ou abafa perigosamente, nossas heranças “animais”. (1977b, p. 520)
A expressão ficar em cima do muro é habitualmente entendida como omissão de decisão, atitude que visa não deixar claro o que se pensa, não precisar fazer escolhas. Mas também poderia significar ficar em um lugar onde possamos enxergar os dois lados do muro. Ou seja, olhar ambos os lados que não conversam, não dialogam dialogicamente, extremismos separados por um muro, shibboleth. Mas esse lugar, em cima do muro, seria uma cesura, o encontro de um espaço que permite o pensar, observando ambos os lados de uma aparente oposição, pois os extremos de um espectro, tão extremistas, não são muito diferentes em sua essência, funcionando com simplificações e exclusões de todo tipo. Ambos são berços de preconceitos, fanatismos, fundamentalismos, certezas inamovíveis e eternas (isto é, ausência de qualquer sentido de verdade). Entretanto, em cima do muro não é um lugar cômodo. É inseguro, de difícil equilíbrio, sujeito ao apedrejamento dos que permanecem na parte de baixo, em cada lado do muro. É o lugar de dúvidas, incertezas, indecidibilidades, perguntas que não se calam. As respostas tardam, pois é o espaço do pensamento e da ética complexa, e a pressão para que se tome partido é intensa e incessante. Pressões que vêm de todos os lados, inclusive de nós mesmos.
Existe um lado da Lua que nunca vemos. O lado oculto da Lua é oculto de acordo com um foco determinado. Oculto e não escuro, como sabemos hoje, graças à Apollo 16. A luz do outro lado é ainda mais intensa em comparação com aquela que podemos enxergar. O outro lado era escuro somente porque não o víamos. O que não vemos sempre nos parece escuro... Nosso limitado espectro de captação visual é justificativa suficiente ou confiável para o que não vemos? Imaginar é ir além do conhecido, é “ver” o invisível, é ter esperança (F). Para ver o que não é visível, devemos cegar-nos artificialmente, disseram Sócrates, Freud, Bion e muitos outros. Todo foco requer um des-focar-se para “ver” /imaginar/intuir o outro lado, aquele que está oculto, mas que ao mesmo tempo está ali, no outro lado do outro e no outro lado de mim.
E a analisanda, aquela que deixei lá no início do texto? Ficou mesmo lá? Ou esteve presente em todo o transcorrer da minha argumentação? Está também aqui, agora, quando encerro o artigo? Sim, aquela analisanda também sou eu, somos todos nós em nossas acomodações silenciosas, em nossas naturalizações adaptadas, em nossas obediências civilizadas e em nossos gritos anestesiados ou sonhos adormecidos. Lidar com essa nossa “soldadinha nazista” será uma tarefa interminável, mas só assim reconheceremos sua presença e até, quem sabe, impediremos que nos domine, que nos governe e que destrua, esboçando seu sorriso perverso, nossos vestígios de solidariedade e esperança.