A observação
A observação é um instrumento do método científico. A especificidade da observação psicanalítica é o reconhecimento da presença do inconsciente em relação dialética com a consciência, em todos os protagonistas do campo observacional.
Freud (1893/1976a) apreciou as lições de seu professor Charcot, na Salpêtrière. O mestre relata que Charcot costumava olhar repetidas vezes as coisas que não conhecia, até que de repente o entendimento fosse aberto. Ressalto aí a capacidade de tolerar o desconhecido para que o novo possa aparecer. Esse é o espírito de Freud, que, usando a observação como ferramenta, não se acomoda ao já conhecido.2
Rezende (2014) afirma que a palavra método vem dos metahodos gregos. Hodos significa “estrada”. A poesia de Antonio Machado nos lembra: “Caminhante, não há caminho, se faz o caminho ao andar” (1901/1912, p. 5). Tanto a etimologia quanto a poesia nos alertam sobre os perigos das posições rígidas, dogmáticas, unívocas.
O método de observação de bebês (OB) criado por Esther Bick (1962, 1964) é uma experiência de treinamento que visa aprimorar o instrumental psicanalítico e a capacidade de observação nos analistas em formação.3 A inspiração surgiu diante das dificuldades apresentadas pelos pretendentes no exercício da profissão impossível, no contato e na compreensão das próprias emoções (Nemas & Urman, 2012) e na turbulência emocional em si (Harris, 2012). Esse método é uma ferramenta útil para a auto-observação.
Não é possível conceber o método de OB Esther Bick sem estes três momentos: 1) observação semanal, na residência ou na instituição onde está o bebê, durante uma hora; 2) relato escrito e detalhado da experiência, incluindo as vivências e as ocorrências na mente do observador, seu trabalho de sonho alfa; 3) participação no grupo semanal de discussão, coordenado por um analista experiente.
O método de observação de bebês Esther Bick
Construção e reinstauração do setting: condição para o trabalho
O setting condensa as normas formais, no nível manifesto, sobre o trabalho a ser feito e convoca a aparição dos processos inconscientes do psiquismo no cenário. O conselho de Bick, para que o observador seja uma tela em branco, é impossível de alcançar. Ele pode, sim, instalar a função receptora (Inglez de Souza, 2007). A neutralidade ideológica, nunca afetiva, é um objetivo a ser atingido.
A vibração do setting é uma forma de dizer o indizível, na linguagem não verbal (Bleger, 1967). Nas suas alterações, os níveis primitivos da mente se incrustam.
Para Green (2012), o enquadramento é o eixo terciário, um estado de transição. Nesse espaço, o trabalho psíquico do analista é fonte de imaginação criativa, guardiã do trabalho. Muito além do nível manifesto, na fronteira com a realidade – tempo, espaço, frequência –, o setting condensa uma polissemia de sentidos metapsicológicos.
Combinamos com os pais um horário possível para eles e para o observador. Na OB não há honorários. Nós solicitamos a disponibilidade da família e mantemos a regularidade e a constância do setting. No encontro não se tomam notas nem se grava. Todas as alterações no setting são significativas, tanto por parte do observador como por parte da família.
Vários autores, como Bleger (1967), Fédida (1992), Green (2008) e Quinodoz (1993), ressaltam que o setting é nosso marco de trabalho. Ele enquadra o processo analítico e a OB. O setting tem uma função feminina no continente, de acolhimento, receptividade e empatia. E exerce uma função masculina na colocação de limites, da norma, da lei.
A escuta na transferência
Na OB não há interpretações verbais, só atos interpretativos (Ogden, 1996). Na ópera do encontro, como ressalta Prat (2019), o analista não passa para o ato; sua compreensão passa pelo ato.
Importa criar um espaço interno para a continência das diferentes vozes – metáfora sinfônica polifônica (Bollas, 2007) –, com suas melodias, ritmos, entonações e tons musicais.
Comunicação inconsciente
O observador oferece sua mente tão analisada quanto possível, permeável ao seu inconsciente, capaz de realizar o trabalho de sonho alfa (Bion, 1992), que permite a assimilação das experiências emocionais. As impressões sensoriais se transformam em pictogramas, em linguagem pré-verbal, em compreensão e après-coup na narrativa escrita. Sonhar permite digerir e é uma aproximação da verdade (Cortiñas, 2011).
Para Bollas (2007), o principal agente de trabalho da psicanálise é o trabalho entre inconscientes, no par analítico. Essa ideia já está presente em Freud, quando afirma: “E, enquanto escuto [o paciente], eu mesmo me abandono ao curso de meus pensamentos inconscientes” (1913/1976c, p. 135).
A comunicação de inconsciente a inconsciente está relacionada com a telepatia (Moreno, 2016), o transcorrer conectivo e o entrelaçamento4 – fenômeno estudado pela física quântica (Stitzman, 2011). Na lógica sequencial, quando se percebem as ligações inconscientes das diferentes narrativas em ziguezague e as articulações com a experiência emocional, os significados emergem.
Desenvolver α capacidade intuitiva
A intuição é a capacidade de observar o que é invisível aos sentidos. Ela exige contato com as emoções. É uma receptora distante e está relacionada à percepção emocional e à inteligência. A OB permite o seu desenvolvimento. O trabalho de sonho alfa, a capacidade negativa,5 as recomendações técnicas de Bion – sem desejo, sem memória e sem compreensão – possibilitam a captura intuitiva do fato selecionado (Lisondo & Neborak, 2020).6
A OB ajuda a esculpir a postura analítica. Nela estão presentes a capacidade de indagar e descobrir e a elaboração de conjecturas racionais e imaginativas. A tolerância à frustração e a modulação da dor mental contribuem para criar o equipamento básico para o desenvolvimento da função psicanalítica da personalidade.
A disciplina analítica, permanente, duradoura e contínua, permite vitalizar a intuição.
1) Registro escrito da experiência
A experiência da escrita na OB é análoga à experiência da escrita da sessão analítica. Esse registro é uma criação, uma obra de elaboração do autor. Nessa especificidade reside a riqueza da narrativa escrita.
O observador, no momento do registro, cria uma distância espacial e temporal. A escrita é um antídoto para a possível contaminação da mente do observador pelas fortes emoções vivenciadas durante a observação. Ela também é uma incubadora de novas ideias, sonhos e conjecturas. O observador psicanalítico (OP) encontra, na narrativa, a possibilidade de ordenar e dar inteligibilidade à experiência da OB.
A impossibilidade de escrever é muito significativa. Pode indicar o caos e a inundação provocados no campo observacional pela turbulência emocional diante de: identificações projetivas intensas e patológicas; mecanismos de defesa tenazes e rígidos; presença predominante de vínculos negativos de amor (L), ódio (H) e conhecimento (K);7 transformações em alucinose; angústias catastróficas e psicóticas; e atuações. A mente do observador pode ser bombardeada com conteúdos radioativos, e ele pode ter dificuldades para metabolizar, transformar em pictogramas, nomear para si próprio, sonhar e, mais tarde, narrar o experimentado.
Os desvios na capacidade de observar os tremores no campo, apontados no seminário semanal, podem ser uma bússola para que o futuro analista, convulsionado, entre em contato, na sua análise, com áreas desconhecidas de sua mente (Magagna, 2012).
Na escrita, o profissional realiza uma “visita privada” ao seu trabalho.
2) Seminário semanal
O seminário permite que o OP compare e estabeleça diferenças entre suas próprias observações e as de seus colegas. O OP encontra, nesse espaço, a oportunidade de descobrir fortes projeções, fantasias, emoções, sonhos não digeridos, pesadelos, ideais, ações, forças da vida e alianças com os diferentes protagonistas da cena, capazes de pressionar sua mente e permitir o reavivamento de questões de seu mundo interno. A análise pessoal, durante a OB, pode alcançar estados primitivos da mente (EMP) do observador.
O seminário semanal pode ter uma função análoga à dos seminários clínicos, especialmente se o observador é estimulado, com humildade, a formular suas questões, dificuldades, lapsos, confusões, emoções em jogo e “pecados” cometidos.
Em grande angular, na história de várias observações, é possível perceber padrões significativos nos laços familiares, nas personalidades em jogo: as invariâncias.
Concordo com Crick (1997) quando enfatiza que, no seminário, o colega encontra uma “maneira de falar”, fazendo ouvir sua voz, que silenciou na OB.
Na OB, a disciplina analítica é mais exigida, há mais personagens no campo, e as emoções são muito intensas e primitivas, devido à dependência, à fragilidade e às competências do bebê, muito sensíveis às emoções do ambiente. O OP é convocado a exercer a regra da abstinência no fogo das paixões.
3) Fatores da função analítica
É necessário criar um setting e, nele, o objeto de observação. A postura analítica encoraja a receptividade emocional, a continência e a empatia.
A tentação de dar conselhos/orientações, julgar, censurar, opinar e culpar distorce a função analítica. São fatores relevantes dela:
– capacidade de continência;
– paciência;
– capacidade de suportar frustrações;
– capacidade de exercer uma intuição penetrante;
– tolerância ao infinito e ao aleatório;
– capacidade de transformar em sonho (Ferro, 2017) as fortes emoções que emanam do campo;
– capacidade de sonho alfa;
– exercício da capacidade negativa;
– capacidade de pensar em vez de atuar;
– capacidade de encontrar o lugar para ser um OP muito além do concreto (lugar simbólico, metafórico, escorregadio, perigoso);
– capacidade para realizar conjecturas intuitivas, racionais e imaginativas;
– capacidade de sustentar a fé científica;
– outros a investigar.
Bick também pretendia oferecer aos alunos a oportunidade de entender mais claramente a vida emocional dos bebês. Ela queria facilitar o contato com a dimensão bebê da personalidade total do ser humano (Bianchedi et al., 1999).
Quando o analista é capaz de encontrar o bebê vivo no paciente, ele pode, com uma linguagem metafórica, dar voz às áreas inconscientes de difícil acesso verbal (Harris, 2012). O diálogo que Bion (1979/1996) escreveu em A aurora do esquecimento, volume 3 de Uma memória do futuro, entre os diferentes personagens é um exemplo vívido da mente multidimensional. O OP é testemunha da origem das relações, e pode se aproximar do mistério da constituição da mente do bebê, que se expressa na linguagem não verbal, na prosódia, nas brincadeiras, nos prelúdios da aquisição da linguagem. O candidato também observa os vínculos na família e as interpretações dos pais sobre a criança.
As teorias são más companheiras quando clamam por comprovação e realização. Bion (1970) permite definir a especificidade da observação psicanalítica e diferenciá-la da observação em outras ciências, a fim de evitar pecados epistemológicos (Green, 1992; Rezende, 2000). Na observação psicanalítica, importa a dimensão psíquica que não é sensorial, apesar de ter um fundo – uma raiz – sensorial.
A OB possibilita tanto o treinamento analítico quanto o desenvolvimento da análise como disciplina científica – uma teoria da observação (Sandler, 2005). Existe uma analogia entre os estágios constitutivos do método de OB Esther Bick e os usos da grade de Bion (1977), no eixo horizontal, nos campos: atenção, notação e investigação.
A consciência do analista deve ser ampliada8 para coletar dados que estão além do sensorial. Formular o que não é entendido é estímulo para desencadear futuros fatos selecionados e garantir os progressos, os saltos epistemológicos. Na OB é necessário manter certo grau de não saturação e uma dose de mistério.
O método de OB é uma boa disciplina para o desenvolvimento da tarefa impossível: a formação da identidade analítica (Kohen de Abdala et al., 2001). O OP constrói no campo analítico o objeto de observação com as dimensões da paixão, do bom senso e do mito. A OB exige atos de fé para uma aproximação de O.9 Se o analista detecta as funções na OB, OS fatores intervenientes podem ser formulados.10 Existem condições para a tarefa. A OB requer também o abandono de preconceitos e ideias preconcebidas (Lisondo, 2000).
A presença do analista gera efeitos de sentido no campo observacional.
A cesura: corpo presente, corpo ausente na observação de bebês
Cesura é um termo que Freud (1926/1976b) usou e que Bion (1977) retomou ao final de sua vida. A cesura mostra um antes e um depois, e entre esses dois momentos existe a possibilidade de uma mudança catastrófica. O termo cesura marca uma separação e uma continuidade. Com o conceito de cesura, é possível indicar um momento pré-pandemia e um momento pós-pandemia e ilustrar as mudanças entre esses dois mundos. “Parafraseando Freud: haveria muito mais continuidade entre assistir a um bebê cara a cara e observá-lo por videochamada do que a impressionante cesura imposta pela pandemia nos faria acreditar?” (Bianchini, 2020). Importa pensar não só nas mudanças, mas também nas invariâncias.
A palavra catástrofe vem do grego katastrophe, “fim súbito”, “virada de expectativas”, de kata (para baixo) mais strophein (virar). Essa palavra teve origem no teatro, no antigo drama grego. Era o momento que marcava um movimento feito pelo coro inteiro no teatro. O canto do coro separava uma cena da outra.
Há mudança catastrófica quando existe crescimento. Do contrário, em vez de mudança, há catástrofe. A pandemia nos exige enorme disciplina, impõe a aceitação de lutos, nos confronta com nossa vulnerabilidade e impotência ante a força arrasadora do desconhecido, o Coronavirus, fantasma que nos assombra. Ela nos lança na incerteza de um mundo misterioso, que exige de nós potencializar a capacidade negativa.
A pandemia obrigou os analistas a enfrentar novos desafios, outrora inimagináveis, como o de realizar a OB online. Oportunidade preciosa, de acordo com o pensamento complexo e os sistemas abertos para criar alternativas, sem haver experiências prévias teorizadas. Essa cesura explicita que na OB O que continua vivo nas telas são as múltiplas funções da observação psicanalítica.
A OB destaca que o importante na observação é a postura, a capacidade para conter fortes emoções e pensar. Na OB nossa identidade analítica é convocada. Nossa presença muda esse campo. Ela é ativa mesmo que silenciosa, porque há gestos interpretativos (Ogden, 1996), comunicação inconsciente e conectiva (Moreno, 2016), aposta pulsional na relação do bebê com a família (Marucco, 2005), atenção qualificada (Meltzer, 1975) no objeto observacional, continência, sonho alfa do analista.
A observação pode produzir mudanças, ainda que não seja a intenção ou o foco da OB provocá-las.
Por que continuar com as observações online durante a pandemia? Porque já tínhamos observações com uma história, um caminho percorrido. Certos bebês já reconheciam a observadora.
Em março de 2020, o mundo foi sacudido pela presença do coronavírus. Um trauma social, difícil de elaborar através de uma rede simbólica. É possível pontuar certas invariáveis na pandemia, mas cada ser vive este momento histórico de acordo com a singularidade de sua paisagem mental (Barros et al., 2020).
A continuidade da observação online poderia passar uma mensagem: aceitamos que o encontro presencial é diferente do encontro online, mas como analistas faremos o possível; nosso compromisso é com o contato psíquico e emocional.
A consciência das múltiplas funções do observador, a responsabilidade ética, sustentou epistemologicamente a continuidade dos trabalhos iniciados. O que teria acontecido com as famílias que prontamente aceitaram a observação online se houvesse uma ruptura no vínculo com o analista?
Pieczanski (2020) relata fatos ocorridos enquanto coordenava um grupo de observadores na China. Ora as famílias, ora os colegas negaram-se a continuar com a experiência. Sem deixar de levar em conta questões culturais, também é preciso pensar no quanto o observador realmente queria dar continuidade a essa experiência. O observador poderia estar sobrecarregado por estar no mesmo barco, em mundos superpostos, compartilhados (Puget & Wender, 2007). Também poderia se sentir difusamente inculpado enquanto chinês, por ser mundialmente responsabilizado pela transmissão do vírus; atormentado pelo medo, perante as exigências do novo, pela falta de referências na literatura e pela privação dos encontros presenciais, que são marca de nossa identidade. A pandemia impôs a quase todos os analistas a necessidade de repensar a potência da psicanálise, o valor do setting psíquico, para criar novos recursos criativos, apostando com fé no método.
Novos detalhes da amamentação na terceira observação online
Bianchini (2020) mostra que a possibilidade de trabalho online tem sido muito enriquecedora para as observadoras. Também as observações online têm revelado ser muito oportunas nas famílias. Um exemplo:
Com uma das mãos, a mãe segurava o celular, filmando perfeitamente a cena, e, com a outra, acariciava a mão, o braço e a cabeça do bebê. Um aspecto que considerei muito importante foi a possibilidade de observar a cena com maior riqueza de detalhes, devido à proximidade da câmera. Quando estou presente, não estou tão perto, para não parecer invasiva. Assim, os detalhes do olhar e os momentos em que o bebê liberou a mama foram melhor observados. Pude perceber a grande satisfação da mãe em poder me mostrar o desenvolvimento motor do filho. O aspecto negativo detectado foi que a mãe precisava trocar o lugar do celular, pois o bebê, sempre que o via, ia em sua direção para tentar pegá-lo.
Na observação e na psicanálise de crianças online, os pais são responsáveis por criar o setting, abrindo a conexão, manejando o celular para acompanhar os movimentos do bebê, posicionando o computador de forma a permitir que o profissional tenha uma boa visão, modulando o som, reconectando o dispositivo quando há instabilidade, informando sobre o que acontece quando o observador não consegue acompanhar os movimentos reais do infans.
Tanto na clínica quanto na observação, percebemos maior participação verbal do profissional, com exclamações e sons onomatopeicos. Talvez seja uma forma de compensar as limitações ante a privação da presença no ambiente.
O bebê tem sido capaz de manter um vínculo com o observador, aproximando-se da câmera, brincando às escondidas com jogos de espelhamento, mostrando um vínculo caloroso de proximidade.
Nós temos muito mais perguntas que respostas. É importante manter as dúvidas e as incertezas para poder investigar e explorar novas questões técnicas e metodológicas após a pandemia. O que ganhamos e o que perdemos na experiência online?
Cabe perceber as invariâncias na OB, tanto nas presenciais quanto nas realizadas online. A OB oferece a oportunidade de escutar a linguagem não verbal, escutar as vozes do silêncio. O observador faz conjecturas imaginativas e racionais, elabora hipóteses, valoriza seu trabalho de sonhos que aparecem na sua mente durante a observação. Esse trabalho de sonho alfa, como os lapsos, é uma porta para vislumbrar o entrecruzamento inconsciente no campo observacional.
No diálogo com o outro significativo, o infans emite sons e sílabas precursores da linguagem, na sua prosódia inspirada no manhês11 da mãe. A observadora constrói a narrativa na escrita, pensa as conjecturas imaginativas.
A observação vai permitir esculpir a identidade analítica, porque o analista terá maiores recursos para observar o bebê que está dentro de si mesmo, o arcaico no infans, no adolescente e no paciente adulto.
Tudo o que aparece na tela é nosso campo observacional. A entrada de um irmão ou de outro familiar, a possibilidade de observar ou não o bebê, as mudanças da câmera ou a imobilidade do computador – que não permite registrar os movimentos de um bebê rastejando, engatinhando, deambulando no ambiente – são fatos significativos. O que perdemos observando online? Não temos a visibilidade de todo o ambiente; observamos o recorte oferecido pelo cuidador. A construção do setting depende da colaboração da família e/ou dos cuidadores. Somos privados de aportes sensoriais importantes: o tato, o olfato, o sentido cenestésico e, às vezes, a escuta, quando há dificuldade nas redes.
Aos 5 meses e 15 dias: primeira observação com videochamada
Uma observadora coordenada por Bianchini (2020) relata:
A mãe apareceu na tela, sorriu para mim e me mostrou o bebê. Eu disse: “Oi, B [nome do bebê]!”. Ele estava de bruços num tapete de borracha colocado ao lado do colchão onde estava apoiado com os braços. A mãe pôs o celular no chão, distante do bebê, encostado na parede, para que eu pudesse ver. Assim que o bebê me viu, sorriu e se voltou para o aparelho fazendo um som: “Ehhh”. Ele engatinhou até o celular sorrindo. A mãe pegou o telefone e colocou-o de volta no chão, encostado em outra parede, mas o bebê voltou a rastejar em sua direção, sorrindo. A mãe disse que seguraria o celular na mão, pois o bebê não desistia e queria pegá-lo. O bebê então rastejou até a parede onde havia um buraco.
O bebê estaria procurando o com-tato com a observadora? Queria pegá-la? Agarrá-la? Tê-la consigo?
O setting recriado na observação online
A pandemia exige de nós capacidade para criar, recriar, sustentar e reinstaurar o setting e a postura analítica com flexibilidade. Ainda é cedo para colher os frutos do trabalho online neste insólito laboratório mundial.
Não pretendemos ter respostas. Debruçar-nos sobre essas questões nos encontros científicos e nos artigos nos permite ampliar o pensamento clínico, sempre enigmático, polissêmico, imprevisível e complexo.
Com a pandemia, o setting sofreu profundas alterações, com implicações no campo observacional. Eis aqui a percepção de uma observadora coordenada por Bianchini (2020):
Um impacto significativo da transição foi que o observador online não é mais capaz de observar a relação mãe-bebê de forma tão livre, espontânea e natural: a observação online depende do ângulo, do foco, da distância, da direção, na perspectiva escolhida pela mãe. Por outro lado, pelo fato de o observador se encontrar naquela posição mais inativa, atrás das lentes e do ponto de vista escolhido pela mãe, aqueles cortes, por ela selecionados, podem servir de material de observação. Podemos observar o que a mãe quer revelar ou assistir.
Os efeitos da presença do observador na família e da experiência da OB no analista
O observador participa ativamente no campo observacional. Os pais aprendem com nossa função. Importa a aposta pulsional do analista, como diz Marucco (1998), porque, ao focalizar o bebê e o seu entorno, com atenção qualificada e paixão pelo método, mostramos nosso interesse. O bebê será a majestade.
Segundo Meltzer (1975), quando a mãe perde a atenção qualificada no filho, a mente pode desmantelar. É como se entre os tijolos empilhados para construir o aparelho mental não houvesse cimento, e então eles desmoronassem. A atenção qualificada do cuidador funciona como o cimento. Ela é de fundamental importância para que o bebê se torne sujeito.
Ao construir o objeto de observação e focalizar o bebê e suas relações, colocamos o bebê como protagonista principal da cena. Assim, os pais, identificados com o observador, podem vir a se sensibilizar com a fragilidade, as capacidades, o sofrimento e as potencialidades do bebê.
Na pandemia, o psiquismo parental tem sido muito exigido. “Só nesta hora que parei para ficar com ele. Eu lhe dou o celular para poder trabalhar. Agora vejo que ele parou de balbuciar. Será que está viciado no celular?” A mãe de Ivo, de 8 meses, percebe a paralisação na aquisição da linguagem do filho, e no encontro com a observadora, companhia viva e testemunha, compartilha sua angústia.
O analista que fez OB tem mais facilidade para entrar no ambiente do paciente. Muitos analistas se sentem intrusos ao entrar nessa intimidade espacial. Se o paciente aceita fazer análise ou observação online, é porque está disposto, porque precisa continuar com essa experiência.
Às vezes, o paciente necessita mostrar seu ambiente real para o analista, em verdadeiras visitas guiadas pelos diferentes espaços da casa; outras vezes, quer pôr em evidência as interferências da família, o desrespeito com a intimidade do setting, e/ou mostrar concretamente os tesouros, como os animais de estimação.
Por que a família aceita a experiência da observação de seu bebê, ou aceita atravessar a cesura entre a experiência presencial e a experiência online? A família tem questões inconscientes que procuram um continente, uma companhia viva, um interlocutor privilegiado.
As famílias que nos aceitam têm uma forte preconcepção psicanalítica da personalidade, com predomínio do tropismo criativo. O observador é aceito com a expectativa inconsciente do encontro com um objeto estético, compreensivo, transformador, inspirador, fonte de segurança e vitalidade.
Nós estamos implicados nesse campo observacional e, como mostra o casal Baranger (1969/1993), constituímos vínculos. Uma observadora coordenada por Bianchini (2020) declara:
Posso afirmar que o vínculo não foi rompido, pois o desejo de continuidade é compartilhado pela mãe e por mim. O último encontro, aquele que tive a felicidade de ser presencial (sugerido pela própria mãe), corrobora a manutenção desse vínculo.
Paciência, prudência e sabedoria são conquistas possíveis do observador.
Para terminar, compartilho mais um depoimento de uma observadora: “O bebê tinha 5 meses e 15 dias. ... Surgiu o inesperado, inimaginável, impensável e, com ele, as incertezas da continuidade do trabalho. E agora? Como fazer? A mera possibilidade dessa interrupção abrupta me deixou com o coração partido” (Bianchini, 2020). A postura analítica encarnada, apaixonada e comprometida do observador na família foi um fator fundamental para continuar as observações na nova realidade.