É consenso entre um grande número de autores que o conceito de identificação projetiva dá margem a inúmeras interpretações (Goretti, 2007; Grotstein, 2007/2010; Joseph, 1987/1991; Spillius, 1988/1991). Uma contro- vérsia importante envolvendo esse conceito está relacionada à discussão sobre se existe ou não diferença entre identificação projetiva e projeção.
Alguns autores, entre eles Grotstein (2007/2010), Spillius (1988/1991, 2006) e Spillius et al. (2011), acreditam não ser possível sustentar uma clara diferença entre projeção e identificação projetiva. Segundo Spillius et al., “entre os kleinianos britânicos existe um consenso tácito de que projeção e identifi- cação projetiva significam a mesma coisa, sendo a identificação projetiva um enriquecimento ou extensão do conceito freudiano de projeção” (2011, p. 126).
Outros autores, como Bion (1962/1991a), Caper (1999), Joseph (1987/1991), Malcolm (1986/1990), Ogden (1979/2012), Sodré (2004) e, fato digno de nota, Spillius (Spillius et al., 2011) e Grotstein (Grotstein & Malin, 1966/2012), privilegiaram, ou pelo menos o fizeram em algumas passagens de suas obras, a interação entre projeção e introjeção implícita no conceito de identificação projetiva. Nesses casos não há como não diferenciar projeção de identificação projetiva, uma vez que no conceito de projeção não está in- serido o de introjeção. Na realidade, introjeção significa o oposto de projeção (Ferenczi, 1909/2011).
Neste artigo tentarei demonstrar que existem duas diferenças entre os conceitos de projeção e de identificação projetiva (sem entrar no mérito de que possam existir outras diferenças), a saber: 1) na identificação projetiva estão presentes aspectos introjetivos ao lado dos projetivos; 2) na identificação projetiva há uma confusão entre sujeito e objeto, fruto de um desequilíbrio nos processos projetivos e introjetivos, que leva a uma dificuldade na capacidade de formar símbolos.
Melanie Klein delineou o termo identificação projetiva no texto “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides” (1946/1991a). A autora aborda o assunto em um subtítulo do artigo em questão: “A cisão em conexão com a projeção e a introjeção”. Percebe-se que logo de início o conceito de identi- ficação projetiva é apresentado no âmbito da projeção e da introjeção. Klein começa dizendo que, assim como a cisão, a projeção e a introjeção também podem ser utilizadas como mecanismos de defesa contra a ansiedade. Em seguida, faz uma ligação direta entre a cisão, a negação e a idealização e os me- canismos de introjeção e de projeção, explicando que a negação dos aspectos maus é acompanhada por uma idealização dos aspectos bons, o que é possível graças à cisão – tanto do objeto quanto do ego.
A cisão faz com que o bebê introjete ora um objeto ideal, que é resultado da somatória do objeto bom e das projeções das partes boas do self no objeto, ora um objeto persecutório, que é a somatória dos aspectos maus do objeto e das projeções de todo o self mau no objeto. Portanto, o medo persecutório é consequência da introjeção de um objeto muito mau, mas o objeto se torna muito mau por conter, além de sua própria maldade, as partes más do self cindidas e projetadas. Melanie Klein diz:
Junto com os excrementos nocivos, expelidos com ódio, partes excindidas do ego são também projetadas na mãe ou, como prefiro dizer, para dentro da mãe. Esses excrementos e essas partes más do self são usados não apenas para danificar, mas também para controlar e tomar posse do objeto. Na medida em que a mãe passa a conter as partes más do self, ela não é sentida como um indivíduo separado, e sim como sendo o self mau. … Muito do ódio contra partes do self é agora dirigido con- tra a mãe. Isso leva a uma forma particular de identificação que estabelece o pro- tótipo de uma relação de objeto agressiva. Sugiro o termo “identificação projetiva” para esses processos. Quando a projeção é derivada principalmente do impulso do bebê de danificar ou controlar a mãe, ele a sente como um perseguidor. (1946/1991a, p. 27, grifos nossos)
Quero chamar a atenção para as frases em itálico. Klein diz que, ao conter as partes más do self, a mãe é “sentida como sendo o self mau”. Vejo aqui uma ligação entre projeção e introjeção, pois a mãe é sentida (introjetada) de acordo com aquilo que nela foi projetado. Assim que Klein apresenta seu conceito de identificação projetiva, complementa dizendo que o bebê passa a sentir a mãe como uma perseguidora devido às projeções a ela dirigidas. Ou seja, ele introjeta uma mãe tingida por suas próprias projeções.
Portanto, a partir do texto de Klein, uma possível interpretação do con- ceito de identificação projetiva seria a seguinte. O sujeito projeta para dentro do objeto. Esse objeto é, do ponto de vista do sujeito, identificado com os as- pectos projetados. Tal processo de transformar o objeto por meio de projeções tem como consequência imediata alterar a introjeção dele. Existiria, então, um ciclo. Não estou afirmando que essa é a única interpretação possível, nem que foi isso que Klein quis dizer. Estou ciente, por exemplo, de que em Klein o con- ceito é essencialmente pessoal e não intersubjetivo. Apresento uma possível interpretação, pois concordo com Ogden quando diz que, na obra de Klein, a identificação projetiva era “apenas implicitamente um conceito psicológico-interpessoal” (1994/1996, p. 93). Foi isto que tentei mostrar antes: que já está implícita no texto kleiniano a ideia de uma intersubjetividade no conceito, embora a própria autora não o entendesse assim. Pretendo demonstrar ao longo deste artigo que a mesma ideia aparece sob a pena de vários autores pós-kleinianos importantes.
Se é verdade que o conceito é intersubjetivo, projeção e introjeção têm que estar presentes. Estou totalmente de acordo com Paula Heimann quando afirma que todo intercurso entre sujeito e objeto se dá por meio desses dois mecanismos. Ela diz:
Freud comparou o funcionamento da mente, o mais complicado órgão, com o funcionamento do mais simples organismo, a ameba. A vida é mantida através da admissão num organismo da matéria estranha, mas útil, e da descarga da sua própria, mas perniciosa, matéria. Admissão e descarga são os mais fundamentais processos de qualquer organismo vivo. A mente, que também faz parte de um orga- nismo vivo, não constitui exceção a essa regra: realiza a adaptação e o processo me- diante o emprego, ao longo de toda a sua existência, dos processos fundamentais de introjeção e projeção. As experiências de introduzir alguma coisa no eu e de expelir alguma coisa do eu são eventos psíquicos de primeira grandeza. São os processos básicos não só para manter a vida (como no metabolismo físico), mas para todas as diferenciações e modificações em qualquer organismo que se considere. Essa admissão e expulsão consistem numa ativa interação do organismo e do mundo exterior; nesse padrão primordial assenta todo intercurso entre sujeito e objeto, por mais complexo e sofisticado que tal intercurso pareça. (Acredito que, em última instância, poderemos encontrá-lo no fundo de todos os nossos complicados tratos mútuos). (1952/1982, p. 143, grifos nossos)
Mas o fato de projeção e introjeção estarem presentes na identificação projetiva não é, ainda, o ponto central. A questão fundamental é que na iden- tificação projetiva há uma confusão entre sujeito e objeto. É por isso que Klein diz que a mãe “não é sentida como um indivíduo separado, e sim como sendo o self mau”. Mas se o processo continua sendo intersubjetivo nesse estado con- fusional, o que é que acontece com a projeção e a introjeção? Se, como vimos com Paula Heimann, esses mecanismos são invariantes do funcionamento mental em toda relação de objeto e promovem a ligação entre sujeito e objeto, o que se passa com eles quando a mãe é sentida como parte do self? Tentarei deixar mais claro o motivo pelo qual penso existir um desequilíbrio entre esses dois mecanismos em todo processo confusional. Se projetar é depositar algo meu no outro e introjetar é o oposto, ou seja, pôr algo do outro para dentro de mim, sempre que um desses mecanismos sobrepujar demais o outro em uma relação de objeto, isto é, sempre que não estiverem em equilíbrio, teremos uma confusão entre sujeito e objeto. Quando um psicótico invade a mente e o espaço do outro, está fazendo uso excessivo da projeção e quase nenhum da introjeção, pois não traz aspectos do outro para dentro de si, o que o impossibilita de percebê-lo. Se, pelo contrário, me deixo invadir pelo outro, sem me defender, deixo prevalecer a introjeção, permitindo-me ser subjugado na relação. Uma relação de objeto saudável, na qual aspectos do sujeito e do objeto são levados em conta, só é possível se essa via projetiva/introjetiva de comunicação estiver equilibrada – se ambas, projeção e introjeção, estiverem operando sem que uma sobrepuje demais a outra, fazendo com que aspectos de ambos os membros da relação sejam mutuamente levados em consideração.
Por exemplo, imagine que uma pessoa muito ansiosa ligue para outra e diga: “Tenho uma bomba para te contar”. O ouvinte poderá ter diferentes respostas emocionais diante dessa fala, dependendo do nível de equilíbrio mantido entre projeção e introjeção. Se introjetar todo o desespero do inter- locutor, ficará imediatamente desesperado e ansioso, de modo que ficarão confundidos; se, pelo contrário, durante o processo de introjeção, conseguir colocar (projetar) algo seu no evento, empurrando de volta o excesso daquilo que está sendo depositado em si, será capaz de promover um equilíbrio na tensão entre sujeito e objeto e pensar: “Ele deve estar apavorado para falar assim. Vejamos o que de fato aconteceu”.
Outro elemento que sugere que o ponto central para o qual Klein está chamando a atenção seja a indiferenciação entre sujeito e objeto é o fato de ela dizer que o sujeito projeta para dentro do objeto, e não no objeto. Se o sujeito, ou partes dele, entra no objeto, estamos inclinados a imaginar que isso leve a uma confusão entre um e outro. Essa confusão entre sujeito e objeto causada pela identificação projetiva é o aspecto central do artigo em que Klein (1955/1991b) trata principalmente desse conceito. Nesse trabalho a autora ilustra o funcionamento da identificação projetiva por meio da análise de um romance de Julian Green, no qual o personagem principal entra nos objetos e fica equacionado com eles.
A seguinte passagem de Ogden reforça essa opinião, além de sugerir que projeção e identificação projetiva são diferentes justamente devido ao fator antes mencionado:
Assim, Klein propõe a existência, desde os estágios iniciais da vida, de um processo psíquico por intermédio do qual aspectos do self não são simplesmente projetados sobre a representação psíquica do objeto (como na projeção), mas “para dentro” do objeto, de modo que se tenha a sensação de controlar o objeto desde dentro e o projetor vivencie o objeto como parte dele mesmo. (1994/1996, p. 38)
O aspecto confusional fica evidente também na visão de Bion (1955/1991b). Para ele, por meio da identificação projetiva o sujeito projeta fragmentos de sua personalidade para dentro (ele de fato diz que esses frag- mentos entram nos objetos) dos objetos, e esses fragmentos “engolfam” ou são “engolfados” pelos objetos, o que causa uma fusão entre ambos.
A consequência direta da indiferenciação entre sujeito e objeto (ou seja, a perda da relação triangular) é um comprometimento na capacidade de formar símbolos. A identificação projetiva prejudica, portanto, a forma- ção de símbolos. Já a projeção, como veremos adiante, é fundamental para a formação de símbolos. Justificarei, agora, essas afirmações a partir de citações e análises da obra de vários autores importantes, muitos deles referência no assunto. Analisarei separadamente as duas afirmações feitas.
Sobre a afirmação de que projeção e introjeção estão presentes na identificação projetiva
Robert Caper definiu da seguinte forma o conceito de identificação projetiva:
Com o termo identificação projetiva, Klein descreveu um tipo de identificação no qual a experiência do sujeito em relação à natureza do objeto é alterada de forma relevante pelas projeções do sujeito no objeto antes ou durante o processo de intro- jeção. (1999, p. 186, grifos nossos)
Para Ruth Riesenberg Malcolm, “identificação projetiva é uma fantasia inconsciente, através da qual a pessoa projeta partes de si mesma dentro de seu objeto, que é então percebido [introjetado] de forma alterada, afetado pelo que foi projetado” (1986/1990, p. 90).
Segundo Betty Joseph,
Melanie Klein deu-se conta da identificação projetiva quando explorava o que cha- mou de posição esquizoparanoide, isto é, uma constelação de um tipo particular de relações de objeto, ansiedades e defesas contra elas, típica do período inicial da vida do indivíduo e que em algumas pessoas perturbadas persiste por toda a vida. Para ela, essa posição particular é dominada pela necessidade do bebê de afastar ansiedades e impulsos, através da cisão do objeto – originalmente a mãe – bem como do self, da projeção dessas partes excindidas para dentro de um objeto, que é então sentido como – ou identificado como – essas partes excindidas, o que colore a percepção que o bebê tem do objeto e sua subsequente introjeção. (1987/1991, p. 146, grifos nossos)
Abordando o conceito de identificação projetiva, James Grotstein diz: “O objeto externo recebe as partes projetadas e, então, esse amálgama – objeto externo mais as partes nele recém-projetadas – é reintrojetado, completando o ciclo” (Grotstein & Malin, 1966/2012, p. 265, grifo nosso).
Nessa passagem, Grotstein afirma que o ciclo da identificação projetiva se completa com a reintrojeção de um objeto que, agora, contém os aspectos projetados. É exatamente isso que estou querendo dizer, que a identificação projetiva é um ciclo.
Segundo Ignes Sodré, “identificação projetiva é um termo vasto que inclui diferentes processos envolvendo a operação tanto de projeção quanto de introjeção” (2004, p. 134, grifo nosso).
Ogden afirma:
Identificação projetiva será entendida neste trabalho como um grupo de fantasias, acompanhadas de relações de objeto, relacionadas ao ato de se livrar de partes in- desejadas do self; o depósito dessas partes indesejadas para dentro de outra pessoa; e finalmente, a “recuperação” de uma versão modificada daquilo que foi expelido. … De maneira esquemática, podemos pensar a identificação projetiva como um processo envolvendo a seguinte sequência: primeiro, existe a fantasia de projetar partes de si mesmo para dentro de outra pessoa, e de que essas partes controlam o objeto a partir de dentro; em seguida, o sujeito da projeção pressiona aquele que recebe as projeções, forçando-o a pensar, sentir e se comportar de acordo com as projeções nele depositadas; finalmente, os sentimentos projetados, depois de serem “processados psicologicamente” por aquele que os recebeu, são reinternalizados pelo projetor. (1979/2012, pp. 276-277, grifo nosso)
Agora é Ogden quem diz que a identificação projetiva é um ciclo que se completa com a introjeção (reinternalização) de uma versão modificada daquilo que foi projetado. Visão semelhante aparece em Bion:
Melanie Klein descreve aspecto da identificação projetiva, ligado à modificação dos temores infantis; o bebê projeta parte de sua psique, isto é, sentimentos maus dentro do seio bom. Daí, a seu tempo, são removidos e reintrojetados. Pela perma- nência no seio, afiguram-se modificados, de modo tal que a psique do bebê tolera o objeto reintrojetado. (1962/1991a, p. 124, grifos nossos)
No parágrafo seguinte ao da citação, Bion diz explicitamente que é dessa teoria que ele abstrai o seu modelo de continente e contido. De fato, é na teoria do continente e do contido que aparece de forma mais clara a interação entre projeção e introjeção na identificação projetiva.
Fato digno de nota é o seguinte: há casos de identificação projetiva nos quais os aspectos introjetivos são mais acentuados do que os projetivos. Penso ter sido isso que permitiu a Ronald Britton fazer sua importante distinção entre identificação projetiva aquisitiva e atributiva. Em cada uma delas pre- valece, dependendo do caso, aspectos introjetivos (aquisitiva) ou projetivos (atributiva). Britton diz que na identificação projetiva aquisitiva “a identidade ou os atributos de outra pessoa são apropriados pelo self ” (1998/2003, p. 20). O conceito de projeção não dá conta de explicar essa apropriação pelo self. É preciso inferir aí a existência de processos introjetivos operando em conjunto.
No livro The new dictionary of Kleinian thought, Spillius et al. dão ao conceito de identificação projetiva esta definição:
Identificação projetiva é uma fantasia inconsciente na qual aspectos do self ou de um objeto interno são cindidos e então atribuídos a um objeto externo. Os aspec- tos projetados podem ser sentidos pelo projetor como bons ou maus. Fantasias projetivas podem ou não ser acompanhadas por um comportamento inconsciente que tenha a intenção de induzir o recipiente da projeção a sentir e agir de acordo com aquilo que nele foi projetado. Fantasias de identificação projetiva são às vezes sentidas como tendo propriedades “aquisitivas” assim como “atributivas”, ou seja, a fantasia envolve não apenas se livrar de partes do mundo interno do projetor, mas também entrar na mente do outro com a finalidade de obter partes desejadas de seu mundo interno. Nesses casos fantasias projetivas e introjetivas operam em conjunto. Entre os kleinianos britânicos existe um consenso tácito de que projeção e identificação projetiva significam a mesma coisa, sendo a identificação projetiva um enriquecimen- to ou extensão do conceito freudiano de projeção. (2011, p. 126, grifo nosso)
No fragmento citado, os autores fazem algumas afirmativas sobre o sig- nificado do conceito de identificação projetiva. Duas delas são as seguintes: 1) na identificação projetiva podem estar presentes aspectos projetivos e intro- jetivos; 2) projeção e identificação projetiva significam a mesma coisa para os kleinianos britânicos. Mas podem essas duas afirmações coexistir? Penso que não. Ou o conceito de identificação projetiva contém – ou pode conter, em alguns casos – aspectos introjetivos, ou ele significa o mesmo que projeção, uma vez que no conceito de projeção não está incluído o de introjeção.
Segundo Ferenczi, que foi quem sugeriu o termo introjeção, este é um processo diametralmente oposto ao de projeção. Quando propõe o conceito, Ferenczi diz: “Proponho que se chame introjeção a esse processo inverso da projeção” (1909/2011, p. 95).
Segundo Spillius et al. (2011), a maioria dos analistas americanos, com exceção explícita de Grotstein, acredita haver diferença entre projeção e iden- tificação projetiva, ou seja, divergem dos analistas britânicos. Para eles, na projeção o indivíduo perde o contato com o objeto, e na identificação projetiva esse contato é mantido.
Um aspecto que tem sido muito discutido na literatura americana é a suposta di- ferença entre os termos projeção e identificação projetiva. Grotstein é o único ana- lista americano que segue a visão dos kleinianos britânicos de que não há utilida- de em diferenciar esses dois conceitos. Quase todos os outros autores americanos acreditam que na projeção o projetor perde o contato com aquilo que projetou no outro, enquanto na identificação projetiva o contato é mantido. (Spillius et al., 2011, p. 141)
Concordo com os analistas americanos, e penso que a distinção que estou fazendo aqui oferece uma explicação para a diferença que eles atribuem a esses conceitos. Ou seja, acredito que na identificação projetiva o contato é mantido por meio da introjeção, o que torna a identificação projetiva um ciclo de projeção e introjeção.
Encerro esta parte de minhas considerações com uma citação de Ogden. É verdade que, nessa passagem, o próprio autor não dá o passo final para fazer a diferenciação que estou propondo, embora ela esteja toda ali.
Projeção e identificação projetiva deveriam ser vistas como os dois extremos de um mesmo gradiente, no qual existe um aumento no predomínio da interação entre os processos projetivos e introjetivos conforme nos movimentamos em dire- ção ao extremo do gradiente representado pela identificação projetiva. (1979/2012, pp. 296-297)
Sobre a afirmação de que na identificação projetiva há confusão entre sujeito e objeto, levando a uma dificuldade na simbolização
Há casos, ou atividades mentais, em que, no ato de descrevê-los, estamos acostumados a utilizar o conceito de projeção, mas não o de identificação proje- tiva, o que serve, penso, como exemplo para a diferenciação que estou fazendo.
Recordo-me de um paciente de 7 anos que desenhou um garoto (que evidentemente simbolizava ele mesmo) e um tubarão velho e maligno, cujos dentes ameaçadores estavam prestes a abocanhá-lo. Depois, colocou o desenho de lado e começou a brincar com outras coisas, não dando nenhuma atenção a ele. No fim da consulta, guardou o desenho e se esqueceu dele. O medo do pai (e do analista) foi projetado no desenho. O desenho é um símbolo desse medo. O tubarão simboliza o pai e o analista. Nenhuma relação foi mantida com o desenho. Praticamente nunca, ou nunca, utilizamos o termo identificação projetiva em uma situação dessas.
Lembremos o que Klein disse quando estava descrevendo o conceito de identificação projetiva: “Na medida em que a mãe passa a conter as partes más do self, ela não é sentida como um indivíduo separado, e sim como sendo o self mau”. E acrescenta: “Sugiro o termo ‘identificação projetiva’ para esses processos. Quando a projeção é derivada principalmente do impulso do bebê de danificar ou controlar a mãe, ele a sente como um perseguidor” (1946/1991a, p. 27, grifos nossos).
Klein está dizendo que há uma confusão entre sujeito e objeto na iden- tificação projetiva, na medida em que a mãe não é sentida como um indivíduo separado. No exemplo apresentado, contudo, não há nenhum indício de que o desenho não seja visto como algo separado do sujeito, e além disso o garoto não passa a senti-lo como persecutório. Acredito que os analistas americanos diriam que o sujeito projetou seus conflitos no desenho, mas não manteve nenhum vínculo com ele, motivo pelo qual o termo utilizado é projeção, e não identificação projetiva.
Suponhamos agora a seguinte possibilidade. O garoto, após ter desenha- do o tubarão feroz, passa a ter pavor do desenho, fugindo dele. O que mudou? Mudou que o tubarão não é mais um símbolo do pai castrador e mau, mas o próprio animal feroz. O símbolo deu lugar à equação simbólica. Segundo Hanna Segal (1991/1993), a equação simbólica é consequência do funcio- namento por identificação projetiva. Ou seja, aquilo que era uma projeção e dava origem a um símbolo se transforma em uma identificação projetiva e dá origem a uma equação simbólica.
Mas a pergunta continua: o que exatamente mudou? A questão é que há agora confusão entre sujeito e objeto e, por conseguinte, entre objeto e símbolo. E é justamente isso o que diz Segal ao ligar a equação simbólica ao funcionamento por identificação projetiva.
No exemplo dado vimos a projeção sendo utilizada na criação de um símbolo (o tubarão). A capacidade de simbolizar (objetivo de toda análise) exige que a relação triangular esteja estabelecida, ou seja, que sujeito e objeto estejam separados, o que só é possível se projeção e introjeção estiverem operando com suficiente equilíbrio (Bion, 1955/1991b). É exatamente essa capacidade que se perde quando a identificação projetiva entra em ação, e é por isso que, a meu ver, projeção e identificação projetiva não podem significar a mesma coisa: a primei- ra leva ao simbolismo, enquanto a segunda o anula (ou no mínimo compromete a capacidade de gerar símbolos). Gostaria de reforçar esse raciocínio a partir da obra de Bion.
Para Bion, a diferença entre a personalidade psicótica e a não psicótica consiste no seguinte: “Depende de uma cisão, em fragmentos mínimos, de toda aquela parte da personalidade relacionada à percepção da realidade interna e externa, e da expulsão desses fragmentos, de modo que eles ou entram em seus objetos ou os engolfam” (1955/1991b, p. 69).
O conceito de identificação projetiva aparece implícito nessa passagem, pois a diferença entre a personalidade psicótica e a não psicótica está ligada à cisão e à projeção de aspectos internos para dentro do objeto. Tanto isso é verdade que, na página seguinte, encontramos esta passagem: “Primeiro, a cisão de sua personalidade e a projeção dos fragmentos para dentro do analis- ta (isto é, identificação projetiva) tornam-se hiperativas, com os consequentes estados confusionais, tais como descritos por Rosenfeld” (p. 70).
Segundo Bion, aquilo que é expulso com a utilização da identificação projetiva são as partes relacionadas à percepção da realidade interna e externa. O próprio autor liga essa percepção, assim como o pensamento verbal, à posição depressiva. Para ele, o psicótico cinde a parte de sua personalidade re- lacionada à percepção da realidade (parte que envolve a tomada de consciência de impressões sensoriais, a percepção, a atenção, a memória e o pensamento) e projeta os fragmentos resultantes para dentro dos objetos. Essas partículas expelidas levam uma vida independente, seja contendo os objetos externos, seja sendo contidas por eles. Portanto, como consequência da identificação projetiva, há uma fusão entre as partes projetadas e os objetos. Segundo Bion, “cada partícula é sentida como consistindo num objeto real que está encapsu- lado num pedaço de personalidade que o engolfou” (p. 73).
O objeto engolfado controla o pedaço de personalidade que o engolfa. Isso tem como consequência que o fragmento de personalidade se torna uma coisa. Se levarmos em conta que essas partículas de personalidade seriam uti- lizadas para formar palavras, essa fusão do pedaço de personalidade com o objeto contido leva o indivíduo a sentir que as palavras são as próprias coisas que designam. Bion diz que isso aumenta os estados de confusão que surgem pelo fato de o indivíduo equacionar em vez de simbolizar.
Portanto, segundo Bion, a expulsão de fragmentos da personalidade para dentro do objeto (a identificação projetiva) leva a estados de confusão entre sujeito e objeto, com consequências para a capacidade de simbolizar.
Já a projeção, como indiquei antes, está ligada justamente à capacidade de simbolizar e à relação triangular, ou seja, à posição depressiva. A diferença que estou sugerindo entre projeção e identificação projetiva, enfatizando que na última há um desequilíbrio entre projeção e introjeção, também aparece nesta passagem de Bion:
O material de que se forma o pensamento na parte não psicótica, através de intro- jeção e projeção balanceadas, não está disponível à parte psicótica da personalidade, pois a substituição de projeção e introjeção por identificação projetiva deixa o psicóti- co apenas com os objetos bizarros que descrevi. (pp. 74-75, grifo nosso)
Essas ideias de Bion sintetizam muito bem o que venho dizendo. Chamo a atenção para o termo balanceadas, pois aqui Bion resume perfeitamente meu pensamento, ou seja, na parte neurótica da personalidade projeção e introje- ção estão em equilíbrio, o qual se perde quando a identificação projetiva entra em campo.
O leitor perceberá que este artigo pode ser resumido em duas passagens: na citação de Ogden no final do item “Sobre a afirmação de que projeção e in- trojeção estão presentes na identificação projetiva” e na última citação de Bion.
Vinheta clínica
Um paciente – que a partir de agora chamarei de J – com forte funcio- namento psicótico chega para uma de suas consultas semanais apresentando uma fortíssima crise de ansiedade. Ele tinha uma dificuldade muito profunda de lidar com rupturas de qualquer natureza.
J (que não usava o divã) senta-se na beirada da poltrona, como se dis- sesse: “Estou aqui pronto para ir embora”. Ele já estava chorando na sala de espera, mas agora, dentro da sala de análise, seu choro aumenta. Seu corpo treme e aparenta desespero. Diz repetidas vezes que está entrando em colapso, que sente que aquilo que está acontecendo com ele é insuportável. A essa altura, estou começando a ficar muito preocupado.
J me conta então que seu cachorro de estimação, que tinha nome de gente, havia morrido (o cachorro era, de fato, uma espécie de porto seguro, no qual se apoiava com frequência e intensidade) e que seus pais estavam se separando (isso era uma novidade). Disse que não conseguiria ter forças para continuar vivendo. Esses acontecimentos teriam vindo com a finalidade de ajudá-lo a resolver morrer de uma vez por todas.
Eu permaneço em silêncio e vejo que a ansiedade do paciente aumenta. Ele chora mais, treme mais, se desespera mais. Eu continuo em silêncio, pois ainda não sei o que dizer. Fico pensando no que fazer e já estou também um pouco desesperado.
O que aconteceu até esse momento, a meu ver, foi o seguinte: o paciente, via identificação projetiva, projeta para dentro de mim seu desespero e seu medo de se matar. Eu fico inerte e na verdade estou me desesperando junto com ele (eu acreditava que o risco de morte era real). Minha ausência de res- posta facilita que ele me transforme em um objeto externo de sua fantasia (Strachey, 1934), ou seja, ele está me vendo (me introjetando, o que completa o ciclo da identificação projetiva) de acordo com aquilo que em mim projetou, isto é, também como alguém incapaz de suportar seu estado ou de fazer algo em relação a ele – acredito que foi devido a isso que seu desespero aumentou. Nesse momento, a relação triangular está comprometida, e J me vê como uma extensão dele próprio. Sua capacidade de simbolizar está bastante afetada; a minha está um pouco afetada.
Ainda tentando pensar no que dizer ao paciente, imagino que estou levando-o ao meu escritório; que o faço sentar e digo que vou ligar para seu psiquiatra e solicitar que o atenda ainda naquele dia e o medique para conter sua enorme crise de ansiedade; e que depois disso nós conversaríamos sobre os tristes acontecimentos recentes.
J começa a chorar de boca aberta, e sua perna treme ainda mais, de forma que me lembro de um bebezinho. Dou-me conta de que minha ima- ginação mostrava o caminho que meu estado emocional estava começando a seguir (e isso ainda que eu não o enviasse diretamente ao médico), ou seja, o caminho de funcionar como uma mãe que, diante do desespero do filho, em vez de tentar suportar esse estado e tranquilizá-lo, deixa-o chorando e vai ligar para o médico, pois se desespera também.
Durante esse tempo eu permaneço inerte, o que continua colaboran- do para que J me introjete do forma distorcida, como um objeto externo que não suporta seu estado mental. O desespero dele chega ao limite, e ele grita: “Você não vai fazer nada?”. Nesse momento eu tenho um insight: percebo que meu papel ali era não me desesperar e que eu estava me esforçando para que isso não acontecesse. Respondo: “Eu estou fazendo”. Muito irritado ele per- gunta: “O que é que você está fazendo?”. E eu respondo: “Estou me esforçando para não me desesperar junto com você”.
A resposta é imediata. O choro diminui, a trepidação da perna também. J se afunda na poltrona, visivelmente aliviado. Agora, eu sou eu, e ele é ele. Estamos separados. Ele está desesperado, e eu não.
Não vou me estender no relato da consulta, pois o que narrei é suficiente para exemplificar o que quero dizer quando afirmo que projeção e introje- ção estão presentes na identificação projetiva, e que a identificação projetiva conduz a uma confusão entre sujeito e objeto. É claro que essa situação levou tempo para passar e teve seus altos e baixos, incluindo um retorno ao psiquia- tra, mas o paciente deixou a consulta suficientemente melhor, e o retorno ao psiquiatra não foi fruto de uma atuação minha.
Minha frase alterou o ciclo da identificação projetiva. Eu deixei de ser o objeto externo da fantasia e de ser introjetado de acordo com aquilo que ele havia projetado em mim. Penso que minha fala equivale à segunda fase da interpretação mutativa de Strachey (1934). A introjeção de um analista que não se desespera com suas projeções quebra a fantasia inconsciente (altera o destino da identificação projetiva, ou melhor, ela própria) do paciente, dando a ele subsídios para respirar mais calmamente. Minha interpretação resgata a relação triangular – pelo menos, parcialmente.
Não estou tentando sugerir que o analista deva suportar tudo, sobre- viver diante de todo e qualquer ataque, já que isso pode, em alguns casos, levar a atitudes masoquistas do analista e a conluios inconscientes. Também não estou sugerindo que a capacidade do analista de não atuar o papel a ele atribuído na identificação projetiva leve sempre a uma melhora do pacien- te, ou que leve sempre a uma melhora de forma agradável. Em alguns casos, aceitar a discrepância entre o analista real e o analista fantasiado pode ser muito doloroso. Em outros, ódio, inveja, competitividade, entre outros fatores, podem levar a recusas radicais do paciente em admitir a discrepância (ou seja, em aceitar a relação triangular), motivo pelo qual nem sempre se deve fazer uma interpretação mutativa. Não é minha intenção neste trabalho abordar esses desdobramentos técnicos.
Penso que é pelo fato de a identificação projetiva ser um ciclo que a postura do analista passa a ser o centro absoluto do manejo clínico dos cha- mados casos-limite, deixando em segundo plano sua capacidade de fazer interpretações simbólicas. A sobrevivência do analista permite conter a iden- tificação projetiva e dar significado a ela. Pode até acontecer, em alguns casos, de não ser necessária nenhuma interpretação, mas apenas a sobrevivência do objeto e sua colocação em um lugar diferente do ocupado por ele na fantasia do paciente. O que se busca, antes de qualquer coisa, é interferir no polo in- trojetivo da identificação projetiva para promover a separação entre sujeito e objeto, ou seja, o restabelecimento da relação triangular. Isso só é possível se considerarmos a identificação projetiva como um ciclo formado por projeção e introjeção.