Trata-se do primeiro volume da trilogia Psicanálise em perspectiva, projeto desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (ufu) e pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp).
No prefácio, Antônio Muniz de Rezende assinala uma importante seme- lhança entre a psicanálise e a universidade: ambas são polissêmicas – a univer- sidade, com seus diferentes institutos e especialidades; a psicanálise, com suas várias acepções teóricas e práticas. Desdobra daí, a partir da ideia de símbolo e de seu significado de “lançar junto”, a possibilidade de viabilizar o diálogo entre as duas instituições. Estabelecer uma forma de dialética entre as duas partes não é tarefa simples, e a busca desse quase impossível se dá por meio de reflexões sobre semelhanças e diferenças entre as duas instituições, projetando-se um constante esforço de exploração das suas várias possibilidades.
Na apresentação geral, a coordenadora do projeto explica que prefere usar o termo diálogo em vez de relação porque se trata da “apreensão das dife- renças entre as lógicas das duas instituições em questão, a acadêmica e a da for- mação psicanalítica” (p. 16). As apresentações das duas seções que compõem o livro foram feitas por João Paravidini e Leda Herrmann. Ele destaca a “tensão entre o imperativo da adequação a um saber ideal de ciência, supostamente válido para todos, e um saber que visa à singularidade inerente ao saber psica- nalítico” (p. 21). Nesse sentido, a escrita dos autores se converte em tentativa de enfrentar esse desafio. Já Leda Herrmann aponta que os interpretantes da prática psicanalítica presentes na universidade são mostrados, nos capítulos da seção, na particularidade do seu exercício. Isso nos leva a reflexões sobre atendimentos psicanalíticos em clínicas-escola em cursos de psicologia.
A seção a começa com o capítulo “Psicanálise e universidade: relacio- namento possível?”. Nele Theodor Lowenkron lembra Freud e faz uma breve historização de sua relação com o meio acadêmico, salientando o significativo papel de Ferenczi. Reafirma a importância do conhecimento psicanalítico na universidade para profissionais da saúde ou das ciências humanas, assinalan- do-o como algo acessível a cada um e que ultrapassa os limites do tratamen- to psicanalítico. Ressalta que, nesse sentido, se diferencia do conhecimento exigido para a formação de psicanalistas.
Em “Psicanálise e universidade: a singularidade frente à universalidade”, Lazslo Antônio de Ávila desenvolve, a partir de um conceito de ciência num sentido amplo, três eixos de considerações sobre a psicanálise, quais sejam: os dilemas epistemológicos, com a impossibilidade de generalização e o atraves- samento do sujeito pelo inconsciente; as questões metodológicas, no sentido de uma particular e distinta forma de ensinar e pensar; e a psicossomática psicanalítica, que tem contribuído de muitas maneiras para a compreensão do adoecimento humano, apoiando-se na ideia de corpo como horizonte defini- tivo para o funcionamento mental.
Em “Constituição do campo de pesquisa em psicanálise na universi- dade: a clínica e o método de investigação”, João Paravidini assinala “a clínica como parâmetro fundamental para dimensionar o que se considera significa- tivo na articulação entre o campo e o modo de estruturação da pesquisa em psicanálise” (p. 56). A partir de Lacan, constata que “a psicanálise tem esse privilégio de ser a única disciplina que tem o desígnio de não renunciar a dar a palavra ao sujeito, de não renunciar àquilo que constitui sua particularidade” (pp. 60-61), a despeito de mostrar sua filiação à ciência moderna. Avalia que, no Brasil, há aproximadamente três décadas a pesquisa em psicanálise encon- trou na universidade um terreno profícuo. Não obstante, considera que ambas mantêm entre si uma relação quase impossível.
Segue-se o texto “Psicanálise na universidade: o ensino e seus impas- ses éticos”, elaborado por um grupo de docentes do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise da Universidade Federal de São João del-Rei. Eles se posicionam acerca da espinhosa e importante questão ética em relação à transmissibilidade. Entendem que o psicanalista na universidade deve pro- duzir conhecimento com base na coerência interna da teoria e com a postura crítica das diferentes áreas do conhecimento. Consideram ainda que a univer- sidade pode contribuir para o questionamento dos laços corporativos que sus- tentam o psicanalista e para a busca da legitimidade de sua autoria. Enfatizam que Freud mostrou, desde o princípio, que contraditoriamente há razão – isto é, sentido – nos sonhos, chistes, lapsos, atos falhos e sintomas, ou seja, em quase tudo o que foi e é até hoje desconsiderado pela universidade. À guisa de conclusão, afirmam que dificilmente a tensão entre universidade e psicanálise se resolverá de maneira dialética.
Oswaldo França Neto, em “A psicanálise e suas incursões universitá- rias”, afirma ser a verdade da psicanálise sempre deslocalizada. Ao contrário do sábio, que se remete ao saber reconhecido, cabe ao analista sustentar que, muitas vezes, manifestações consideradas insanas são a única possibilidade de aproximação da verdade. Compara tal oposição, entre verdade e saber, com a que se observa entre psicanálise e universidade. Faz referência a Bauman, para quem “a academia tende a restringir-se ao simbólico, excluindo o real de seu campo” (p. 103). Nesse sentido, a universidade seria o lugar do conceito e do discurso universal. O real, determinado pela contingência, pelo acaso, por aquilo que transforma o universal, é fundante na construção da psicanálise. O autor considera essencial que essa dimensão da contingência seja veiculada no território universitário para promover um pensamento mais aberto aos sujeitos do inconsciente.
Rogério Lerner, baseando-se em sua experiência como psicanalista, psi- canalisando e acadêmico, apresenta o texto “Psicanálise e universidade: uma questão de tempo”. Inicia suas reflexões assinalando que um marco impor- tante de diferenciação entre as duas se deu com a fundação da Associação Psicanalítica Internacional (ipa) em 1910. Afirma que, a partir dessa data, a formação do analista nas instituições voltadas a esse fim passou a focalizar cada vez mais a construção da identidade do aluno, considerando também seus aspectos pessoais, enquanto a universidade tem como foco o âmbito público. Atualmente, vive-se nesse ambiente a pressão por formar pesquisadores no tempo mais curto possível, avaliando-se a produtividade de maneira quanti- tativa. Em comparação, as exigências temporais nas instituições psicanalíticas são mínimas: não há avaliação por período de tempo, nem jubilamento por decurso de prazo. Levando em conta essa diferença, o autor conclui que “a for- mação psicanalítica na universidade é impossível” (p. 114). Contudo, a seu ver, isso não significa que não existam conexões possíveis entre os dois âmbitos. Diz que a exploração das oportunidades de colaboração entre psicanálise e universidade é um campo aberto à criatividade.
A seção b, que trata dos interpretantes da prática psicanalítica na uni- versidade, inicia-se com o capítulo “A transmissão-ensino da psicanálise nos cursos de psicologia: um movimento investigativo”. Maria Lucia Castilho Romera se baseia numa pesquisa realizada em seu doutoramento, em que analisou como, no Triângulo Mineiro, a psicanálise se configurou inserida num universo de descontinuidade socializatória, pelo êxodo rural e através do curso de psicologia da ufu. Aponta o caráter técnico-profissionalizante desve- lado no início desse processo e a necessária busca da dimensão metodológica da psicanálise, na direção do que Fabio Herrmann define como “o horizonte de sua vocação: tornar-se uma ciência geral da psique” (p. 126). Circunscreve o método psicanalítico enquanto postura interrogante-interpretante, procu- rando ilustrar sua condição de transmissibilidade possível na prática docente.
Os autores do capítulo “A experiência criadora desde a universidade: diálogos disruptivos entre a psicanálise, a arte e a docência” oferecem contri- buições importantes acerca do estatuto da fantasia, que facilita experiências de criação e enriquece as subjetividades. Problematizam a transmissão da psica- nálise e de sua particular forma de ser ciência na universidade, onde se busca a universalização do saber ideal. Concluem que “a universidade inscreve-se como campo sublime, que potencializa a experiência criadora e que a psicaná- lise alicerça num movimento genuíno” (p. 157).
No capítulo seguinte, “Psicanálise e universidade: intervenção na pri- meira infância, dinâmica transferencial e transmissão na supervisão clínica”, os autores expõem de forma cuidadosa um trabalho psicanalítico no atendimento de pacientes da primeira infância, quando não há verbalização, mas as forma- ções iniciais do psiquismo já estão em jogo. É este o objetivo das intervenções: observar o sujeito psíquico em constituição, bem como o modo de conheci- mento produzido pelas estruturas não formais, que denominam de relações in- tersubjetivas primordiais. Problematizam a configuração alternativa do setting, em que a função terapêutica foi dividida entre duas analistas: uma que participa ativamente e outra que se comporta como observadora. Assim, a psicanalista “suporta a palavra falada” (p. 172), e a observadora guarda e suporta o espaço de continência do não sentido. As vicissitudes de tal formatação para estar no setting serão elaboradas no trabalho posterior de supervisão em grupo. Como conclusão, enfatizam a importância da intervenção precoce – que proporciona o contato com questões relevantes da formação do sujeito – e de uma técnica que viabilize um trabalho preventivo nos três primeiros anos de vida do bebê. Nessa direção, assinalam também a importância da estruturação de “serviços que se comprometam a atuar nesse campo” (p. 187).
Na sequência, apresenta-se o capítulo “Desencontros e aprendizagens: o estágio em clínica psicanalítica extensa”, em que as autoras partem do seguinte questionamento: “Como efetivar uma prática alicerçada na psicanálise que [leve] em consideração a realidade dos serviços públicos?” (p. 190). Referem-se ao contraste entre a potencialidade do saber psicanalítico na prática clínica e as duras críticas sobre sua extensão para o campo da cultura. Tal percep- ção ficou evidenciada principalmente durante o estágio profissionalizante, intitulado Clínica Psicanalítica Extensa: Intervenções em Situação de Crise, realizado no último ano da formação de psicólogos. Recorrem à teoria dos campos como base para refletir sobre essas questões. Para Fabio Herrmann, seu fundador, a clínica extensa “é uma expansão da psicanálise para todos os contextos humanos … [é] outra apreensão do conhecimento, no qual a informação está em constante estado de tensão para ser re-des-coberta … por intermédio da arte de interpretar” (pp. 193-194). As autoras ilustram essas questões apresentando o caso clínico de um adolescente de 14 anos. Refletem a partir de uma situação de tensão, em que dois tempos de apreensão tiveram de ser conjugados: o do atendimento do paciente/família propriamente dito e o dos entraves ou descobertas do grupo em supervisão.
Quanto à questão da pertinência dos constructos psicanalíticos em uma instituição pública, pode-se observar a potencialidade da psicanálise em qual- quer lugar e em seu próprio território, através da capacidade de abalar toda circunscrição padronizada, procurando se recriar conforme as particularida- des de cada paciente e levantando também na analista, na supervisora e na equipe angústias, incertezas e frustrações do não saber.
No último capítulo, “Uma modalidade de configuração da clínica-esco- la”, a partir de uma retrospectiva histórica dos cursos de psicologia no Brasil e dos seus serviços de psicologia aplicada, as autoras relatam mudanças ocor- ridas no serviço do qual faziam parte no período compreendido entre agosto de 2006 e agosto de 2009. Descrevem inicialmente sentimentos de impotência e preocupação ética diante das chamadas filas de espera, que chegavam ao número de 400 pessoas em virtude de condições inoperantes de atendimento. Constatam que, da totalidade de solicitações de atendimento, somente 25% eram efetivadas.
Nessa situação, o pedido de atendimento, o tratamento da queixa e a psicoterapia propriamente dita passaram a ser discriminados e encaminhados para alunos-estagiários, favorecendo a articulação do solicitante ao serviço, mudanças que reduziram drasticamente a espera por atendimento. Alterações particulares na forma de supervisão e de operacionalização do serviço foram fundamentais para delinear outra condição ao atendimento. Assim, pode-se fazer da clínica um lugar propício à problematização da estabilidade dos con- ceitos, permitindo a pesquisa e a formação dos profissionais.
Psicanálise em perspectiva: marcas e traços na universidade apresenta um olhar panorâmico, sob diferentes pontos de vista teóricos e clínicos, da controversa relação entre psicanálise e universidade. Inaugura uma série de três livros, que procuram transcrever experiências de entrelace de instituições psicanalíticas e universitárias que trabalham com o desenvolvimento da pes- quisa e do ensino em psicanálise, com nascedouro na clínica, em toda a sua extensão. Um esforço efetivo do projeto de parceria concebido pela ufu em associação com a sbpsp.