A primeira associação que fiz ao ler este livro, em suas várias seções, foi com uma afirmação de Italo Calvino em As cidades invisíveis, quando ele diz algo assim: “Para ver os telhados de uma cidade, há que dela se afastar, para de longe a contemplar”. E assim vamos sendo introduzidos no contemplar a psicanálise e vê-la em perspectiva. Ou seja, sob diferentes e novos ângulos, podendo divisar seus “telhados” e a distribuição de ruas em sua “cidade” – em seu conteúdo e ação clínica.
Podemos dizer que a utilidade e a compreensão deste livro são de grande valor, tanto para os que há muito transitam na psicanálise como para aqueles que iniciam um caminho nela. Isso porque todos os capítulos estão bem sustentados teoricamente, e abrem nossos olhos para o muito que ela já faz e ainda tem por fazer, em seus diferentes âmbitos, dada a amplitude de seu universo particular de conhecimento e dos desafios de sua clínica.
Vejamos as três seções que compõem o livro:
– Psicanálise: método, transmissão e escrita
– Reflexões sobre a clínica e suas extensões
– Reflexões sobre textos freudianos: cotidiano do psicanalista
Em alguma medida, todas as seções abordam a psicanálise, consideran- do como ela se estabeleceu e se firmou como teoria. Assim vista e sistematiza- da, ressalta-se o quanto ela pôde e pode estender seu campo de atuação clínica e prática, sempre cuidando para que teoria e clínica se entrelacem.
Vamos dar uma passada d’olhos por cada uma das seções, em seus vários capítulos.
Psicanálise: método, transmissão e escrita
A proximidade da psicanálise com as artes, principalmente com a lite- ratura, remonta a Freud. Há que sempre voltar e reatualizar a própria proposta de pensar e tratar o homem, em sua cultura e por sua história, tendo como ponto de referência o método psicanalítico interpretativo, que definiu uma posição epistemológica diferente daquela das ciências duras, e que encontrou um específico e peculiar ramo dentro das ciências humanas. É nesse contexto que realidades e ficções passam a ter importante papel em nossa prática clínica e teórica. Assim, destaca-se a especificidade de nossa ciência psicanalítica em sua invenção e iniciação freudiana: ao constituir-se na simultaneidade de in- vestigação e cura, transforma-nos em produtores de conhecimento psicanalí- tico com cada paciente e em cada momento de nossa ação interpretativa.
Como despertar a salutar atitude crítica no que quer que seja? A atitude crítica em relação à psicanálise não é para destruí-la, mas para ressaltar a sua potência, alargando a reflexão que se pode realizar por meio dela. O diálogo da psicanálise é feito tanto com a filosofia quanto com a literatura e a arte. Em um dos artigos do livro, o autor propõe “a tese que afirma a correspondência entre o paciente [clínica psicanalítica] e a obra de arte” (p. 37). Vejamos: para a apreciação de uma obra de arte, há que olhar e ouvir pacientemente, espe- rando que ela nos fale sobre si mesma. É a psicanálise implicada: maneira de trabalhar que considera a relação intrínseca entre a singularidade da obra e o intérprete-psicanalista-espectador, e que vê a obra como matéria de reflexão, pois mobiliza o sujeito transferencialmente e dele pede uma atitude criativa para ter experiência da obra.
O analista é também o terceiro, a testemunha: não vai embora, perma- nece e toma em consideração o paciente. Por manter-se nesse lugar, com sua presença e suporte, permite que a história da qual não participou possa ser narrada. A natureza do objeto de sua escuta/escrita são restos, fragmentos de uma história, memórias traumáticas, fixações, narrativas em migalhas.
Freud sempre diferenciou, valorizou e integrou os ensinamentos nascidos na academia e na vivência da psicanálise propriamente dita. O final dessa seção possibilita o vislumbre da vivência universitária (tese) aliada ao atendimento clínico. Assim, da clínica à pesquisa, vamos abrindo frente de novas descobertas e criações teóricas – horizonte em porvir nas diferentes perspectivas.
Reflexões sobre a clínica e suas extensões
Aqui vamos contemplar intervenções psicanalíticas em clínica-escola, hospital geral, abrigo de crianças, e sempre em equipe interdisciplinar. E também contemplar considerações teóricas sobre intervenções psicopedagógicas e psi- cossociais. Ou seja, vamos manter contato com a clínica extensa: “A psicanálise continuará a existir enquanto puder ser reinventada dentro dela mesma” (p. 63).
Vejamos algumas conclusões e ponderações para pensarmos a clínica psicanalítica atual. Os elementos sócio-histórico-culturais, o imediatismo e a aceleração, apresentados como aspectos da cultura, são atributos que apontam para modos de funcionamento psíquico singulares, o que implica lidar com transformações na maneira de operar nas funções parentais, e ainda com novas patologias e novos modos de regência do gozo. Numa perspectiva dialética, esses modos de funcionamento psíquico trazem o peso das transformações culturais, e também são carregados por elas, pois cada época produz seus pró- prios sintomas, reflexo da conjuntura social, econômica, relacional e familiar.
Na sequência, a clínica ampliada pode ser vislumbrada nas práticas do cuidado clínico-hospitalar, no campo psicológico, fora do espaço já histórico epistemologicamente estabelecido desde o consultório clássico. São práticas não totalmente “protegidas” por um conhecimento clínico-teórico consolida- do. É importante considerar que, na atualidade, é frequente o transtorno de estresse pós-traumático (tept). Muitas vezes, o acidente ou trauma represen- ta um antes e um depois na vida do paciente, provocando crise existencial, grande aflição psíquica e desesperança. É então que o trauma físico se junta ao sofrimento psíquico, estabelecendo uma atualização de traumas psíquicos. Daí se abrir a possibilidade da escuta psicanalítica. A psicanálise realiza uma passagem da lógica da anatomia para a da representação psíquica.
Desde Winnicott, se a ação ambiental saudável favorece o desenvol- vimento de potencialidades para a saúde, é fundamental cuidar das cuida- doras para que ofereçam um cuidado suficientemente bom aos que estão na instituição. E, “porque o viver e a vida do paciente assumem o comando” (p. 128), cuidar das cuidadoras é uma forma de dar continuidade ao processo de amadurecimento emocional, que é o desenvolvimento das potencialidades herdadas. É necessário avançar para além do consultório, intervenção diferen- ciada em um enquadre diferenciado, ou os “analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião” (p. 129).
E chegamos a mais uma reflexão. Muitas vezes, o diagnóstico, como o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (tdah), passa a ser um rótulo que marca o destino do sujeito, funcionando como uma “profecia au- torrealizadora”, tornando-se um caminho sem volta, com danos que podem perdurar pela vida toda. Teoricamente, isso vai levar ao que chamamos de ganho secundário da doença ou da exceção (Freud), quando a pessoa se fixa nesse lugar ao obter privilégios por ser e estar doente. O trabalho psicope- dagógico não deve focalizar o sintoma nem a transmissão de conhecimento, e sim buscar despertar o desejo de aprender e conhecer o novo. Só assim o sujeito poderá tentar resolver a situação desafiante com interesse e autonomia, confiante de que está junto a alguém que não vai lhe dar respostas, e sim ajudar a encontrar caminhos que não sejam a repetição do destino.
Para que um novo conjunto evolutivo seja apropriado às necessidades atuais de qualquer um de nós, os elementos funcionais prévios devem ser re- alinhados de modo a compor um mosaico mais complexo. No entanto, muitas vezes eles não estão disponíveis, em virtude da ocorrência de traumas psíqui- cos sucessivos, ou se mostram insuficientes, quantitativa e qualitativamente, devido a sérios problemas nas etapas iniciais do desenvolvimento. Assim, a reorganização não se adéqua às necessidades do momento e se inicia um mo- vimento contraevolutivo de desorganização. Essa desorganização progressiva é capaz de afetar o processo saúde-doença, ao instalar um círculo vicioso poten- cialmente letal. É um fenômeno relevante no âmbito do modelo conceitual da escola psicossomática, mas ainda não foi plenamente integrado ao arcabouço teórico de outras vertentes psicanalíticas.
Vislumbrando mais uma vez o mal-estar na atualidade, o livro nos remete aos anos 1980 e 1990. Neles, a globalização e a revolução tecnológica comprimiram a noção de espaço e tempo, e deram ensejo à lógica da brevida- de, criando a sensação de simultaneidade e imediatez, que por sua vez instalou a lógica da urgência e de um presentismo exacerbado. Isso afetou os modos de subjetivação, implementando a precariedade e a transitoriedade dos vínculos. Assim, há articulação entre os processos de subjetivação da atualidade e a sin- tomatologia da depressão essencial, que costuma vir associada ao pensamento operatório, um tipo de dinâmica mental que se desdobra em um marcante apagamento de toda expressividade emocional, por estar orientada excessiva- mente à realidade externa e a um apego demasiado à materialidade dos fatos. Isso leva a vínculos pouco significativos, dada a suposta carência funcional do psiquismo. Em pessoas assim, um afluxo contínuo de excitações causa um impacto que desorganiza as funções psíquicas, e seus sintomas são diferentes dos outros quadros depressivos.
Chegamos ao fim dessa seção vendo a articulação da sétima arte com a psicanálise. A partir do enredo de um filme, podemos pensar facetas da subje- tividade, e também estudar os pressupostos antropológicos do chamado mundo administrado, com seus desdobramentos na sociedade contemporânea e em suas relações com os “traumas” da existência individual. As vivências mutila- das dos sujeitos, calcadas no prazer sadomasoquista e fetichista com os demais e com os objetos culturais, ilustram as regressões psíquicas, expressões subjeti- vas do sofrimento psíquico, provenientes das condições objetivas atuais, numa sociedade com tendências totalitárias.
Reflexões sobre textos freudianos: cotidiano do psicanalista
Aqui vemos como sempre é possível pensar além do que já está escrito e ampliá-lo, sem deixar de ser fiel ao original. As cidades invisíveis parecem poder ser inventadas e criadas em novos pontos de vista.
Não se trata de analisar ou criticar conceitos, mas de apontá-los como perspectivas para outros contextos. A abertura dessa seção opera numa pers- pectiva filosófica em torno do caso clínico do Homem dos Lobos. Nele temos os pressupostos de intertextualidade e simultaneidade: o antigo e o contempo- râneo, nem filiação nem imitação, mas uma transitoriedade que dá ao texto o estatuto de poiesis.
Um dos capítulos aborda a relação entre Freud e a religião. Mesmo sendo declaradamente ateu, Freud sempre se interessou pela problemática religiosa. Os autores fazem uma leitura extensa e criativa dos textos Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e Moisés e o monoteísmo.
Por fim, o capítulo “Onde está Katharina?” retoma um texto escrito em 1895, o único registro clínico de Freud de um atendimento curto, de uma única sessão. As autoras fizeram um levantamento bibliográfico dos estudos sobre esse caso clínico, e isso confirmou o quanto eram considerações e reflexões raras nos tempos atuais, a despeito de terem características tão contemporâne- as. Esse levantamento ajuda a pensar questões sobre o setting, as dificuldades da clínica psicanalítica e a aplicação da psicanálise em instituições. Isto é, a pensar a clínica extensa: a operatividade do método psicanalítico para além da clínica padrão, muitas vezes engessada pela padronização do setting. Ou seja, a teoria deve estar decantada no analista, possibilitando uma escuta receptiva, que é quando um novo conhecimento pode acontecer. O fazer clínico de Freud não era mera aplicação de uma teoria.
Da mesma forma que podemos à distância contemplar uma cidade, que assim tenhamos contemplado a psicanálise, vendo-a em perspectiva, sob di- ferentes e novos ângulos, podendo divisar seus “telhados” e a distribuição de ruas em sua “cidade”, em sua conformação clínico-teórico-metodológica em constante movimento.