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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.2 São Paulo  2022  Epub 19-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n2.17 

Resenhas

A psicanálise do vir a ser

Alexandre Patricio de Almeida1 

Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp). Doutorando pelo mesmo programa e instituição. Pesquisador bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Castelo Filho, Claudio. A psicanálise do vir a ser. Editora: Blucher, 2020. 304p.


E nessa volta para Idalina compreendi também que tão belo e tão impossível como aquele outro sonho é o de tentar salvar-se a si mesmo. E se é tão impossível, por que então me encaminhar para esta nova cidadela que seria agora uma pobre mulher perturbada? Não sei. Talvez porque é necessário salvar alguma coisa. Talvez pela consciência tardia de que nós somos a única presença que não nos deixará até a morte. E é por isso que nós amamos e nos buscamos a nós mesmos. E porque, enquanto existirmos, existirá o mundo e existirá a humanidade.

CLARICE LISPECTOR

Há livros que têm uma espécie de poder curativo sobre nós, ou seja, ao passo que realizamos sua leitura, somos tomados por insights que interferem diretamente em nossa própria subjetividade, suscitando indagações profundas, que estremecem os alicerces de nossas (supostas) verdades.

Foi exatamente essa sensação que me acometeu ao ler A psicanálise do vir a ser, de Claudio Castelo Filho.

A obra, a meu ver, representa uma viagem teórica, clínica, social, cultural e, principalmente, artística, que percorre com maestria os territórios demarcados pelo pensamento de alguns dos autores mais importantes da psicanálise, como Freud, Klein e, em especial, Bion – psicanalista que desempenha papel central na edificação das ideias apresentadas no livro.

Não se trata, porém, de qualquer viagem. Refiro-me a uma experiência sensorial enriquecedora, leve, sem roteiros rígidos e previamente antecipados – até porque o livro não precisa ser lido, necessariamente, na ordem em que estão dispostos os capítulos.

Somos convidados a embarcar, portanto, em uma expedição que nos permite parar e registrar os momentos mais significativos, destacando recortes aqui e acolá, tal como fazemos com os pontos turísticos dos locais que nos encantam. Vale lembrar que nunca saímos a mesma pessoa após passarmos por uma viagem. Arrisco dizer o mesmo a respeito dos textos que compõem a obra de Claudio.

Começamos a nossa turnê, então, com o autor respondendo a uma pergunta fundamental para todos os que se interessam pela psicanálise: “Para que, afinal, ela serve?”. De modo sintético e preciso – traço presente em todo o livro, diga-se de passagem –, o autor afirma que a psicanálise serve “basicamente para apresentar uma pessoa a ela mesma” (p. 21), definição excepcionalmente simples, mas paradoxalmente profunda, que acabei adotando como slogan, citando-a com frequência na maioria dos meus seminários clínicos e teóricos. O mais lindo dessa expressão reside, contudo, na consideração à alteridade, às diferenças, que nos põem numa condição individual e única. “Respeitando suas próprias características [o indivíduo que se submete a uma análise] poderá tirar partido de sua real natureza, desenvolvendo-se a partir dos recursos de que realmente dispõe” (p. 21, grifo meu).

Reside aí, talvez, a maior riqueza da nossa prática: sem tirar nem pôr qualquer coisa, ela simplesmente desvela o que há de mais secreto no interior do analisando, ainda que ele próprio o desconheça. Durante um tratamento analítico, assistimos a um processo que desabrocha diante de nossos olhos, caso tenhamos competência para sustentar o nosso próprio não saber, evidentemente. “Porque dar conselhos é de novo falar de si”, já nos assegurava Clarice Lispector (2020, p. 21).

De forma bastante condensada e coerente, Claudio consegue traduzir uma teoria tão complexa como a de Wilfred R. Bion em um vocabulário simples, sem perder a consistência e o rigor técnico. No capítulo “A condição para se observar e o que observar em psicanálise”, o autor brinca com o jargão bastante empregado hoje nas redes sociais: expectativa versus realidade – embora não o utilize literalmente. Claudio nos ensina que a “angústia de estar diante do novo e desconhecido é um dos fatores que pode levar o analista a se precipitar e procurar socorro em memórias de situações anteriores” (p. 36). Nesse sentido, ao analista sempre compete observar e lidar com o incógnito, e essa observação necessita ser afastada de “apreciações e julgamentos de ordem moral e valorativa” (p. 39).

Desse capítulo em diante, somos contemplados pela generosidade de Claudio, que não hesita em compartilhar recortes de sua clínica, tornando a nossa viagem ainda mais atraente, viva, colorida e real.

O autor também toca – em diversas partes do livro – numa das feridas narcísicas que mais produzem incômodo no meio psicanalítico contemporâneo: a necessidade de o analista estar em dia com a sua análise pessoal.

Nos tempos atuais, em que testemunhamos uma crescente proliferação de cursos de formação psicanalítica de qualidade duvidosa (ainda mais com a oferta de modalidades online e de ensino à distância), nunca é tarde para lembrar que um analista se constrói, fundamentalmente, no divã. Segundo Claudio, “o analista precisa ter um conhecimento profundo das características de sua própria personalidade para evitar que estas interfiram, além do mínimo possível, na apreciação e na configuração dos fatos que ocorrem no seu consultório” (p. 63).

No capítulo 3, escrito em parceria com Renato Trachtenberg, os autores trabalham com a noção bioniana de pensamentos selvagens, uma espécie de pensamentos sem pensador, dotados de uma série de características especiais. Nesse sentido, seria preciso trabalhar com a possibilidade de desenvolver, através do encontro analítico, um equipamento mental capaz de acolher e tolerar esses pensamentos sem dono, para que a mente viesse a suportá-los, transformando-os em um potencial criativo – o que é muito difícil, pois, quase que instintivamente, tentamos domá-los ou esvaziá-los, tornando-os inofensivos, a fim de evitar a turbulência que nos suscitam. Claudio e Renato denunciam que, na maior parte das vezes, conceitos muito engessados tendem a domesticar esses pensamentos, quando na verdade o analista deveria propiciar um espaço aberto para a aparição de novos pensamentos selvagens.

A arte e a reflexão, processos custosos, que abarcam a transformação de elementos beta em elementos alfa e o trabalho de função alfa a ser desempenhado pelo analista, serão alguns dos temas explorados nos capítulos 4 e 5.

O autor é cirúrgico ao dizer que, quando não há condições para formular uma experiência emocional por uma via representacional, seja pelo recurso da construção de um problema, seja por meio de um processo estético (criativo), ocorre o que conhecemos como colapso psíquico, ou “atuações impensadas (descarga de elementos beta por meio de identificações projetivas ou acting outs)” (p. 102). “Arte não é coisa para rico, não é futilidade, é uma necessidade vital e sem a qual não há crescimento” (p. 103) – assim como uma boa educação, eu acrescentaria.

Os capítulos 6, 7 e 8 discutem a clínica propriamente dita. Valendo-se de metáforas riquíssimas, o autor constrói uma trama entrelaçada por intrincadas hipóteses teóricas a respeito da origem e do tratamento do sofrimento psíquico apresentado por alguns de seus pacientes (e, por que não, nossos também). Através de vinhetas, somos levados ao espaço interno (e íntimo) do consultório de Claudio, sentindo na própria pele e na alma os efeitos de uma psicanálise bem-feita.

Respaldando-se em Melanie Klein, o autor afirma que a dor mental e a posição depressiva – capacidade de sentir culpa, apropriar-se dos impulsos destrutivos e desenvolver reparação – precisam ser toleradas “para haver contato com a realidade interna e externa” (p. 144). Como analogia, cita o exemplo de uma população que se sente ameaçada por algum tipo de invasor ou inimigo e escolhe se refugiar em uma cidadela longínqua. Porém, se esse isolamento se estender por muito tempo, as pessoas começarão a morrer de fome e de sede por falta de recursos.

O analisando, portanto, procura o analista com a esperança de encontrar recursos mais desenvolvidos e eficazes para enfrentar os entraves da vida cotidiana, embora seja preciso levar em consideração as estratégias adotadas para uma suposta sobrevivência psíquica, sem forçar o abandono ou “desmontar os equipamentos” (p. 145) de que o indivíduo dispõe.

Os capítulos 9 e 10 promovem uma leitura psicanalítica de obras cinematográficas. Nessa parte do livro, Claudio elabora um olhar minucioso e criativo sobre filmes de Paolo Sorrentino e Luchino Visconti, cineastas e roteiristas italianos, mostrando-nos como a psicanálise costurada à arte pode ser útil inclusive à nossa prática clínica, pois do erudito ao saber popular a cultura se faz presente em nossos consultórios e deve, portanto, ser um ponto de vital interesse para quem pretende exercer o ofício da psicanálise. O autor ressalta que uma formação não se finda em (ou se limita a) autores psicanalíticos e deve, sim, ampliar-se a outras áreas.

No capítulo 11 retornamos ao terreno da clínica e somos agraciados com o recorte de cinco vinhetas. Claudio se vale desse recurso para discutir aspectos que tangenciam a moral e a ética. “Psicanálise não serve para orientar ou encaminhar a vida de alguém” (p. 225), relembra o autor. Logo, liberdade implica poder chegar às próprias conclusões e assumir as consequências das decisões tomadas. A ética, desse modo, desenvolve-se através da elaboração das nossas experiências emocionais. “Na impossibilidade de elaboração e do desenvolvimento de uma ética, uma pessoa que teme atuações desagregadas ou psicóticas recorre à moral, que é externa, vem de fora para dentro” (p. 227).

Sob tal perspectiva, podemos ir além e pensar que, quando não há escolha ou autonomia, a moral impera sobre a ética da singularidade, e o sujeito é brutalmente esmagado pelas pressões externas. O fanatismo pela psicologia baseada em evidências, tão comum na atualidade, pode significar também um produto dessa moralidade perigosamente religiosa, que tende a aniquilar as querelas da humanidade pela via das estatísticas, dos gráficos e de dados puramente quantitativos - essas, obviamente, são algumas provocações que eu levanto a partir das inquietações que a leitura me provocou.

No entanto, o próprio autor nos lembra que “ser livre, contudo, não é necessariamente equivalente a ser contra o establishment” (p. 228). O paciente pode apenas trocar uma moral por outra, na ilusão de que está exercendo a riqueza de sua pessoalidade – aqui, voltamos à missão central do nosso ofício, que é apresentar o sujeito para ele próprio, com todas as suas vicissitudes. “O analista deveria ser útil na tarefa de ajudar o analisando a encontrar seus próprios critérios para que ele possa funcionar conforme eles” (p. 231).

O capítulo 12, escrito novamente em parceria com Renato Trachtenberg, aprofunda ainda mais a discussão sobre moral e ética, desdobrando temas como o complexo de Édipo e a formação do superego. Baseando-se em Bion, os autores trabalham com a hipótese da existência de uma consciência moral primitiva – associada a impulsos morais – que tudo sabe, tudo julga e tudo condena, e que seria anterior ao próprio nascimento. “Algo que equivaleria ao mito do pecado original e que em algumas pessoas teria uma força considerável” (p. 234).

Claudio e Renato fundamentam tal premissa recorrendo a passagens clínicas, com o intuito de ampliar a suposição de um “estado religioso da mente” (p. 234), bastante presente em manifestações psicóticas de âmbito persecutório. Como antídoto para tais estados de sofrimento, os autores nos indicam uma metáfora. Cito-a na íntegra: “É muito diferente não exceder a velocidade no trânsito por temer uma multa de não o fazer por consideração por si mesmo e pelos outros” (p. 249). Na mesma direção podemos pensar que é diferente lidar com a situação edípica por temor à castração ou porque levamos em consideração os objetos amados e o próprio eu. Poderíamos cogitar, assim, uma forma de negociação com esse superego religioso, advinda sobretudo da experiência de vida ou do encontro analítico - uma conversa que viesse a promover o crescimento e o desenvolvimento de uma ética particular, muito embora social.

O capítulo 13 apresenta uma entrevista de Claudio sobre um tema bastante oportuno em tempos tão sombrios: a criança interior. O autor é singelo em suas respostas, mas novamente a sensação de sermos arrebatados por palavras se faz presente em seus escritos. “A criança que mantemos interiormente precisa de um adulto que tenha bom senso e contato com a realidade do mundo externo e que possa suportar os impactos que a vida real nos impõe” (p. 253). Sem romantizar uma expressão que se tornou corriqueira, Claudio nos mostra a necessidade de conservarmos a nossa criança interior, aceitando a frustração e os limites que a vida cotidiana nos fornece. Para tanto, é necessário renunciar àquele sentimento maníaco de onipotência presente em indivíduos profundamente regredidos e imaturos emocionalmente.

Por fim, no capítulo 14, Claudio nos brinda com um ensaio belíssimo sobre a perda de pessoas amadas e significativas. Em um misto de reflexões autobiográficas e teorias psicanalíticas, o autor tece comentários essenciais para pensarmos o luto e a ausência de pessoas queridas.

Embora a morte seja da ordem do indizível e suscite uma dor colossal, quando somos capazes de ativar lembranças de alguém amado que partiu, essa pessoa certamente permanece viva em nosso interior. Valho-me, portanto, da mesma expressão para encerrar a resenha deste livro. Lembrar de suas palavras não apenas o faz conservar-se vivo, mas suscita em nós uma sensação de vida verdadeiramente vivida, conhecimento e liberdade. Um vir a ser contínuo, que finalizo com as palavras de Clarice: “Nada conheço que dê tanto direito a um homem como o fato dele estar vivendo” (Lispector, 2020, p. 21).

Referências

Lispector, C. (2020). Outros escritos. Rocco. [ Links ]

Alexandre Patricio de Almeida alexandrepatriciodealmeida@yahoo.com.br

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