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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.2 São Paulo  2022  Epub 19-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n2.19 

Resenhas

Psicanálise: Bion: Transformações e desdobramentos

Sérgio Seishim Kaio1 

Função didática e fundador do Grupo Psicanalítico de Curitiba (Gpc). Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sbpsp)

1Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Marra, Evelise de Souza; Rezze, Cecil José; Petricciani, Marta. Psicanálise: Bion Transformações e desdobramentos. Editora: Blucher, 2020. 322p.


As auspiciosas visitas de Bion a São Paulo nos anos de 1973,1974 e 1978 marcaram profundamente os seus psicanalistas, com imediatas e duradouras repercussões, dadas as caraterísticas de suas inefáveis contribuições. Sua presença vigorosa e carismática trouxe intensas transformações, cujos desdobramentos não mais tiveram fim, com incontáveis resultados, seja na área científica, seja no âmbito institucional. Desde então, passaram a ser realizados jornadas e encontros nacionais e internacionais, alguns de fim de semana, organizados por Evelise de Souza Marra e colaboradores, com a apresentação de trabalhos produzidos por psicanalistas de São Paulo. Em 2008 aconteceu uma jornada com o tema Psicanálise: Bion: Transformações e Desdobramentos, ocasião em que um grupo de psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo apresentou numerosos e excelentes trabalhos, discutidos no evento. Dada a qualidade dos trabalhos, pensou-se que poderiam ser reunidos em uma publicação, o que ensejou a oportunidade ímpar de constituir um grupo de trabalho dedicado à tarefa imaginada. E assim foi feito, obtendo-se como resultado este livro, uma excelente e estimulante obra, agora em sua segunda edição.

Qual, então, seria a linguagem, o método de comunicação que precisamos empregar quando quisermos descrever, formular ou capturar uma ideia que venha a nosso encontro em nossos sonhos, que nos seja transmitida por alguém, ou apareça em estados de mente inéditos, estejamos acordados ou adormecidos? (Bion, 2016, p. 47)

A psicanálise deve a Bion alguns de seus momentos mais profundos e originais. Estudar a sua obra aporta novos instrumentos para a clínica psicanalítica, tanto para a investigação na sessão quanto fora dela. Bion concebe a mente como um universo em expansão, que a partir da sua condição primitiva evolui, o que pode levar ao crescimento mental ou a distintas formas de cristalização e/ou deterioramento. Considera a psicanálise uma poderosa ideia disruptiva, difícil de ser abarcada e para a qual é necessário gerar um continente.

Percebe-se nos trabalhos do livro que, ao abordar a teoria das transformações de Bion, os autores levam-nos às mudanças que ele introduz, desde o aprender da experiência até o crescimento mental, adentrando em áreas do inacessível da personalidade, como descrito em alguns textos, reformulando a epistemologia psicanalítica clássica. Entendo que os trabalhos contidos no livro ajudam o leitor a pensar de forma diferente aspectos fundamentais da psicanálise fundamentada em Bion, nem que seja por breves momentos de paciência reflexiva. Se de algum modo os autores tiverem sucesso nesse empreendimento, a proposta do livro terá sido atingida.

A abundância na maneira de pensar resumidamente, e de forma geral, envolve a passagem do objeto simples, herança científica do século 19 e do início do século 20, para o objeto complexo, que aborda as relações a partir do princípio de incerteza, que por sua vez está contido na teoria da complexidade.

Quem está mais habituado a ler Bion percebe que o seu estilo se constitui de lampejos deslumbrantes, digressões cansativas e instigantes aforismos. Apoia-se em sentidos contraditórios, e obriga escolher entre interpretações temerárias e interpretações tímidas. Foi criado para afastar as simplificações e desafiar as paráfrases. Perdemo-nos numa série de labirintos escuros em busca de uma saída reveladora, pois o princípio da complexidade abrange todos os demais princípios. Bion estabeleceu laços entre, de um lado, a psicanálise e, do outro, a filosofia, a matemática, a física, a arte e a mística. Diz que na análise como na vida é preciso considerar que tudo é muito mais caótico e complexo do que conseguimos alcançar com o nosso entendimento. Já em Atenção e interpretação, de 1970, afirmava que, quanto mais se conhece sobre psicanálise ou se trabalha efetivamente com psicanálise, mais complexidades é necessário admitir em seu campo.

Na leitura do livro, percebe-se que os autores tomam para si o pensamento de Bion, e assim o expandem. O leitor poderá fazer o mesmo, ao tomar o pensamento dos autores e realizar transformações pessoais que gerem e partejem novos significados, seja para a vida pessoal, seja para a prática psicanalítica. A leitura é instigante e provocativa, favorecendo um estímulo em direção a novas formas de conceber a ciência da mente e sua apreensão pelo psicanalista. Cada autor que contribui realiza uma síntese própria de parcelas significativas da obra de Bion, de tal forma que, embora o livro tenha vários capítulos (18 no total), fica evidente o pano de fundo de um todo que abrange as ideias geniais de Bion, sobretudo invariantes capturadas de sua teoria das transformações. No entanto, é um livro que foi escrito por pensadores críticos da psicanálise, não saturado de bionismo.

O livro oferece ao leitor uma experiência de generosidade, convidandoo a examinar o seu próprio estilo psicanalítico e a desenvolver livres reflexões a respeito. As contribuições são apresentadas dentro do rigor científico de autores familiarizados com a experiência de escrever e produzir trabalhos, disciplinados na busca de uma linguagem exitosa de comunicação, sob o vértice científico, estético, poético, literário ou até mesmo coloquial, para aproximar o leitor daquilo que acontece na construção da experiência com o paciente. Conseguem expressar, muitas vezes de forma simples, conceitos de alto nível de complexidade, rompendo em certos aspectos, de forma respeitosa, com o modelo clássico, a partir de conceitos consistentes, que tornam o texto enriquecedor e fascinante. Um leitor sagaz e interessado em psicanálise encontrará um belo desafio na leitura deste conjunto de textos, em que há amostras significativas da diversidade de abordagem clínica e do rigor da metodologia psicanalítica à luz da teoria das transformações desenvolvida por Bion. O importante e muitas vezes enigmático conceito de transformações é aqui submetido a aplicações e usos de forma atenta e livre por parte dos autores, sem que se reduza em nenhum momento a sua complexidade. Hoje sabemos que nada é apreendido por alguém sem que sofra uma transformação que opera segundo as características da própria realidade psíquica da pessoa em questão. Do mesmo modo, nada é realmente incorporado sem que também seja transformado. Quando aparentemente isso não ocorre, estamos diante de outro fenômeno, ou seja, trata-se de imitação e, como tal, de alucinação. Fica evidente nos trabalhos apresentados o uso da intuição e da criatividade daqueles que os escreveram.

Tal qual a obra de Bion, todo conhecimento humano é uma obra aberta – rebela-se contra qualquer tentativa de apropriação reducionista. Por essa razão, penso que o leitor poderá sair enriquecido da leitura deste livro, em que se destacam valores de fertilidade e autonomia do pensar a prática clínica e o ofício artesanal da psicanálise. Alinha-se de maneira coerente com Bion, que preconizava, invariavelmente, que se esquecesse o que ele tinha escrito a fim de que cada leitor fosse capaz de descobrir por si mesmo o sentido – e que a psicanálise seria o local privilegiado para ler gentes, e não livros.

O livro contém a experiência de analistas na busca do desconhecido desenvolvida com talento e sensibilidade. Mostra a empreitada deles de entrar nas sendas turbulentas da verdade, da dor mental e da experiência emocional, que compartilham com os leitores ao transmitirem as vivências descritas ao longo dos textos. Foram inspirados pelas turbulências vividas no contato com seus analisandos, as quais também abriram caminhos para avanços pessoais. Dessa forma, este não é um livro sobre teoria e técnica, mas sobre gentes, sobre como a psicanálise pode ajudar uma pessoa a vir a ser ela mesma: T → (O). Pode ser lido de diversas maneiras por diferentes tipos de leitores. Subjaz aí a possibilidade de ser um livro que favoreça uma transformação que nos põe em contato com a “realidade”, com a “origem”, com os objetos como “coisas em si”, com o que é chamado de O da experiência. Não se supõe – o que seria contraditório com a doutrina bioniana – que o livro contenha o conhecimento de O. Seria a passagem de um saber sobre para um vir a ser.

A psicanálise deve aproximar-se da vida real, desenvolver o analisando de dentro para fora e expressar a sua singularidade. Bion já dizia que as teorias psicanalíticas só teriam validade se lembrassem a vida real: “O analista deve falar a respeito da vida real. Nenhuma interpretação tem o menor valor, a menos que seja uma reminiscência da vida real” (1975, p. 31). No entanto, é muito difícil fazer isso. Percebe-se o esmero dos colegas contribuintes em suas produções, o cuidado e a disciplina para comunicar tudo isso em uma linguagem compreensível, na busca de uma precisão vocabular. Como afirmava Bion, é como se tivessem que afiar os bisturis numa operação cirúrgica e deixá-los em ordem para cumprirem sua função enquanto o cirurgião está operando. Do mesmo modo, só podemos concluir que os autores exercitam a amolação na busca por aquelas poucas palavras que nos são realmente úteis, e por mantê-las atualizadas e em condições de transmitir o seu significado. Ou seja, escrevendo estariam praticando uma linguagem de êxito, à procura de seu aperfeiçoamento.

De certa forma, ao lermos Bion, deparamo-nos com questões bastante abordadas pelos autores dos textos do livro: como se construiu a convicção de haver ideias verdadeiras e de devermos fazer de tudo para descobri-las? A que corresponde semelhante convicção? Trata-se de um preconceito ou de um saber? A verdade está a serviço de algum interesse institucional? Que conclusão tirar ao vê-la se modificar de uma época para outra? Que não existe de maneira duradoura? Que devemos integrar todos esses elementos parciais num movimento conjunto? No próprio livro, seus variados capítulos não seguem um tipo de sequência ou continuidade temporal nas contribuições apresentadas. Isso se constituiria em obstáculo para seu entendimento? Certamente não, pois sabemos que a história da psicanálise, assim como a história das ciências, avança em saltos descontínuos, não por ser ciência ou psicanálise, mas porque nelas está envolvido o processo de transformações que Bion soube muito bem delinear.

As transformações acontecem em saltos descontínuos, não lineares. Isso caracteriza o ser humano desde seus primórdios e exprime sua angústia constante diante do novo. O modelo indeterminista (não linear, espectral) de Bion ressalta a transitoriedade do fenômeno analítico e pode ser confrontado com as modernas teorias da instabilidade e do caos. O trajeto que se deve percorrer não é apenas mostrar a passagem do objeto simples ao objeto complexo, mas ir de uma complexidade a outra cada vez maior. A constante ideia da continuidade da existência habitual cotidiana cria uma ilusão também constante de ver-se num contínuo de experiências.

Já temos conhecimento de que a apreensão do fenômeno psíquico é fugaz e fugidia. Cada momento de insight é único, singular e peculiar. Terminada uma experiência, começa outra, que será um fragmento entre outros, sem qualquer tentativa de unificar as experiências e compreender os processos psíquicos, trama de solidariedade de intenções que se estabelece em todo trabalho criativo quando a intenção é colaborar. Acontece que muitas vezes o estabelecimento de paradoxos alimenta preconceitos, mas Bion e outros seguidores não tinham o hábito de deixar que uma continuidade se estabelecesse abertamente.

Parthenope Bion Talamo (1996) escreveu:

A cesura/interrupção pode algumas vezes ser transformada através de uma reversão de perspectiva em uma cesura/vínculo, dando-se um passo evolutivo para adiante. … A continuidade, cuja presença implícita deve ser mantida na mente, pode ser pensada como uma espécie de tecido da experiência que é interrompido por uma ruptura; colocados nesse ponto da ruptura e olhando-se para trás, a experiência reveste-se de uma cor emocional específica, que pode ser diametralmente oposta à cor emocional que se teria olhando-se para frente, a partir do mesmo ponto.

Sendo a realidade do inconsciente incognoscível, ele não tem equivalente total em nenhuma linguagem. Assim, não há equivalência no mundo de algo como a globalidade do inconsciente. Logo, não há referência possível dentro de qualquer certeza. Essa é a razão pela qual o princípio representado pelos elementos que antecedem a interpretação é o mesmo da relação com o princípio da incerteza de Heisenberg. Os fenômenos envolvidos são da ordem do inefável e remetem à infinitude por trás do tema verdade. Não é possível falar de começo, meio e fim em seu campo. Mas é possível falar apropriadamente de indeterminismo e infinitude. A relação finitude-infinitude está presente em todas as transformações analíticas e estabelece os parâmetros na questão significativa da temporalidade. Essa quebra de paradigma faz com que os autores que se apresentam no livro transmitam a ideia de que a psicanálise – ou o trabalho do analista – seja algo que não pode ser realizado simplesmente pela interpretação. Tornou-se necessário valorizar o potencial da experiência emocional e seus significados para o desenvolvimento do pensamento em si. Desse modo, o processo analítico passou a usar mais construções e descrições para lidar com a complexidade dos processos mentais. O processo de “sonhar” (função alfa) o material da sessão e o uso da intuição e de conjecturas imaginativas tornaram-se centrais no trabalho analítico, fato esse muito bem demonstrado no livro. É uma herança ou desdobramento do desenvolvimento de um modelo espectral baseado em múltiplas funções, de poder, por exemplo, utilizar os sonhos de maneira ampla, menos como produção simbólica, e mais em sua função sonhante, sem se importar com o seu conteúdo. Nesse sentido, pensar é sonhar, a forma fundamental de processamento psíquico, conforme esclarecem os autores em seus respectivos trabalhos.

Ao chegar ao final do que pude apreender da leitura do livro, fica-me a perplexidade da ousadia de tentar resenhar uma obra tão profunda e tão bem escrita pelos colaboradores. Certamente é também um livro inconcluso – aliás, talvez não tenha começo nem meio, ou seja, é um livro incompleto. Entretanto, sua inconclusão e sua incompletude são algumas de suas qualidades. Pensamos que assim se torna coerente com o conceito de complexidade, bem como com a complexidade da obra de Bion, inevitavelmente inconclusiva, aberta e insaturada. Além de conter a criatividade oriunda das nubladas profundezas de cada autor, a leitura estimula o sonhar em cada leitor, com surpreendentes desdobramentos.

Para finalizar, lembro um antigo aforismo zen: “Não fixe o olhar no dedo do mestre; olhe para onde ele aponta”. Se com isso estamos de acordo, é para lá que se dirigem os olhares argutos e desapegados dos diletos e generosos colegas colaboradores deste livro, e para onde eles nos convidam também a olhar.

Referências

Bion, W. R. (1975). Conferências brasileiras 1: São Paulo/1973. Imago. [ Links ]

Bion, W. R. (2016). Domesticando pensamentos selvagens (L. C. U. Junqueira Filho, Trad.). Blucher. [ Links ]

Talamo, P. B. (1996). Ambos os lados da cesura [Texto não publicado]. [ Links ]

Sérgio Seishim Kaio sergiokaio@hotmail.com

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