A publicação de casos clínicos
Debates clínicos: volume 2 é o segundo livro organizado a partir de casos clínicos anteriormente publicados na revista Percurso, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo. Os psicanalistas organizadores – Sérgio Telles, Beatriz Teixeira Mendes Coroa e Paula Peron – vêm desenvolvendo esse projeto editorial junto à editora Blucher.
Ao terminar a leitura do volume 2 (2020), resolvi ler o volume 1 (2019) antes de escrever esta resenha. O primeiro volume foi resenhado pela colega Dora Tognolli para a RBP em 2020. Recomendo ao leitor que visite o primeiro livro e siga a série de casos clínicos com seus comentários; depois, passe ao segundo livro e aceite o convite da coletânea Debates clínicos de ser um leitor privilegiado, acompanhando o relato de casos clínicos e as diferentes leituras e comentários de psicanalistas de diferentes correntes de pensamento psicanalítico, e formulando sua própria opinião sobre os 12 casos apresentados nos dois volumes.
O que há de novo no projeto Debates clínicos? A proposta de publicar casos clínicos, obviamente, não é nova. O novo desse projeto está no desenvolvimento de um método de trabalho.
O objetivo do método escolhido é criar um espaço livre de trocas entre psicanalistas para um debate com o seguinte formato: convidam-se três psicanalistas, dos quais um apresenta um caso e os outros dois o comentam, sendo que o apresentador e os comentadores só se conhecem ao final do processo. Segundo os organizadores, a ideia seria “criar um espaço de pensar psicanaliticamente não restringido por lealdades e transferências institucionais ou teóricas” (Telles et al., 2019, p. 14).
O método utilizado, dizem os organizadores no volume 2, procura ainda “diminuir os fatores transferenciais que poderiam inibir a livre e descompromissada manifestação de opinião. O objetivo é ultrapassar as divisões em nosso campo, proporcionar movimentos integrativos e estimular o estudo de convergências e divergências na prática clínica” (p. 7).
Não vou descrever os casos e seus comentários. Deixo ao leitor o impacto e o prazer da primeira leitura sem a saturação de informações prévias. Contudo, considero importante dizer de que trata cada um, só para o leitor imaginar o que encontrará no livro.
Neste volume, temos estes casos:
O homem dos pesadelos, apresentado por Chaim Katz e comentado por Decio Gurfinkel e José Canelas Neto.
O caso da mulher resignada a sua triste sina, apresentado por Daniel Delouya e comentado por Alejandro Luis Viviani e Ana Maria Trapé Trinca.
História de um homem só, apresentado por Maria Laurinda Ribeiro de Souza e comentado por Octavio Souza e Elisa Maria de Ulhôa Cintra.
Momentos de uma análise, apresentado por Nora B. Susmanscky de Miguelez e comentado por Leopold Nosek e Ana Rosa Chait Trachtenberg.
O caso Hilda, apresentado por Barbosa Coutinho e comentado por Anna Maria Amaral e Nelson da Silva Jr.
Territórios e fronteiras: por onde pisa o psicanalista de crianças?, apresentado por Ane Marlise Port Rodrigues e comentado por Eliana Rache e Audrey Setton Lopes de Souza.
É muito interessante o resultado alcançado com esse método de debate. O leitor pode experienciar a leitura dos casos clínicos por diferentes ângulos e vértices teóricos. Podemos nos identificar com o analista, com um dos comentadores, e em certos casos com aspectos abordados por ambos os comentadores. A leitura dos casos e dos comentários nos remete ao campo da transferência e da contratransferência com os textos. Como leitores nos envolvemos com as intervenções do analista (aprovando-as ou reprovando-as), com a posição de um comentador e até com o paciente. Como destacam os organizadores, “uns narram suas experiências, outros acompanham tais percursos confirmando-os ou reelaborando-os e agregando polifonia ao que é narrado” (p. 8).
Confidencialidade e publicação
A problemática da confidencialidade, do sigilo na apresentação dos casos clínicos, é uma pauta atual para os editores de periódicos e publicações em psicanálise. Devido aos avanços da internet e à importância da indexação dos periódicos, a apresentação de material clínico tem sido alvo de preocupação por parte de editores e psicanalistas, com a possibilidade de processos judiciais iniciados por pacientes ou familiares que se reconhecem ou reconhecem o analisando num artigo ou livro.
É fato que, no âmbito brasileiro, não temos o hábito de processar juridicamente como acontece em outros países – por exemplo, nos Estados Unidos, com sua cultura de judicialização. De qualquer modo, cada vez mais somos advertidos para não gravar ou fotografar com celular, nos congressos internacionais ou locais, material apresentado que contenha vinhetas ou casos clínicos. O mesmo ocorre nos debates online, tão utilizados no período da pandemia e que continuarão como mais um instrumento de interação entre os psicanalistas. Esse é um problema que nos desafia atualmente em razão da velocidade com que as informações se espalham nas mídias digitais e do alcance que têm nesse espaço.
Na apresentação do volume 1, os organizadores tratam do impasse entre a confidencialidade e a publicação dos casos clínicos. É bem interessante ver como esse impasse foi trabalhado, já que não existe uma fórmula a ser seguida, e sim algumas recomendações que nasceram da preocupação de Freud com a publicação de seus casos clínicos. Entre elas está a de não distorcer o material clínico na tentativa de proteger a identidade do paciente, porque se forem pequenas distorções provavelmente serão inúteis, e se forem significativas atrapalharão o entendimento do caso. “É muito mais fácil divulgar os segredos mais íntimos do paciente do que os fatos mais inocentes e triviais a respeito dele” (Freud, 1909/1976, p. 160).
Outra opção seria solicitar uma autorização ao paciente para publicar o seu caso, o que poderia ser uma solução em termos jurídicos para editores de revistas de psicanálise. No entanto, como aponta Renato Mezan,
o fato de se saber objeto da atenção privilegiada do analista, a ponto de este escrever sobre o nosso caso, não é inteiramente inocente no andamento de um processo analítico, ou eventualmente na resolução da transferência pós-processo analítico. Isto porque, por mais que nos dirijamos aos leitores em geral, quando se escreve sobre um paciente tal escrito é ainda parte da análise desse paciente, um diálogo com ele. O paciente é por definição um dos mais importantes destinatários do escrito que o concerne. (1998, p. 166)
Retornando ao livro, os organizadores assumem que “a tarefa dos editores cumpre um pequeno protocolo, do qual faz parte lembrar os apresentadores das implicações éticas referentes à publicação de casos clínicos, como tão bem descreveram Gabbard e Tuckett” (p. 15).2 O protocolo é o envio dos textos solicitando cuidados em relação à confidencialidade. É evidente a preocupação com o sigilo dos pacientes em Debates clínicos. Se observarmos de forma prática, em última instância, fica a cargo do apresentador/analista a questão ética de não quebrar o contrato fundador da confiança depositada nele pelo paciente. O analista é quem melhor pode avaliar se está expondo o paciente ou não.
Entretanto, as revistas psicanalíticas brasileiras podem, atualmente, ser consideradas parte responsável juridicamente – junto com o autor do texto – pela quebra de sigilo e ser processadas, já que a legislação ainda não está consolidada de maneira ampla, o que exige do editor atenção especial aos artigos que contenham vinhetas ou casos clínicos.
A propósito das questões levantadas pelos organizadores sobre confidencialidade, aproveitei para comentar algumas dificuldades enfrentadas por editores na publicação de casos clínicos. Como vimos, não há solução definitiva – as dificuldades permanecem a pedir maior reflexão. Contudo, o livro Debates clínicos testemunha ser possível editorialmente buscar alternativas sérias e cuidadosas quanto ao quesito confidencialidade.
Debate e formação psicanalítica
Todo psicanalista sabe da importância dos casos clínicos na constituição da psicanálise enquanto campo de conhecimento. A relevância deles é enorme na transmissão, no estudo, nos avanços teórico-clínicos e técnicos e na pesquisa em psicanálise. Aprendemos nas apresentações de casos clínicos, contando nossos casos e discutindo outros casos. Eles alimentam nossas supervisões, seminários, relatórios, artigos e construções teóricas.
Gostaria de destacar que o debate da clínica é parte fundamental na formação psicanalítica. E entendo debate como uma conversa entre duas ou mais pessoas, com o objetivo de expor e esclarecer argumentos ou ideias divergentes, numa troca de conhecimentos que contribua para a reflexão sobre um tema ou material clínico, partindo-se do pressuposto de não existir uma verdade única ou superior a ser transmitida, mas observações, experiências, concepções e ideias a serem trocadas e pensadas pela comunidade psicanalítica e científica, que pode acolher e validar os conhecimentos que se mostrarem capazes de compreender a vida psíquica.
A ideia de debate conta com a presença do outro na diferença, ou seja, nos convoca a escutar o outro (colega) como produtor de conhecimento tanto quanto nós. É nesse momento que se instaura o debate, no sentido mais exigente do termo. Nós reconhecemos o outro e suas concepções como capazes de nos desassossegar de nossas convicções e de nos transformar. Assim, não saímos intocados pela experiência de diálogos com o(s) outro(s); ao contrário, o exercício do diálogo e do debate nos torna mais porosos às necessárias trocas.
Debates clínicos, de partida, valoriza o debate das diferenças. Como diz Giovannetti, “a escrita psicanalítica, para merecer esse nome, deverá atestar em sua própria tessitura que seu produtor está cônscio de que ninguém, em tempo ou lugar algum, terá a última palavra sobre a psicanálise” (2018, p. 77).
Com base nessas considerações sobre a escrita psicanalítica da clínica3 e o posterior debate em relação à formação analítica, acredito que os dois volumes de Debates clínicos mereçam lugar na biblioteca dos que estão no início da formação, assim como na de colegas que já se formaram psicanalistas. A formação numa instituição psicanalítica oficialmente tem um término, porém a formação pessoal é interminável.
Para finalizar, ressalto que Debates clínicos nos faz pensar os pacientes que tivemos, aqueles que não experienciamos e mesmo aqueles que podem nos procurar. Aos leitores, fica a recomendação de ambos os volumes e, quem sabe, dos que ainda estão por vir.