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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.3 São Paulo July/Sept. 2022  Epub Aug 05, 2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n3.10 

Artigo

Por que atender presencialmente?: Considerações teórico-clínicas sobre o trabalho psicanalítico

¿Por qué atender presencialmente?

Why in-person psychoanalysis?

Pourquoi l’accueil en présentiel serait-il plus souhaitable ?

Ana Maria Stucchi Vannucchi1 

1Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp); São Paulo


Resumo

A autora propõe uma reflexão sobre as diferenças entre o atendimento online e o presencial. Argumenta que a presença do corpo e da realidade sensorial é necessária para o acesso às dimensões mais primitivas e à realidade psíquica dos analisandos, assim como ao objeto psicanalítico criado pela dupla analítica. Ilustra essa proposta com fragmentos de sua experiência clínica. Destaca a postura ética que, além de investigar as novas formas de atendimento, permite ao analista examinar como se sente mais presente psiquicamente no encontro com os pacientes.

Palavras-chave corpo; experiência emocional; realidade psíquica; realidade sensorial; ética

Resumen

Este trabajo propone una reflexión sobre las diferencias entre el atendimiento on-line y el presencial. La autora argumenta que la presencia del cuerpo y de la realidad sensorial son necesarias para el acceso a las dimensiones más primitivas y a la realidad psíquica de los analizantes, así como al objeto psicoanalítico creado por la pareja analítica. Ilustra esa propuesta con fragmentos de su propia experiencia clínica. Destaca la postura ética que, además de investigar las nuevas formas de atendimiento, permite al analista examinar como se siente más presente psíquicamente en el encuentro con sus pacientes.

Palabras clave cuerpo; experiencia emocional; realidad psíquica; realidad sensorial; ética

Abstract

In this paper the author proposes thinking about some differences between online sessions and in-person sessions in the office, arguing that the presence of the body and sensorial reality are necessary so we can have access to the most primitive dimensions, and to the psychic reality of our analysands, as well as to the psychoanalytic object created by the analytic pair. In addition, she provides anecdotes of her clinical experience that seem to confirm that. She proposes an ethical attitude, which, in addition to investigating the new ways of seeing and having contact with patients, favors analysts asking themselves deep questions about how they feel more psychically present when seeing their patients.

Keywords body; emotional experience; psychic reality; sensorial reality; ethics

Résumé

Dans ce travail, l’autrice se propose de réfléchir sur les différences entre l’accueil en ligne et en présentiel, dans le cabinet. Elle soutient que la présence du corps et de la réalité sensorielle sont nécessaires pour que l’on puisse avoir accès aux dimensions plus primitives et à la réalité psychique de nos analysants, aussi bien qu’à l’objet psychanalytique engendré par le couple analytique. Elle illustre sa proposition par des extraits de sa propre expérience clinique. Elle met en relief la posture éthique qui, outre rechercher les nouvelles manières d’accueil, permet que l’analyste examine comment il / elle se ressent davantage présent(e) psychiquement au moment où il / elle se retrouve avec ses patients.

Mots-clés corps; expérience émotionnelle; réalité psychique; réalité sensorielle; éthique

Não te esqueças nunca

que eu venho dos trópicos.

MARIA MARTINS

Depois de quase dois anos de atendimento psicanalítico online, necessário devido à pandemia de covid-19, decidi retomar o trabalho presencial no consultório, tomando todos os cuidados recomendados pelos órgãos de saúde: janelas abertas, uso de máscaras, capa plástica no divã, higienizada a cada encontro com álcool 70%. É claro que isso implica alguns riscos para mim e também para os pacientes, embora vacinados com várias doses, dependendo da idade. Mas por que eu correria esses riscos? Teria a convicção de que o trabalho presencial é diferente? Em quê? Como justificar teoricamente a convicção de que presencialmente me sinto mais viva e sensível para acessar as vivências primitivas que emergem na dupla analítica, causando tanta turbulência?

Aos poucos fui me dando conta da dificuldade da tarefa e me angustiando, especialmente quanto à necessidade de argumentar e dar consistência teórica às minhas ideias. Desde sempre me parecia óbvio que o presencial era um trabalho de maior profundidade e intimidade, mas como justificar o óbvio? Em geral ele se encontra diante de nós e não o vemos. Como diz Bion, “inconsciente e consciente não dão conta do problema. Poderíamos, às vezes, substituir inconsciente por óbvio, porém não observado” (1992, p. 327).

Antes da pandemia, nunca tinha me passado pela cabeça atender online. No entanto, um ano antes tive uma paciente que se mudou para a Holanda e eu me dispus a acompanhá-la por Skype, uma vez por semana, mas não chamaria esse trabalho de analítico, pois lidava com questões específicas da adaptação da paciente ao território estrangeiro, com algumas observações sobre seu funcionamento mental, mas sem mergulhar nas profundidades do desconhecido de sua vida mental. Com a pandemia me vi constrangida a recorrer ao modelo online para continuar trabalhando e atendendo os pacientes que precisavam e aceitavam esse “novo jeito” de trabalhar (nem todos o fizeram). Não pretendo me deter nessa experiência agora, que trouxe possibilidades e benefícios, pois minha necessidade é justificar para mim mesma a prioridade de retomar o trabalho presencial no consultório, com as vantagens e os riscos que isso traz.

Em outubro de 2021 voltei ao atendimento presencial com alguns pacientes. Vou comentar e pensar minhas vivências e observações. Em julho de 2021, no Congresso Internacional de Psicanálise, eu tinha assistido à apresentação de uma analista inglesa (cujo nome não lembro) em que ela dizia algo assim: “Quando encontrei presencialmente com a paciente x em meu consultório, depois de um longo tempo de isolamento e trabalho online, pensei: ‘Faz um ano e meio que não encontro essa pessoa!’”. Essa frase ficou ecoando em meus ouvidos por muito tempo…

Os primeiros encontros presenciais com meus pacientes, depois de 19 meses de trabalho online, foram muito intensos e comoventes para ambos os lados. De início os pacientes diziam palavras como estas:

PACIENTE A: Nossa, Ana! Que bom que você está viva! Eu também me sinto vivo aqui. Que saudade eu estava de te encontrar de verdade!

PACIENTE B: Essa planta [da sala] está viva. Que milagre! Quem cuidou dela?

PACIENTE C: Que bom que estamos vivas! [Fica emocionada.]

PACIENTE D: O Calligaris morreu, mas nós estamos vivas. Lembrei do Belchior: ano passado eu morri, mas este ano eu não morro.

PACIENTE E: Quando entrei na sala de espera e vi o jornal de hoje me esperando, me senti muito tocado. Eu vivi esses dois anos num não tempo e num não lugar… Agora estou aqui no meu lugar, este divã… Seu divã, mas também meu. [Emociona-se intensamente.]

PACIENTE F: Nossa! Eu achei que nunca mais eu ia te encontrar… Acho que pensei que você tinha morrido.

PACIENTE G: Eu não vejo meu pai desde o ano passado… Você também… Desde o ano passado… Eu me sinto muito melhor quando eu venho aqui e deito no divã… Fico mais aberto… Eu acho que penso e sinto mais claro… Mas se é pela sua saúde, tudo bem, eu esperei.

PACIENTE H: [Deita-se no divã, espreguiça-se e fica um longo tempo em silêncio. Depois diz:] Esse silêncio é tão diferente do silêncio do online… Posso sair de casa, vir aqui e ficar em silêncio junto com você… Parece absurdo, mas estou achando tranquilo achar esse repouso… diferente da maratona da vida, cheia de obrigações… Será que no online me sinto obrigada a falar? Aqui posso não falar, posso pintar… calar… Posso dormir e sonhar… Como um rio que atravessa o deserto e desemboca num oásis.

PACIENTE I: Eu tenho vindo a pé e quando chego aqui me sinto presente. É diferente do computador, que a gente liga ou desliga e cai na tela, sem tempo de chegar ou partir. Sabe “Roda viva” do Chico? “Como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu.” Se eu venho aqui, meu mundo cresce, fica mais presente. Nem sei dizer, que palavra usar.

Acredito que os pacientes se refiram a uma outra noção de tempo e espaço propiciada pelo nosso encontro presencial. De fato a noção de tempo no trabalho online é acelerada, desumanizada, mecanizada, bem como a noção de espaço, que aponta para um não lugar, muito diferente do consultório e da sala de análise, que são elementos integrantes do setting. Tempo e espaço são noções essenciais para caracterizar o humano, como atesta toda a história da filosofia, em especial Kant, que na Crítica da razão pura (1781/1974) considerou espaço e tempo como categorias a priori da sensibilidade humana, na apreensão da realidade. No sistema online podemos desligar em um minuto e estar em outra parte do mundo no minuto seguinte. Em que não lugar acontece a sessão online? Provavelmente tenhamos que falar em mudança de paradigma no atendimento online (como alguns colegas sugeriram), e não em mudança de setting. Penso que as vivências de espaço e tempo são anuladas e eliminadas pela alucinação negativa no trabalho online (Freud, 1917/2010a). Talvez haja aí um elemento de sedução que envolve as atividades online, trazendo um toque de magia? Talvez comodidade, conforto e segurança? Segurança contra a covid ou também contra as turbulências emocionais trazidas pelo encontro presencial? É preciso considerar ainda que no modelo online podemos atender mais pacientes, trabalhar mais e ganhar mais dinheiro, já que o tempo de deslocamento é anulado e o tempo de despedida dos pacientes, uso do banheiro e sala de espera inexiste. Retomarei essas indagações em outro momento.

Outra paciente fala de seu medo de voltar ao presencial: “Tenho medo de quê? Nem sei dizer. De tudo. Será que é medo de você? Eu fico na toca protegida, dentro das cobertas. Acho que tenho medo dos meus sentimentos. De repente, explode coração quando chego aqui”.

Penso que os relatos apresentados ilustram a intensidade emocional propiciada pelo encontro presencial e as angústias e os medos decorrentes, pois a tela pode ser vivida como um anteparo protetor para evitar invasões e angústias osmóticas e difusas provenientes de núcleos autísticos, como diz Durban (2021). Podemos pensar que as crianças autistas mencionadas pelo autor se sentem protegidas da aproximação do outro devido à presença da tela? E, como ele observa, que regrediram muito em seu desenvolvimento emocional no retorno ao consultório devido ao encontro presencial com o analista? Parece-me que o autor caminha nessa direção. Assim, nossas dimensões autistas e primitivas ficariam ainda mais inacessíveis no trabalho online?

A referência à vitalidade, em contraposição à ideia da morte, expressa nos fragmentos citados, parece-me estar ligada à intensidade das emoções, que se faz mais clara e forte no encontro presencial devido à presença do corpo, sede originária de nossas sensações e emoções. Esses aspectos se complementam com a possibilidade de uma intimidade de outra natureza, não mediada pela tela, mas que envolve a presença de corpo e alma. Muitas vezes a alma não está presente, mas podemos ir convocando sua presença aos poucos, pela gestualidade, pelos odores, pelas cores visíveis e invisíveis, sendo tocados pela experiência emocional, pela possibilidade de observação e intuição psicanalíticas. Seríamos capazes de atravessar a cesura entre corpo e mente? E agora, com o novo desafio, seríamos capazes de atravessar a cesura entre o bidimensional e o tridimensional? E as cesuras da mente multidimensional? Muitas perguntas me assaltam. Tento aqui continuar pensando, abandonando as certezas e sendo tocada pela experiência. Considero que uma postura ética é estar sempre indagando e buscando novos vértices de observação.

Vou primeiramente me dedicar à questão do corpo no atendimento presencial.

O corpo

No volume 3 de Uma memória do futuro, A aurora do esquecimento, Bion descreve o embate entre mente e corpo e a impossibilidade de separá-los.

EM: Agora você me confundiu. Eu deverei ser corpo; deverei estar amarrado a sua mente para sempre.

MENTE: De onde foi que vocês saíram?

CORPO: O quê? Você de novo? Eu sou o corpo – se quiser pode me chamar de Soma. Quem é você?

MENTE: Chame-me de Psique. Psique-Soma.

CORPO: Soma-Psique.

MENTE: Devemos ser parentes.

CORPO: Nunca, se depender de mim.

MENTE: Ora, deixa disso. Não é tão ruim assim, é?

CORPO: Muito pior. Você nos meteu neste ar. Por sorte, eu trouxe algum líquido comigo. O que você está fazendo?

MENTE: Nada. Devem ser meus frenos. Este diafragma aí subindo e descendo. Estou inspirando ar fluido, não líquido. Para que você trouxe esse troço úmido aí? Cheira tão bem…

CORPO: Você nunca saberia nada a respeito do cheiro, se eu não tivesse o líquido para agregar seus átomos.

MENTE: E o significado também não passa pela barreira. Gozado, hein? O significado não passa nem de mim para você nem de você para mim. … Sofri intensamente quando fomos rejeitados. Eu te pedi para me chamar de Psique e prometi te chamar de Soma.

SOMA: Tudo bem, Psique. Não admito que existe uma pessoa que não seja um artefato da minha digestão. …

PSIQUE: Você me confundiu de novo. Dor, pés – tudo misturado. Por que você não se resolve de uma vez?

SOMA: Eu me resolvo. Se você tivesse um pingo de respeito pelos meus sentimentos, e fizesse o que eu sinto em você, não estaria metido nesta confusão.

PSIQUE: Se estou metido nesta confusão, é porque nela me enfiaram. Quem é o responsável? Seus sentimentos ou suas ideias? Tudo o que me possui é seu – fluido amniótico, cheiro, luz, gosto, ruído; estou embrulhado nisto. Cuidado! Estou sendo absorvido!

SOMA: Vou fazer patê de você – é só acabar de te absorver, é tudo urina, merda e piedade. Você pode idealizá-lo e certamente conseguir um bom preço por ele. Ei! Salvem-me – também estou sendo absorvido. Socorro! (1996, pp. 6-9)

Penso que esse pequeno trecho ilustra, do vértice de Bion, a impossibilidade de desconsiderarmos o corpo e a complexa relação mente-corpo, embora trabalhemos aparentemente com a mente e as palavras. Como disse antes, podemos atravessar a cesura entre mente e corpo? Podemos considerar que o corpo é dispensável? Como fica a possibilidade de observar o não verbal? Movimentos, odores, sussurros? Não estaríamos no domínio do alucinatório por esse caminho? Uma alucinação negativa do corpo, que – como supunha Freud (1917/2010a) – antecede a alucinação positiva?

Como diz John Donne, em “Elegia: indo para o leito”, na transcriação de Augusto de Campos (1986, p. 57), o corpo, como veste da alma, é sede do prazer:

Nudez total! Todo o prazer provém

De um corpo (como a alma sem corpo), sem

Vestes. …

Como encadernação vistosa, feita

Para iletrados, a mulher se enfeita;

Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a que tal graça se consente)

É dado lê-la.

Mais tarde, Caetano Veloso cantaria esses versos musicados por Péricles Cavalcanti, trazendo-nos também um imenso prazer para além do corporal. Prazer autêntico (Rezze, 2021b)? Como repensar o binômio prazer/dor, proposto por Freud (1911/2010b), sem a presença corporal?

Percebo que o trabalho presencial nos põe em contato com essa intensidade de afetos, sejam os da paixão, da sexualidade e do amor, sejam os da violência e da agressividade, pois envolve a presença do corpo e, nesse sentido, alcança uma dimensão mais real e vívida, que nos permite, no meu entender, ter maior acesso à experiência emocional em curso na sessão. Poderemos suportar e valorizar essa turbulência?

Lembro aqui a resposta de Eduardo Tolentino de Araújo, diretor de teatro (Grupo Tapa), ao colega Luiz Fernando Nóbrega, que lhe perguntava por que não manter espetáculos de teatro online durante a pandemia. Transcrevo aqui a resposta de Tolentino:

O olhar de um espectador na plateia é tridimensional e na tela é bidimensional, não deixando lugar para o ponto de fuga. Teatro filmado não dá bom resultado. O custo é muito alto e, mesmo assim, não é bom teatro, só vale como documento. (comunicação pessoal)

O que seria o ponto de fuga? Penso ser uma referência no horizonte para construir uma perspectiva, dar profundidade, estabelecer um lugar para onde convergem todas as direções do espaço considerado. O termo perspectiva tem origem no latim e significa “ver através de”, trazendo a possibilidade de representar um objeto tridimensional por meio do bidimensional, ou seja, mais próximo do real possível.

Penso que a perspectiva, embora possa deformar o objeto visto, não se aproxima da noção de simulacro, empregada por vários colegas (Calich, 2021; Meyer, 2021; Rezze, 2021a) para pensar a imagem com que nos relacionamos na tela do computador, como discutiremos adiante.

Para tratar da questão do corpo, gostaria de lembrar um trabalho de Luiz Tenório Oliveira Lima (2016) em que ele diz que a dicotomia mente-corpo perdurou na filosofia por muito tempo, até o fim do século 19. O autor afirma que Freud resolveu essa dicotomia propondo o corpo libidinal, erótico, que vai além do corpo físico que lhe serve de suporte, relacionando-se com a mente/alma que lhe faz parceria:

Por outro lado, fica clara, na teoria da sexualidade infantil, a importância da experiência corporal como fundamento da teoria psicanalítica da libido. Pode-se dizer, portanto, que o corpo libidinal se torna a matriz da teoria psicanalítica do desenvolvimento da personalidade. (p. 23)

Freud fez do corpo a base das pulsões e do ego, considerando-o como a projeção de uma superfície corporal: “Esta teoria configurará, de modo explícito, um eu que resulta da introjeção e da identificação dos seus primeiros objetos e, portanto, profundamente ancorado no corpo” (p. 26). Tenório cita Merleau-Ponty: “Quaisquer que sejam as formulações filosóficas, não há dúvida de que Freud percebeu cada vez melhor a função espiritual do corpo e a encarnação do espírito!” (p. 25).

Meyer (2021), ao comentar o trabalho de Tenório, fala de uma mente encarnada e da necessidade de propor uma “compreensão criativa – onírica – face à experiência afetiva que surge do encontro de corpos encarnados. … A personalidade incorpórea, a alma e a personalidade corporal estão continuamente se construindo de um modo que nos impede de traçar uma linha divisória”. Não é à toa que Meyer menciona a ausência do corpo no atendimento online, reivindicando sua radicalidade. Meltzer, pensando o desenvolvimento de adolescentes, reafirma de modo poético a relação entre um corpo adolescente em mudança puberal e sua mente em movimento, bem como sua relação com outros corpos e outras mentes, aproximando-se de uma sexualidade adulta, “a convicção de que uma relação entre corpos se traduzirá mais tarde em um encontro entre mentes e a convicção de que um encontro entre mentes poderá transformar-se em um encontro satisfatório entre corpos” (Meltzer & Harris, 1998, p. 180).

Ferrari é outro autor que sempre chama a atenção para a existência radical da corporeidade, que segundo ele a psicanálise não pode desconsiderar: “Temos um corpo, mas também somos um corpo” (comunicação pessoal). Propôs a existência de um objeto originário concreto, constituído de um corpo físico, sensações e emoções que provêm desse corpo e um aparelho mental que percebe e anota. O eclipse do corpo refere-se à formação progressiva de um espaço mental que põe na “sombra” o marasma das sensações e emoções, residindo aí as potencialidades de pensamento – ou, como ele chamava, a aurora do pensamento, abrindo possibilidades de pensar a harmonia e a desarmonia entre ambos. O corpo seria então o primeiro objeto da mente, mas também a matriz da qual a mente pode nascer: “Um corpo que não é só um corpo e uma mente que não é só uma mente” (Ferrari & Stella, 2000, p. 14).

No livro O furgão dos loucos, de 2001, Carlos Liscano descreve a reação de um presidiário ao sair de um isolamento de vários meses:

Uma tarde, trazem um companheiro que passou meses em isolamento. Oferecem comida, leitura, o que for. Nada, não está interessado em nada. Começa a escurecer e dois ou três começam a tamborilar em uns potes de plástico, em uma caixa. O recém-chegado se junta a eles, ensaia alguns passos de dança. Gritos, aplausos. Continua dançando mais um instante e então não para, continua. Move-se, o corpo procura o ritmo, encontra-o. Abre-se um espaço no meio da cela, pouco a pouco se forma um círculo de homens sentados no chão, em colchões, ao redor daquele que dança. E o recém-chegado dança, dança. Com os olhos fechados dá voltas, levanta os braços, move os quadris, os ombros, requebra o corpo, para, vira no outro sentido. Os músicos estão cansados, entediados, mas a música não pode parar; outros agarram o tambor, o pote de plástico fica abandonado. A música deve continuar para que esse homem continue voando, viajando, na sua dança, na sua felicidade. Está feliz, feliz, dá para perceber no rosto, nos olhos fechados, nas mãos, no corpo liberado. Faz meses que está sozinho, que seu corpo não sente o calor de outro corpo, amigo e próximo. E dança, o corpo dança, uma hora, uma hora e meia. Não está doente? De qualquer modo, doente e feliz. Quando finalmente para, sorri, olha para nós. Começa a falar: tem alguma coisa para comer? Já visitou o lugar que precisava visitar, quem sabe onde, com quem. Agora é outra pessoa e está aqui. Quer comer. (citado por Pinedo, 2022, p. 82)

Penso que esse relato pungente expressa a narratividade corporal (Guerra, citado por Pinedo, 2022), mostrando a presença marcante da corporeidade e da linguagem corporal como elementos significativos da expressão humana de liberdade que o presidiário acabava de conquistar.

A questão da presença do corpo remete à noção de simulacro, cunhada por Baudrillard e mencionada por Meyer (2021) em reflexões sobre o atendimento online: “Nega-se a percepção do corpo desaparecido e o holograma que o substitui é abordado como se fosse o corpo real e presente”. O simulacro é real, a imagem na tela existe, mas ela revela uma pessoa real ou está no lugar de uma falta? O tema do simulacro foi retomado por Calich (2021), que aponta para a complexidade da situação analítica, a variedade de conceitos entre os psicanalistas, como a noção de setting, referida anteriormente. Ao pensar o tema da virtualidade Calich introduz também a noção de simulacro: “O simulacro nunca é aquilo que esconde a verdade, é uma nova verdade que esconde o que não existe. O simulacro é verdadeiro, mas não real”. Como lembra Rezze (2021a), citando Baudrillard, “o simulacro nunca é o que oculta a verdade – é a verdade que oculta o que não existe. O simulacro é verdadeiro… Simular é fingir ter o que não se tem… Refere-se portanto a uma ausência”.

Acredito que o simulacro pode ser considerado uma realidade substitutiva, que está no lugar do corpo ausente; pode ser pensado como uma atividade de caráter alucinatório, que substitui o que foi suprimido pela alucinação negativa (Freud, 1917/2010a). Embora a tendência do mundo seja esta, de preponderância da realidade virtual, penso que é importante distinguir as relações humanas virtuais das presenciais, bem como os processos de aproximação e de afastamento em relação ao contato com a vida mental humana, essência de nosso trabalho como analistas.

Podemos ver a ressonância afetiva do contato presencial e a discriminação entre as duas situações em várias vivências do cotidiano. Outro dia meu neto de 10 anos me disse o seguinte sobre o retorno das aulas presenciais: “Adorei ver meus amigos!”. Ao perguntar do que ele mais tinha gostado, respondeu: “Adorei ver a escola inteira, e não só o quadradinho do computador!”.

Penso que estamos na mesma situação dele, olhando pelo quadradinho, sem acesso aos movimentos corporais, aos sons, odores e expressões do corpo. Como recuperar a perda da linguagem pré-verbal e gestual? Como dar espaço às ressonâncias do corpo em nosso trabalho? A epígrafe de Maria Martins chama a atenção para a irredutível presença do corpo em seu trabalho de escultora, que produz reverberações significativas na experiência emocional de fruir suas obras.

A seguir apresento um fragmento clínico que, a meu ver, ilustra as ressonâncias do encontro presencial entre o corpo do analista e o do paciente, que por sua vez permite o encontro entre duas mentes, como aponta Meltzer (1998).

Ao voltar ao presencial, percebi que comecei a chamar os pacientes de forma diferente: saía do corredor que separa minha sala da sala de espera, passava para a sala de espera e aguardava o paciente entrar para em seguida fechar as duas portas; antes eu ia até a sala de espera, chamava o paciente, voltava para a sala de atendimento, aguardava o paciente entrar e trancar a primeira porta, e então eu fechava a segunda. Com essa nova forma, percebo que me exponho mais ao olhar do paciente e à sua observação. Senti essa necessidade ao voltar ao trabalho presencial, talvez para evidenciar a ambos a presença do corpo. Os corpos estão presentes, e as mentes podem ou não apropriar-se dessa condição. Alguns pacientes notam essa transformação e sua repercussão em nosso trabalho.

Vou buscar o paciente na sala de espera da maneira antes descrita. Ele me estende a mão com um pedaço de jornal e diz: “Aqui tem um presente para você”. Era um recorte de jornal com a entrevista de uma psicanalista famosa. Eu recebo o jornal e agradeço, mas não o abro. O paciente entra e fica em silêncio. Diz que veio do trabalho e que ficou nervoso – não sabe o motivo. Aguardamos um tempo, e eu lhe proponho que estava aflito com o nosso encontro na sala de espera. Ele me diz que foi mesmo um encontro diferente, mas não sabe explicar por quê. Faz um longo silêncio e começa a falar de ideias pornográficas que passam pela sua cabeça, indignando-se com isso. Em seguida expressa o que entende por pornografia: “Eu reparei em você na sala de espera… Agora pensei em levantar daqui e te agarrar, te beijar, tirar suas roupas, transar”.

Seguiu-se um silêncio bem tenso entre nós. Fiquei angustiada e tomada de assalto pela comunicação do paciente, sem encontrar o que dizer. Ficamos em silêncio por muitos minutos. Ele se mexia no divã visivelmente agitado. Eu me sentia temerosa e amedrontada, sem palavras.

Aos poucos, quando me recuperei, disse: “Você pensou nisso, mas não levantou. Pôde me falar o que pensou, e nós estamos aqui conversando”.

O paciente esclarece que tem medo de ser mandado embora, despachado, mas a possibilidade de conversa toma o espaço da ação e do corpo. Não seria isto mesmo a característica essencial do nosso trabalho: transformar o sensorial em psíquico?

Depois de outro silêncio, a possibilidade de uma atração sexual mútua volta a ser considerada por ele, pedindo reciprocidade de seus desejos e ao mesmo tempo censurando-os.

Eu lhe digo que uma parceira sexual ele pode encontrar mais facilmente; aqui veio buscar “uma analista que possa conversar com você sobre essas vivências tão humanas, que você acha estranhas”.

Ao sair diz: “Gostei da sua calcinha [olhando para a minha calça comprida]. Eu nunca tive coragem de dizer isso, nunca consegui. Pensei nisso mil vezes! Hoje consegui”.

Fiquei pensando que o paciente provavelmente alucinou um contato sexual entre nós, e que essa experiência foi possível pelo fato de estarmos trabalhando presencialmente, nessa nova forma de receber os pacientes. Essas vivências puderam adquirir expressão verbal, diminuindo as pressões de culpa e horror vividas pelo paciente em relação à sua mente primitiva, ancorada no corpo, e permitindo-lhe atenuar o superego assassino de ego que o atormentava nesse momento – e talvez o atormente há muitos anos. Tenho a impressão de que essa experiência não teria sido possível no trabalho online, pois precisou da nossa presença corporal para surgir.

O segundo ponto que quero considerar diz respeito à experiência emocional vivida durante o encontro analítico. Podemos ser tocados por ela no atendimento online? Sim, esses dois anos de trabalho evidenciam essa possibilidade. Mas a que preço? Em que condições? Com que perdas?

Vários colegas se debruçaram sobre a noção de experiência emocional proposta por Bion. A formulação mais geral da teoria é esta:

Para aprender da experiência, a função alfa precisa operar sobre a consciência da experiência emocional, elementos alfa são produzidos a partir das impressões da experiência, estes então tornam-se armazenáveis e disponíveis para o pensamento onírico e para o pensamento inconsciente de vigília. (Bion, 1962/2021, p. 35)

Ou ainda:

A função alfa opera sobre as impressões sensoriais, quaisquer que sejam elas, e sobre as emoções, quaisquer que sejam elas, das quais o paciente está ciente. … Se a função alfa está perturbada, e portanto inoperante, as impressões sensoriais das quais o paciente está ciente e as emoções que ele está experimentando permanecem inalteradas. Eu as chamarei de elementos beta. Elementos beta, em contraste com elementos alfa, não são sentidos como fenômenos, mas como coisas-em-si. As emoções são igualmente objetos dos sentidos. (pp. 31-32)

Destaco primeiramente o aspecto de que, para transformar uma experiência pela função alfa, precisamos estar cientes/conscientes dela. Lembro-me de um trabalho de Julio Frochtengarten (2018) em que ele reflete sobre a noção de experiência a partir de um texto muito interessante, “Notas sobre a experiência e o saber da experiência” (2001), de um filósofo de Barcelona chamado Jorge Larrosa Bondía: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. E o que nos toca envolve entrega, paixão, existência. Precisamos nos deter para sermos tocados pela experiência. Assim, nem sempre a experiência nos é acessível, especialmente em tempos de pressa e produtividade exacerbadas ou de virtualidade contínua.

Frochtengarten propõe o seguinte: “A experiência só se constitui enquanto tal quando me dou conta dela; sem isto ela simplesmente é. E ao descrevê-la ela deixa de ser”. O autor cita Frank Philips, em Psicanálise do desconhecido: “O importante de uma experiência é saber que se está tendo uma”.

Todas essas observações me fazem retomar a questão da experiência e de sua natureza no encontro presencial, em que podemos nos entregar a ela de corpo e alma. Odilon de Mello Franco Filho (2016) propõe dois estágios: ter a experiência, o que ele chama de situação, e aprender com ela, adquirir qualidade psíquica, o que ele denomina experiência emocional, destacando a encruzilhada entre as preconcepções e a realização, e a oscilação entre prazer e dor, satisfação e frustração, próprias da experiência de contato com a realidade, seja exterior, seja interior, sendo esse contato sempre mediado pela realidade psíquica. O autor usa como epígrafe de seu texto uma frase de Aldous Huxley: “Experiência não é o que aconteceu com você. É o que você fez com o que aconteceu”.

Eu vejo três passos neste percurso. O primeiro diz respeito ao que não percebemos, e portanto àquilo de que não estamos cientes, que recai numa área inconsciente e que não se configura como experiência, nem mesmo como impressão sensorial. O segundo se refere a ter uma experiência, estar ciente, ser tocado, perceber as sensações e impressões sensoriais ainda não transformadas e sem qualidade psíquica. Aprender com a experiência e ser capaz de transformá-la em símbolo, em algo abstrato que possa ser armazenado no inconsciente, é o terceiro passo, também favorecido pelo contato com as impressões sensoriais sobre as quais a função alfa opera. Rezze ressalta que a

experiência emocional é parte integrante da vida humana e, portanto, aspecto fundamental em psicanálise examinado em suas múltiplas faces. A inovação introduzida por Bion é o aprender com a experiência emocional, que implica o desenvolvimento da teoria das funções, particularmente da função alfa, e a passagem da qualidade do mundo sensível para o mundo da qualidade psíquica, no qual se destaca o conhecimento, ou seja, o mundo inteligível do qual nos falava Platão. (2012, p. 45)

Podemos abrir mão das impressões sensoriais no trabalho de observação e intuição psicanalíticas? Parece-me que todos estes “movimentos” são favorecidos pelo encontro presencial: perceber as impressões sensoriais e transformá-las em elementos psíquicos e oníricos (alfa) no encontro entre dois corpos e duas mentes – enfim, as impressões sensoriais como necessárias para viver uma experiência emocional.

Paulo Cesar Sandler (2012) propõe um espectro que vai desde impressões sensoriais, ou apreensões sensoriais, passa por emoções básicas, sentimentos, afetos e experiências emocionais, e “voa” até emoções, num processo interpenetrante, em parte consciente, em parte inconsciente, numa experiência paradoxal. O autor esclarece a necessidade de considerar a dupla realidade sensorial e psíquica: “O real abrange o paradoxo material e imaterial ao mesmo tempo” (p. 162). Sugere que o modelo usado para pensar essa questão seja o da relação do bebê com o seio – aliás, um seio real, e não apenas psíquico. A qualidade emocional vai depender do encontro entre o seio real e a preconcepção do bebê, ou seja, uma realização: então o seio que eu esperava era esse? Sandler fala de um “vínculo seminal da experiência emocional com a realidade externa, que já está lá, anterior à nossa existência”, e de um “influxo dinâmico, a partir do meio interno, semovente, vinculado às fontes instintivas” (p. 167), relacionando-o à teoria do pensar e ao trânsito entre consciente e inconsciente, via barreira de contato.

O que desejo enfatizar neste momento é, do meu ponto de vista, a impossibilidade de descartar o aparato sensorial, “porta de entrada de todo e qualquer estímulo” (p. 173), como lembra Sandler. O autor se indaga: “Existiriam experiências emocionais in absentia de qualquer objeto? Ou isto não passaria de uma experiência de masturbação alucinatória e delirante?” (p. 175). Poderíamos usar esse modelo para pensar os atendimentos não presenciais, tal como sugeri anteriormente ao falar da relação entre a alucinação negativa e a positiva?

Tento caminhar nessa direção, procurando afastar acomodações e aprofundar a investigação. Nesse sentido considero que as indagações que apresento aqui têm uma dimensão ética, que envolve constantes incertezas e dúvidas, continuamente renovadas.

Em A linguagem de Bion: um dicionário enciclopédico de conceitos(2021), Sandler retoma esse tema no verbete experiência emocional. Nessas considerações o autor associa o termo experiência emocional, na obra de Bion, “às tentativas humanas de apreender a realidade” (p. 350). Afirma que a experiência emocional depende, portanto, de um mundo interno, que lhe confere “qualidade emocional” e dá ligação com a realidade externa, “matéria-prima para construir essa ligação” (p. 351). O pensamento supõe então a realização inicial com o seio real e, em seguida, com o não seio, que permite a simbolização, ou seja, a abstração possibilitada pela ausência concreta de um seio. Por isso Bion (1977) afirma que o pensar implica presença e ausência, prazer e frustração, e não apenas dor e falta. Temos aí a presença de volta.

Acredito ser necessário considerar esse aspecto ao tratar da questão do trabalho presencial, situando as bases para o conhecer na experiência emocional e o duplo movimento entre O e K (e vice-versa) que Bion enfatiza em seus últimos textos e apresentações, em que a noção de experiência emocional não aparece claramente (Braga, 2012) – tenho a impressão de que essa noção esteja aí suposta, ancorada na impossibilidade de desconsiderar o corpo e a sensorialidade na base das experiências humanas; aliás, o próprio termo experiência pressupõe, como dissemos, o contato com a base sensorial da vida humana em seu devir, transformando-a por meio do pensamento onírico.

Sandler propõe:

Experiências emocionais, imaterializadas, podem ser captadas por materializações. Por exemplo, sentidas, ou afetando as pessoas envolvidas. Não se pode fazer psicanálise por carta, ou por métodos ainda mais ilusórios, como telefone (falado ou escrito, como foi nos seus primórdios o telégrafo, ou atualmente por transmissão via satélite em suas várias “marcas registradas” comerciais: email, WhatsApp, Skype etc.), da mesma forma que não se pode manter uma relação sexual nem efetuar uma refeição por telefone ou internet. (2021, p. 357)

Talvez tenhamos mesmo que pensar em outro paradigma para conceituar o trabalho analítico online, tendo em mente também sua utilidade e suas inegáveis possibilidades.

Sandler cita Bion em Second thoughts:

O analisando tem a experiência disponível à sua intuição, se permitir que o psicanalista chame a sua atenção para esse fato. As pessoas que estiverem fora da sessão analítica não podem se beneficiar das formulações do psicanalista porque estas dependem da presença na experiência que está sendo formulada. Estão, portanto, em posição análoga a alguém cuja habilidade matemática não atingiu o ponto em que possa tratar de um problema de objetos sem a presença deles. (p. 357)

O que seria essa presença na experiência a que Bion se refere?

Outro aspecto que eu gostaria de abordar diz respeito à possibilidade de alcançar o objeto psicanalítico, considerado uma criação da dupla e aproximado, penso eu, ao terceiro analítico (Green, 1988; Ogden, 1996). De acordo com Bion (1963/2004), o objeto psicanalítico precisa ser alcançado para que uma interpretação seja satisfatória, e ele decorre dos elementos psicanalíticos envolvidos na observação da experiência emocional da sessão – ou seja, continente/contido, ps/pd, vínculos L, H, K, R e I, dor mental e solidão –, transformados pelo fato selecionado e pela operação da função alfa. Bion usa aqui o termo senso comum, indicando com isso o que é “comum a mais de um sentido” e propondo como dimensões do objeto psicanalítico o domínio do sentido, do mito e da paixão. Temos que “saltar” para além dos sentidos para alcançá-lo, mas partimos do sentido: “Aquilo que é interpretado deve ser, entre outras qualidades, um objeto do sentido” (p. 27). Quais são as dificuldades para alcançar o objeto psicanalítico contando apenas com o sentido da visão e da audição, como no trabalho online?

Finalizo meu trabalho com outro fragmento clínico que acredito ter sido possível apenas pelo fato de estarmos trabalhando presencialmente.

Bruno é um homem feito, mas ainda um menino. Não se encontrou, embora não pare de procurar-se. É inteligente e bonito, tem muitas namoradas, mas nunca se casou com nenhuma. Vive com a mãe e o pai, pois os outros irmãos já seguiram seu caminho. Está sempre buscando um trabalho, mas não qualquer trabalho: tem que ser grandioso e importante, como o do seu avô, cientista famoso e muito admirado.

Ao longo dos anos de trabalho analítico, essa imagem retorna constantemente. O avô, visto como um rei divino e inalcançável, é adorado e venerado, constituindo-se uma dimensão religiosa, com uma crença inabalável, indicando área de alucinose e, me parece, profundo sofrimento psíquico e intensa dor mental radicada no sentimento de não existir.

BRUNO: Você me tirou a palavra da boca: deus mesmo, rei, magnífico em tudo, maravilhoso, um espelho para mim.

ANA: Mas nesse espelho você olha e só vê o rei-deus. Acho que não se vê.

Longo silêncio. Bruno se mexe no divã, se contorce, se vira para a analista e diz: “Tá tudo nublado, não vejo nada”, e se comove profundamente. Sinto-me bastante impactada pela minha conjectura imaginativa, ligada à sua vivência de não existir e figurada no conto “O espelho”, de Machado de Assis, onde o personagem, sem o uniforme militar que lhe conferiu um lugar na sociedade, olha-se no espelho e não se vê, angustiando-se intensamente com o sentimento de inexistência proveniente dessa visão. Opto por não mencionar para o paciente essa imagem/conto, aguardando a oportunidade de transformá-la e utilizá-la.

A vivência profunda e angustiante de não existir toma conta do campo analítico, vindo das profundezas primitivas da mente, ainda não passíveis de conhecimento e pensamento, talvez presas a uma corporeidade não simbolizada e trazendo em seu bojo uma angústia insuportável. Vestígios de uma mente primordial?

O trabalho prossegue. Bruno sofre, mas não desiste de investigar e olhar para dentro de si. Aos poucos surge outra dimensão, ligada à figura paterna.

BRUNO: Meu pai é um desastre! Incompetente, dependente da minha mãe e do pai dele. Eu não consigo gostar dele, perdoar ele. Eu às vezes penso que se eu for ser como ele nem vale a pena viver.

ANA: Parece que essa ideia te ameaça como um fantasma: o medo de ser como ele, de não conseguir ser.

BRUNO: Fantasma mesmo.

ANA: Às vezes, a gente sente que acredita mesmo em fantasma.

Ficamos em profundo silêncio até o fim da sessão. Ao sair, Bruno me diz: “Esse fantasma me apavora”. Eu lhe proponho: “Talvez a gente consiga conversar com ele”.

Algum tempo depois Bruno retoma essa questão, comparando o pai miserável com o avô rei-deus, tomando contato com o sofrimento que essa vivência produz nele: “Eu sempre penso que se não for um grande pesquisador vou ser um nada, um miserável, impotente, como meu pai”.

Bruno fica em silêncio um bom tempo. Começa a suar e a respirar com dificuldade, e me pede para abrir uma janela. Eu o faço. Ele agradece e continua quieto. Um tempo depois diz:

BRUNO: Eu fiquei aqui suando e quase sem respirar.

ANA: Respirar é necessário para viver. Comunica o dentro e o fora. Que aflição ficar sem respirar!

BRUNO: Nossa, eu nunca tinha pensado nisso! Sempre pensei que respirar fosse uma coisa natural, mecânica, mas se a gente abre uma janela pode respirar melhor.

ANA: Você se sente sufocado e não conseguiu ainda abrir uma janela para você.

Bruno experimenta um grande impacto com a minha fala e começa novamente a ter falta de ar. Eu me sinto muito angustiada, mas me contenho em silêncio. Tenho vontade de buscar um copo d’água, ligar o ar-condicionado, fazer qualquer coisa para trazer alívio, mas percebo a importância da experiência emocional que estamos vivendo. Também eu me sinto sufocada e sem ar, mas una com o sufocamento de Bruno, embora conscientemente separada dele.

Pensei nesses respiradores de uti, onde a situação é muito delicada e o equilíbrio entre vida e morte muito instável. Depois pensei nos respiradores usados em mergulhos de profundidade no mar, onde podemos ver belezas e perigos. Esses pensamentos/imagens me ajudaram a tolerar a falta de ar daquele momento.

Aos poucos Bruno se acalma e retoma a respiração natural. Eu também vou me sentindo mais confortável. Ficamos um bom tempo em silêncio. Quando a sessão termina, Bruno se levanta e diz: “Acho que a gente abriu uma janela na minha vida hoje”. Eu me senti profundamente comovida.

Penso que essa intensa experiência emocional de unicidade entre analista e analisando (at-one-ment), que se expressa primeiramente no sufocamento físico e na abertura de uma janela real/concreta na sessão, só foi possível porque estávamos os dois presentes de corpo e alma, transformando as vivências sensoriais em imagens-sonho e nomeando emoções profundas para que o analisando pudesse sentir e transformar em pensamento seu “sufocamento psíquico/objeto psicanalítico/ameaça de morte psíquica”, ameaça que só pôde ser vivenciada porque houve o nascer da vida psíquica naquele momento, encravada/desencravando-se do corpo e ainda não alcançada. Busca por ser e existir emergindo das profundezas da mente primitiva/primordial? Um movimento de O para K?

Parece ter sido uma experiência transformadora, mas creio que só a continuidade do trabalho analítico vai nos permitir pensar e retomar as ressonâncias desse momento e encontrar novos mistérios.

Essas foram as observações que pude fazer ao longo desses meses de experiência e reflexão sobre a importância do trabalho presencial em psicanálise, especialmente no que diz respeito à análise de jovens analistas, considerando a análise do analista como pilar básico de sua formação, trabalho psíquico necessário em sua amplitude e profundidade para aqueles que pretendem inclinar-se sobre a alma humana. Lembro aqui a necessidade de uma consideração paciente e cuidadosa, que respeite as condições da dupla analítica, mas que não deixe de levar em conta as condições mínimas necessárias para o trabalho analítico, como procurei apontar.

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Recebido: 04 de Julho de 2022; Aceito: 13 de Julho de 2022

Ana Maria Stucchi Vannucchi anavannucchi@gmail.com

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