O destaque de Bion à mente primordial favorece ao indivíduo reconhecer tais manifestações, transitar por elas e talvez vir a transformá-las. Desse modo, aquelas vivências aterrorizadoras sem representação poderão eventualmente adquirir algum significado e tornar-se passíveis de serem nomeadas e pensadas. A tarefa do analista seria estabelecer uma comunicação entre áreas não nascidas da mente e áreas já nascidas, seria transpor a cesura que separa esses dois universos.
Celia Fix Korbivcher
Mas continuo não sabendo que linguagem utilizar caso tente me comunicar com alguém “que não eu”.
Wilfred R. Bion
Só o sonho é inevitável. Quanto ao resto,
há sempre a possibilidade aberta
de fazer outro gesto, dizer uma
palavra que é o contrário de si mesma.
De puro há a alucinação, a imagem
de alguma coisa rara escorregando
por entre dedos que se fecham em garra,
grudentos de vazio.
Paulo Henriques Britto
Psicanálise: teoria e técnica em expansão
A expansão da teoria e da técnica psicanalítica foi e é acompanhada pela busca permanente de formas efetivas de analista e analisando conversar. Este trabalho pretende iluminar aspectos técnicos emergentes em psicanálise após as contribuições de Bion, a partir da teoria do pensar (1962 e 1963), da teoria das transformações (1965 e 1970) e das suas ideias posteriores sobre a mente primordial (1976 a 1979).
Em 1914, Freud alertou: “Não me parece desnecessário lembrar continuamente, àqueles que estudam psicanálise, as profundas alterações que a técnica psicanalítica sofreu desde o início” (2011, p. 194).
À medida que privilegiamos uma psicanálise com várias sessões semanais, observamos cada vez mais a presença de áreas mentais não nascidas, expressas por terror, pânico e desespero, mesmo em pessoas que não apresentam, aparentemente, expressões com tal qualidade de sofrimento. Buscamos as origens dessas vivências através de uma técnica que contemple os fenômenos que foram agrupados ontogeneticamente antes da mente primitiva de Melanie Klein (Braga & Korbivcher, 2018). Trata-se de uma gama de sofrimentos cuja origem é ainda mais antiga e inacessível: áreas pedregosas e estéreis da vida emocional que mobilizaram, nos últimos trabalhos de Bion, um conjunto de observações e que ele denominou estados inacessíveis da mente, a mente primordial.
A percepção de uma mente constituída por áreas protomentais, elementos fetais, áreas não nascidas, terrores subtalâmicos, permanece inacessível até que se disponha de elementos técnicos que iluminem seu acesso.
São fenômenos inacessíveis, os quais, em tempo inicial do desenvolvimento da psicanálise, atingiram também a teoria freudiana. O acessível para Freud era o que se podia analisar em pessoas capazes de formar relações anaclíticas. Os fenômenos mentais que se apresentavam nas relações narcísicas eram inacessíveis à psicanálise. O próprio Freud reconsiderou suas concepções teóricas e técnicas, todo o tempo, em busca de ampliações que fortalecessem uma técnica mais abrangente e sofisticada: o complexo de Édipo, por exemplo, ganha amplitude e tridimensionalidade quando revisto em O eu e o id(1923/2012) e Inibição, sintoma e angústia(1926/2014). Os movimentos metapsicológicos da transferência foram pensados, repensados e expandidos várias vezes.
As ideias de Melanie Klein, ao iluminar a mente primitiva, desobstruíram a impossibilidade do acesso clínico a esses fenômenos. Houve importante expansão da técnica psicanalítica após o advento da teoria kleiniana.
Atualmente, mais e mais autores vêm se ocupando das áreas primordiais e das possíveis formas, se existem e quando existem, de entrar em contato com elas. Essas áreas, que têm na cesura um possível acesso, quando não trabalhadas, impedem qualquer desenvolvimento da mente e mantêm inacessíveis regiões de autismo e terror. Considero os trabalhos “Evidência” (Bion, 1976/1981b) e “Cesura” (Bion, 1977/1981a) como o início do estudo e aprofundamento de uma nova técnica para lidar com esses fenômenos, uma oportunidade de tentar transitar pela própria cesura existente entre a mente primordial e a mente primitiva.
Em função de sua amplitude, vou delimitar o campo deste trabalho entre dois pontos retirados de “Cesura”, onde está localizado o cerne do que pretendo enfatizar:
Dar uma interpretação significa que o analista tem que ser capaz de verbalizar uma afirmação dos seus sentidos, intuições e reações primitivas ao que o paciente diz. Essa afirmação tem que ser eficaz como um ato físico é eficaz.
Assim, retornamos ao problema de como transcender a cesura quando nos movimentamos de um estado de mente para outro; de como superar os vários obstáculos no decurso de uma jornada de desenvolvimento psicológico ou espiritual; de considerar aqueles obstáculos como patológicos, necessitando portanto de termos patológicos para descrevê-los, ou não patológicos. Na experiência psicanalítica, estamos interessados na translação tanto na direção do que não sabemos para alguma coisa que sabemos ou podemos comunicar, quanto na direção do que sabemos e podemos comunicar para o que não sabemos e não estamos a par, porque é inconsciente e pode mesmo ser pré-natal ou pré-nascimento de uma psique ou uma vida mental.
A transferência, a contratransferência, a transferência-contratransferência, e mais além
Psicanalistas trabalham com ideias que se movimentam. A busca por romper com o inacessível em psicanálise é o motor de sua expansão. Cada vez que a clínica se mostra insuficiente para acessar diferentes dimensões de profundidade psíquica, surgem novos olhares, novas conjecturas, que nos ampliam a visão do que existe mas não pode ser acessado. Todos os nossos preparativos para exercer psicanálise se assentam no desenvolvimento pessoal de internalizar e suportar o desconforto dessa condição. Psicanálise não cabe dentro do saturado. A mente se movimenta, e precisamos construir continentes para o novo e para o desconhecido. A própria psicanálise se define dentro da ideia da metapsicologia, e um dos pilares do ir além da psicologia é a psicodinâmica. Freud, Klein, Winnicott e Bion retomam com ênfase a importância desses movimentos.
A evolução e ampliação do conceito de transferência, na própria obra de Freud, é um exemplo contundente do reconhecimento e necessidade de aceitar e criar novos olhares a partir desses movimentos.
Freud refina a sua observação e curiosidade sobre ela desde o estudo dos casos de histeria (1895/2016), mas é no posfácio do caso Dora (1905/2017) que reconhece, com sofisticada acuidade e tristeza, ser a ausência do trabalho da transferência a consequência da evolução clínica insatisfatória de Dora:
De modo que fui surpreendido pela transferência, e, em virtude desse algo desconhecido em que eu lhe lembrava o sr. K, ela se vingou de mim como quis se vingar dele e me abandonou, tal como acreditou haver sido enganada e abandonada por ele. Assim ela atuou uma parte essencial de suas lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-la no tratamento. (p. 316)
Freud atualiza a sua visão sobre a transferência mais algumas vezes. Não nos deteremos na evolução dessas ideias por não se tratar do campo principal deste trabalho, mas destacamos a importância dessas reflexões em “A dinâmica da transferência” (1912/2010b), “Recordar, repetir e elaborar” (1914/2011), Além do princípio do prazer (1920/2010a) e Inibição, sintoma e angústia(1926/2014).
Ao delimitar a transferência como algo vivido pelo analisando a partir de sua experiência com o analista, e a contratransferência como algo experimentado pelo analista, que, recebendo influência inconsciente de seu paciente sobre seus afetos, fica impedido de exercer a função analítica com clareza e discernimento, temos um campo técnico que norteou durante muitos anos o fazer psicanalítico.
Com o advento das conjecturas de Bion na teoria do pensar e na teoria das transformações, sai do campo principal de observação a elaboração interpretativa sobre o “tornar consciente o inconsciente” e a representação simbólica, amplamente desenvolvida na teoria kleiniana.
A atenção é ampliada e passa a abarcar a comunicação pré-verbal captada pela reverie, devaneios e sonhos diurnos do analista vividos na sessão, que são apreendidos pela sua intuição psicanaliticamente treinada e elaborados através do trabalho de sonho alfa (Bion, 1962/1980, 1963/2004a). O sonho diurno apresentado em devaneios, distrações e ideias que parecem a princípio nada ter a ver com a fala do paciente ganha um espaço técnico fundamental para o trabalho da dupla analista-analisando.
Outro passo importante é a contribuição de Ogden (1995, 1994/1996), que apresenta sistematicamente a expressão transferência-contratransferência como um fenômeno único, o qual, se considerado, amplia de maneira significativa a nossa condição técnica interpretativa e a manutenção de uma análise vitalizada.
Abre-se, porém, a necessidade de discriminar o que seja contratransferência de uma comunicação do material inconsciente pré-verbal captada pelo analista, através da experiência emocional consciente gerada nele pela função comunicadora da identificação projetiva de seu analisando (Bion, 1962/1980). A expressão transferência-contratransferência pode induzir ao equívoco de que ambas constituem idêntico fenômeno.
Em Experiências com grupos, Bion faz essa discriminação de forma explícita:
No tratamento de grupo, muitas interpretações – e entre elas as mais importantes – têm de ser feitas fiando-se nas próprias reações emocionais do analista. Acredito que estas reações dependem do fato de o analista no grupo encontrar-se na extremidade receptora daquilo que Melanie Klein (1946) chamou de identificação projetiva e que esse mecanismo desempenha um papel muito importante nos grupos. Ora, a experiência contratransferencial me parece possuir uma qualidade inteiramente distinta, que permite ao analista diferenciar a ocasião em que é objeto de uma identificação projetiva daquela em que não o é. (1961/1975, p. 137)
No desenvolvimento de suas ideias, Bion mantém, com clareza, a discriminação entre a experiência emocional do analista e sua importância para a elaboração do que dizer ao analisando e a contratransferência. No seminário 11, em Buenos Aires, ele afirma:
Se sabemos que estamos furiosos ou com raiva do paciente, não creio ser correto tecnicamente chamar isso de contratransferência; creio ser algo com que se pode trabalhar. Mas a contratransferência, como é inconsciente, não pode ser utilizada em análise. Se usamos a palavra contratransferência, é importante do ponto de vista científico e semântico nos darmos conta de que estamos utilizando uma teoria como modelo para outra coisa. Uma das nossas dificuldades é que temos de ser muito precisos; creio ser algo que se acrescenta a todos os nossos outros problemas, nominar as coisas adequadamente. (Bion, 2019, pp. 192-193)
Ele mantém essa posição teórica, e a retoma dentro do mesmo ponto de vista, em vários seminários e supervisões na década de 1970 (López-Corvo, 2008).
Em Transformações (1965/2004b), Bion avança e propõe examinar se estamos diante de um fenômeno transferencial, chamado de transformação rígida, se estamos diante de uma transformação projetiva, quando o elemento fundamental é a identificação projetiva descrita por Klein (1946/1991) e percebida por Bion (1961/1975, 1962/1980) como um fenômeno de comunicação de elementos aquém do verbal ou simbólico, ou se estamos diante de transformações em alucinose.
Nesse último caso, coloca-nos diante de transformações a partir de elementos violentos (inveja, voracidade, rivalidade) que emergem da mente primitiva – ou, em minha presente observação, diante de terrores indiscriminados oriundos de partes não integradas e não nascidas da mente primordial.
O campo das transformações projetivas e das transformações em alucinose não pode ser abarcado pela transferência e exige um manejo técnico especial.
Na situação de transferência haveria uma reação a um estímulo observável. Neste outro nível, o que se precisa saber é qual é o estímulo. O analisando “reage” a um estímulo não observável. E a questão é descobrir qual é ele. (Castelo Filho, 2001, p. 1041)
Sobre alucinação, alucinose e alucinatório
Os conceitos de alucinação e alucinose são concepções saídas da psiquiatria e que foram tomando corpo e ganhando expressão conceitual diferente em psicanálise, principalmente à medida que as conjecturas de Bion se desenvolveram no sentido da teoria do pensar para a teoria das transformações. São conceitos que abandonam a dimensão psicopatológica e passam para o âmbito do funcionamento natural da mente humana.
O alucinatório integra a dimensão psíquica, como propõe Braga (2003) a partir de Transformações, e os conteúdos protomentais e oníricos são elementos vivos, habitantes dessa dimensão. Esse olhar permite, através da cesura e da alucinose, acesso às vivências emocionais que definem um universo construtor de realidades paralelas ao senso comum. O analista, através dessa porta-cesura-alucinose, pode transitar junto a elementos emocionais que permaneciam em estado pétreo, não nascidos. A partir do trabalho de sonho alfa do analista, tais elementos podem ser transformados em algo que tenha linguagem útil para a realização mental, que seja capaz de “tocar a alma” da dupla – analista e analisando – e produzir outra experiência emocional, em que os elementos primitivos e primordiais podem (ou não) vir a ser apreendidos, representados, pensados e integrados ao repertório onírico (Perrini, 2009).
Levar em conta fronteiras conceituais claras entre mente primitiva e mente primordial colabora para uma acepção mais fina e uma técnica mais precisa para o trabalho psicanalítico.
Não existindo para o analisando o outro, não há ligação, não há vínculo, não há “cópula”. Na mente primitiva, inexiste a possibilidade da simbolização. Utilizo aqui a ideia apresentada por Odilon de Mello Franco Filho (2006), citando Rezende, sobre a origem etimológica de símbolo, que remete à noção de cópula, exatamente a possibilidade de conjunção quando existem – e somente quando existem – dois “diferentes” que se vinculam.
Os conceitos de sonho-a-dois e reverie, enquanto possibilidades de captação da comunicação pré-verbal, cedem lugar como instrumentos técnicos – quando se considera a mente primordial – a um novo entendimento de alucinose e alucinação: o que se pode comunicar ao analista é um estado mental de absoluta esterilidade, vazio e terror, que pode emergir em forma de alucinose e alucinações e, assim, ser captado pelo analista intuitivo.
Não é mais o sonho, como já não é mais a transferência, nem a contratransferência, nem a transferência-contratransferência, mas as transformações em alucinose do analista que passarão a ser objeto do interesse técnico psicanalítico. Nessa seara, podemos buscar atingir alguma linguagem de emoção, na expressão de Korbivcher (2017).
Percebo ser esse um caminho novo e apreensível a partir das conjecturas de Bion e que permite especial aproximação do trânsito de O K.
Na epígrafe inicial, o poeta Paulo Henriques Britto é tocado e compartilha esta sutil apreensão:
De puro há a alucinação, a imagem
de alguma coisa rara escorregando
por entre dedos que se fecham em garra,
grudentos de vazio. (2013, p. 45)
A alucinose ocupa supostamente o espaço de uma experiência que não pôde existir (Franco Filho, 2006), um terreno onde só cabem as alucinações. “O sonho representa algo, comunica algo usando imagens e eventualmente sons e sentimentos. Nos estados (somente) alucinatórios, o que é percebido não representa, é!” (Castelo Filho, 2001, p. 1048). Nesse sentido, a alucinação é “pura”, virgem, vazia. Tais experiências não podem, portanto, ser captadas por reveries, porque não existem como realidade emocional. Estão à espera de uma fenda para existir, para transpor a cesura entre a mente primordial e a mente primitiva, para ser captadas na mente primitiva e transformadas em elementos beta – estes, passíveis da ação fertilizadora da função alfa.
Transformações em alucinose e alucinose-a-dois podem ser o primórdio de futuros nascimentos.
A presença viva do analista fazendo parte do processo de transformação em alucinose e de alucinose-a-dois junto com o analisando é, a meu ver, o ponto difícil e sofisticado que Bion oferece para, tecnicamente, ganhar acesso a elementos mais profundos da mente primitiva, e ao mundo não-integrado e/ou autístico da mente primordial:
Receptividade adquirida por despojamento de memória e desejo (que é essencial para a operação de “atos de fé”) é essencial para que a psicanálise e outros procedimentos científicos operem. É essencial para experimentar alucinação ou o estado de alucinose. Eu não considero esse estado como um exagero de uma patologia ou mesmo de uma condição natural; considero-o mais como um estado que está sempre presente, mas superposto a outros fenômenos, que o encobrem. Caso esses outros elementos possam ser moderados ou suspensos, a alucinose se torna demonstrável; sua plena riqueza e profundidade são acessíveis apenas aos “atos de fé”. Os elementos de alucinose possíveis de serem apreendidos sensorialmente são apenas as manifestações mais grosseiras e de menor importância; para avaliar a alucinação o analista precisa participar do estado de alucinose. (Bion, 1970/2007, p. 49)
A captação e a vivência dessas transformações em alucinose, experimentadas pela dupla, se ampliam com conjecturas que facilitam o acesso à percepção da natureza da mente primordial. O acesso ao nascimento dos fenômenos mentais exige intuição psicanaliticamente treinada, paciência e “fé”.
Korbivcher oferece às teorias de Bion algumas ideias que traduzem essas ampliações. A discriminação feita, por exemplo, entre uma barreira autística produzida pelos elementos autísticos e uma dispersão provocada pelos elementos não integrados me parece, igualmente, fundamental:
Assim como os elementos alfa e beta agrupados dão origem respectivamente à barreira de contato e à tela beta, os elementos autísticos agrupados dão origem à barreira autística. Já os elementos não integrados quando agrupados não produzem qualquer tipo de barreira; ao contrário, eles se esparramam e se dispersam. (Korbivcher, 2020, p. 180)
A percepção intuitiva de que o analista atento e experiente possa exercer sua condição de reverie e de função alfa dependendo da possibilidade de encontrar alguma porosidade (fendas) nessa barreira autística torna o acesso a essas distantes partes da mente primordial algumas vezes possível.
Frente aos estados não integrados, resta ao analista por meio da sua intuição ser capaz de estar em uníssono com a situação mental do paciente e conter aqueles elementos esparramados de modo a reuni-los para que adquiram algum contorno. O analista será, talvez, capaz então de sonhar esses conteúdos ali reunidos e atribuir-lhes significado. Desse modo, aquilo que antes eram elementos não integrados agora tornam-se elementos beta, passíveis de serem transformados em elementos alfa. O paciente, experimentando diversas vivências como essa, poderá sentir-se estimulado a abandonar suas manobras autísticas protetoras e compartilhar experiências próprias de seres vivos, que envolvem a tolerância de dor mental, sofrimento, sem sentir-se tão vulnerável. (Korbivcher, 2020, p. 181)
Destaco a utilidade da conjectura apresentada de que os elementos não integrados – ou não agregados, uma vez que a palavra agregar dá melhor ideia de um aglomerado sem nenhuma possibilidade de consistência ou identidade – e os elementos autísticos, a partir de um movimento técnico-psicanalítico original, caminham algumas vezes no sentido do nada-pétreo-inanimado para a possibilidade inédita do vir a ser elementos beta. A função alfa do analista pode finalmente ser acionada.
Considerar esses aspectos coloca-nos em um espaço mental anterior ao sonho-a-dois. À medida que suportamos com “fé” (Bion, 1970/2007; Eigen, 1985) a não ação de saturar o campo da análise com elementos conhecidos oriundos de nossos desejos, memórias ou explicações, passamos a dispor de um movimento precioso que transita entre alucinose-a-dois ↔ sonho-a-dois.
Pensando a clínica
A clínica psicanalítica, considerada a partir das ideias evolutivas apresentadas e das conjecturas técnicas sugeridas por Bion, traz em seu bojo a possibilidade da construção de um vínculo – analista-analisando – em que ambos participam de vivências de expansão mental. A presença internalizada de um modelo de mente multidimensional permite a apreensão e elaboração de fenômenos conscientes, inconscientes, não agregados e autísticos enquanto se transita por áreas desenvolvidas, primitivas e primordiais, durante todo o tempo de uma sessão.
Incorporar à função analítica a intuição psicanaliticamente treinada e a função alfa permite ao analista considerar que o manejo da alucinose e da reverie, nesse trânsito entre alucinose-a-dois ↔ sonho-a-dois, requer cuidado, cautela e profunda elaboração para sentir-apreender-saber e constantemente se perguntar: “O que falar? Para que falar? Quando falar? Como falar?” (Perrini, 2021, p. 119).
Internaliza-se o que Ogden (2020) define como psicanálise ontológica: o analista afinado com o seu ser vai ao encontro do ser do analisando e daquilo que vive a dupla analítica. Cada vez mais, busca-se viver a dimensão em que conhecer faz parte de um aspecto importante da análise, mas ela não representa sua única possibilidade, nem a mais importante, que é se aproximar do ser sofredor, e o reconhecer misterioso em todos os meandros, espaços e cavernas onde estão nossas raízes.
A partir da análise pessoal do analista que pôde contemplar com acolhimento e empatia as suas próprias áreas primitivas e primordiais, ele pode desenvolver (ou não) recursos para se aproximar dessas mesmas áreas com seus analisandos. Ele pode acolher dentro de si o fato de que, afinal, todos somos pacientes de difícil acesso. Experiências de terror, pânico e medo passam a ser comunicadas de forma não verbal, podendo ganhar comunicação quando transformadas em alucinose e vividas sofridamente pela dupla. Ganha destaque a possibilidade qualitativa de acesso a outra dimensão clínica. Sublinho, novamente, o apontado por Bion: “Os elementos de alucinose possíveis de serem apreendidos sensorialmente são apenas as manifestações mais grosseiras e de menor importância; para avaliar a alucinação o analista precisa participar do estado de alucinose” (1970/2007, p. 49).
Pensar/alucinar, apontado por Braga (2003) como um espectro definidor da dimensão alucinatória, passa a ser um instrumento importante e sofisticado do trabalho psicanalítico, e outra possibilidade de trabalho da função alfa para o analista diante da alucinose.
A observação clínica sugere considerar a alucinação e a alucinose como uma dimensão sensorial da intuição do analista que, percebida no vínculo analista-analisando, pode significar importante recurso técnico e fornecer acesso a áreas de terrores e sofrimentos profundos não vividos da mente primitiva e primordial.
Mara estava em análise havia cerca de cinco anos, em um ritmo de quatro sessões por semana. Era uma analisanda que parecia cuidar da análise. Estava sempre presente, bem-humorada e atenta aos movimentos de sua vida mental, embora, com frequência, despertasse em mim uma sensação imprecisa, mas forte, de que algo nos era inacessível. Em algumas sessões, apresentava enormes períodos de silêncio, que eram trabalhados a partir das reveries que esses silêncios produziam em mim. A sessão a que me refiro aqui aconteceu nessa época. Mara chegou e me cumprimentou. Eu, sobressaltado, vi uma extensa mancha escura em torno de seus olhos. Essa imagem me impressionou profundamente, me intrigou, mas nada fiz, a não ser me encaminhar para a minha poltrona. Ela deitou no divã e passou a falar coisas de sua vida, absolutamente desconectadas do traumatismo que enxerguei.
Percebi que havia em mim um incômodo e um desejo de saber o que tinha acontecido. Aguardei. Como o incômodo não se afastasse, resolvi olhá-la de novo, do ângulo que tinha para ver seus olhos, e não consegui ver mancha nenhuma.
Fiquei evidentemente muito intrigado. Segui nesse movimento, pensando que o ângulo da minha visão certamente não favorecia que eu enxergasse o hematoma. Passou-se cerca de meia hora até que eu pudesse perceber que não havia hematoma nenhum, fato que me intrigou ainda mais.
Eu teria alucinado aquela mancha escura em torno de seus olhos? Com cuidado, e desconfiado, percebia que a sessão seguia aparentemente dentro da normalidade de uma sessão de Mara, até que pude acolher o que vivia e transformar em algo para dizer a ela. Disse-lhe que, apesar de o assunto que trazia me parecer ser importante, havia em mim uma forte sensação de que ela também me comunicava uma contusão, algo que a havia machucado intensamente, como se ela tivesse, por exemplo, levado um soco.
Um sobressalto tomou conta de Mara, que deixou a calma aparente em que se encontrava, entrou em um silêncio angustiado e passou a chorar.
Depois de um tempo, disse que se percebia evitando falar de uma sensação muito ruim. Após outro silêncio, seguiu dizendo que havia uma violência nela, que ela se boicotava impulsivamente, que fazia movimentos muito claros de ataque a seu trabalho, a seus colegas e até a seus filhos, e que de fato estava se comportando como alguém que se agredia repetidas vezes. Disse ainda que percebia evitar falar disso comigo, pois achava que era apenas algo passageiro, e que não queria tumultuar “o bom andamento de sua análise”. Pouco depois admitiu “sensações terríveis” de pânico, terror e medo, que persistentemente escondia de nós.
Perplexo, percebi que, se eu também tivesse desvalorizado a minha intuição de que havia algo inacessível em Mara ou a minha nítida alucinação da mancha escura em seus olhos, essa sessão não teria sido um marco divisor na análise dela.
Na minha percepção atual, hoje um pouco mais convicta, fatos dessa dimensão precisam ser considerados e trabalhados cuidadosamente quando ocorrem. São momentos preciosos, em que a intuição ganha uma especial dimensão sensorial e nos chega através do impacto emocional de uma alucinação.
A força dessa experiência está marcada em mim, mas se configurou mais intensamente quando Mara me deu a mão, disse obrigado e saiu, enquanto eu ainda me certificava da ausência do hematoma em seus olhos.
Considerações finais, sempre intermediárias
Na travessia infindável que fazemos no sentido do vir a ser psicanalista, todas as considerações passam a ser intermediárias. Estamos sempre em trânsito.
A reverie e o sonho-a-dois, quando comecei a considerá-los em minha experiência clínica (Perrini, 2017), trouxeram também ares de sobressalto e medo, como os que relatei na experiência analítica vivida com Mara. A tensão de reconhecer a alucinose como um campo fino de comunicação e aprender a transformá-lo em algo que possa colocar em sintonia analista e analisando tem sido um trabalho ainda mais árduo e cuidadoso.
O tempo e a função analítica internalizada dão o acabamento ao que nasceu bruto, mas que, lapidado, pode vir a ser precioso.
Este trabalho pretende ser também uma manifestação de gratidão a tantos autores que generosamente compartilham suas ideias e, em especial, suas experiências vivas.
Maria Grazia Oldoini, psicanalista italiana, tem se dedicado a essa possibilidade de observação, reflexão e compartilhamento. Concluo com um fragmento de texto seu:
Minha proposta é ir além da dicotomia entre formas fisiológicas e formas patológicas de alucinose: proponho, em vez disso, considerar a alucinose um fenômeno com dois lados, um com vistas para o funcionamento psicótico, o outro para o onírico. A possibilidade de transformar a alucinose em sonho irá depender substancialmente do analista suportar essa condição pelo tempo necessário para reavivar, primeiro, sua capacidade de sonhar, e, logo, a função onírica da dupla analítica. A oscilação funcionamento psicótico ↔ funcionamento onírico irá operar como um verdadeiro processo metabólico, “digerindo” ao longo do tempo quantidades cada vez maiores de alucinose. O mundo emocional da alucinose, estático, hiperconcreto e desertificado, poderá então começar a ganhar vida com imagens e narrações que poderão funcionar como “continentes” de emoções vivas, que assim irão adquirir níveis cada vez maiores de tolerabilidade. (2020, p. 96)