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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2022  Epub Aug 12, 2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n4.12 

Resenhas

Símbolos em psicanálise: Continentes de experiências emocionais

Ana Maria Stucchi Vannucchi1 

1Docente e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Símbolos em psicanálise: Continentes de experiências emocionais. Mélega, Marisa P.. Blucher, 2022. 181p.


A leitura do livro Símbolos em psicanálise, de Marisa P. Mélega, despertou meu interesse e me proporcionou uma experiência emocional de profundo arrebatamento em vários momentos. A autora se propõe a desvendar o misterioso salto entre o sensorial e o psíquico, ou seja, qual seria o limite entre o corpo e a mente, ou mesmo entre o corpo e a alma. Desde o início da história da filosofia, esse problema esteve presente, trazendo sempre dúvidas e inquietações, e motivando a curiosidade humana.

Marisa esclarece que o próprio conceito de símbolo é ambíguo e comporta muitas acepções diferentes. Propõe-se a examinar a questão a partir de Esther Bick, com a observação da relação mãe-bebê; de Bion, com a teoria do pensar; e de Meltzer, com a noção de conflito estético. Enfatiza a presença – e não a ausência – do objeto como elemento necessário para o processo simbólico. Penso que, embora Bion ressalte a ausência do objeto primário e a tolerância à frustração como determinantes da capacidade de pensar, a presença anterior do objeto é também fundamental para que a ausência seja sentida e suportada. Por isso Bion (1962/2022) põe a experiência emocional de satisfação no encontro entre a preconcepção do seio e sua realização, dando origem à concepção.

Evidentemente, o seio encontrado é diferente do seio desejado, mas houve um encontro – essa realização encontrou uma contraparte na realidade. A diferença entre o seio real e o seio desejado corresponde ao não seio, que se for tolerado dará origem ao pensar, ao simbolizar. São dois passos no processo de pensar: a concepção, linha E da grade, e o conceito, linha F da grade, ou seja, presença e ausência do objeto.

Cecil Rezze (2021) desenvolve esse aspecto ligado à satisfação – que ele chama de prazer autêntico, vivido diante da presença do belo – como elemento fundamental da possibilidade de viver e pensar. Destaca aí sua visão clínica e a diferença entre o prazer autêntico e o princípio do prazer.

Creio que a inclusão da teoria do pensar se deve à necessidade de considerar o pensar como um processo que inclui as emoções, sendo portanto uma atividade que depende de experiências emocionais e transcende em muito os processos lógicos e racionais, como aponta a autora ao longo do livro. Achei muito importante esse caminho para refletir sobre a simbolização, e especialmente manter o foco nos símbolos autônomos e individuais, que interessam ao psicanalista, para além dos símbolos culturais, que são comuns aos indivíduos de uma sociedade. Acredito que aqui reside um ponto significativo da especificidade da psicanálise, em que a autora se aprofunda colocando-se em parceria com os autores anteriormente citados. A simbolização vai depender não apenas da capacidade de suportar frustração e dor mental – que Bion (1963/2004) aponta como elemento de psicanálise, constituinte do objeto psicanalítico –, mas também da capacidade de introjetar o bom objeto, o que na linguagem de Bion seria manter a dinâmica continente/contido, e ps/pd, mediada pelo fato selecionado.

Marisa mostra de que maneira, dentro da história da psicanálise, a questão da simbolização está sempre presente, seja nos sonhos, como propôs Freud, seja no brincar, que para Klein se equiparava aos sonhos, representando desejos, fantasias arcaicas primárias, precursoras da simbolização. O símbolo seria um recurso para expressar a atividade da phantasia inconsciente, além de uma defesa contra a ansiedade e uma expressão de criatividade.

Por meio do modelo epistemológico de mente criado por Bion, a autora destaca a função alfa como função mental responsável pela transformação do sensorial em psíquico, ou seja, pela movimentação do concreto para o abstrato. Além dos já citados continente/contido e ps/pd, temos os vínculos L (amor), H (ódio) e K (conhecimento), fundamentais como elos emocionais que estabelecem relações entre os objetos, pois pensar tem a ver com estabelecer relações e aproximar-se do princípio de realidade. A reverie, função materna tão importante, depois introjetada pelo bebê, se constitui num fator da função alfa. A ampliação da noção de consciência proposta por Bion, no lugar da ideia de um pré-consciente, trouxe a necessidade da noção de barreira de contato, emprestada de Freud, mas que aqui permite a permeabilidade entre consciente e inconsciente, tão relevante para o desenvolvimento da função alfa, dando lugar posteriormente à noção de cesura entre várias dimensões mentais, funcionamento essencial para o desenvolvimento do pensamento onírico inconsciente. Marisa lembra que o vínculo K só é possível quando os vínculos L e H estão presentes, porque se forem vínculos negativos – menos amor, menos ódio e menos conhecimento – estaremos em território de não emoções, e portanto de des-conhecimento e não superação do conflito estético, diferente de falso pensamento, ligado à área de alucinose.

A autora apresenta vários casos de observação mãe-bebê e de análise de crianças pequenas, colocando-nos em intimidade com o “berço” dos símbolos. Elementos ambientais são considerados, mas sempre levando em conta aspectos da personalidade da criança, a capacidade de introjeção (nomeada de força do ego), a presença de espaço interno, a tridimensionalidade, a capacidade de empreender tentativas de solução da frustração, vistos como indicadores de capacidade simbólica. Penso aqui nas preconcepções, elementos necessários para uma realização tornar-se concepção – preconcepção do seio e preconcepção edípica – e que podem ser atacados pela destrutividade e violência da personalidade da criança.

Outro aspecto importante se relaciona ao espírito de pesquisa e investigação que norteia o trabalho: foram estudadas 19 díades mãe-bebê. Vários colegas contribuíram com suas experiências de observação de bebês, detalhada e afetivamente relatadas, mantendo o vértice analítico.

A capacidade simbólica do bebê é associada à sua capacidade de preencher a ausência do objeto primário com um objeto substituto, aproximando-se da noção de objeto transicional, de Winnicott, que se cria no percurso entre o objeto subjetivo e o objetivo, como vemos no caso do bebê Paulo, que se distrai e suga sua mãozinha na ausência da mãe, ou fixa um ponto de entretenimento no teto, expressando uma relação entre o registro interno e a presença concreta da mãe. Os primórdios da mente simbólica estão relacionados a essa capacidade de transferir vínculos, que supõe uma capacidade de abstração no salto do sensorial para o psíquico.

A autora se pergunta como se dá a internalização de um objeto continente. Distingue apego de dependência, enfatizando o apego como a necessidade do outro para satisfazer certos impulsos, como o objeto integrador para lidar com estados não integrados, e o sentimento de existência propiciado pela internalização do objeto primário, numa fronteira entre o dentro e o fora, criando espaço interno para simbolizar, ou seja, um continente capaz de receber conteúdos e transformá-los por meio do movimento ps/pd. Esse drama aparece no desmame de Betina, a qual, por não ter internalizado um seio pensante, não pode lidar com a ausência da mãe, e também no caso da mãe de Arminda, que, sem condições de reverie, precisa da companhia da filha “para não ficar sozinha”, o que não permite o desenvolvimento da mente simbólica.

Na parte dedicada ao trabalho com análise de crianças, também podemos ver o nascedouro dos símbolos. Por exemplo, no comovente caso de Pedro, tratado em intervenção terapêutica conjunta pais e filhos, em que ele consegue mostrar “que não é aquele menino errado e quebrado, mas que é capaz de consertar e preservar a vida” (p. 73), elaborando os irmãos perdidos nos abortos que o precederam e escolhendo o esconde-esconde como forma de nascer para a mãe.

Nos casos apresentados de crianças em análise, entramos em contato com a intimidade da formação de símbolos por meio do brincar, do desenhar, do dramatizar, em que a “expressão da phantasia inconsciente, durante a experiência emocional com o analista, é entendida como uma formação simbólica” (p. 87). Os casos de Gianni e Hélio são expressivos. Esse último ilustra claramente a noção de mudança catastrófica proposta por Bion, quando a chegada da ideia nova (gravidez da mãe) fragmenta a estrutura psíquica anterior, pondo o menino em contato com a ameaça de uma catástrofe, mas oferecendo também a oportunidade de um salto em direção ao crescimento psíquico.

O mistério da função alfa e de sua expressão por meio de uma imagem – a imagem da igrejinha de determinada localidade descrita por Bion em Cogitações (1992/2000) – é lindamente citado, ilustrando esteticamente o salto da sensorialidade rumo ao psíquico.

É emocionante o relato do atendimento de Carina, que intuiu a gravidez da analista, algo de que ela própria nem desconfiava – “Tem alguém atrás da senhora” (p. 95) –, exprimindo essa vivência por meio de desenhos criativos e expressivos. “Estou atenta a outro?”, pergunta-se a analista (p. 96). Apresenta-se um jogo de adivinhação, o desejo de entrar no objeto para conhecê-lo, numa transformação gradativa da imagem, configurando um processo simbólico.

Heitor, por exemplo, expressa seu desenvolvimento simbólico através de desenhos em que mostra a possibilidade de separabilidade em relação ao objeto, modulando sua onipotência e criando um espaço interno, assegurando-se da presença dele em sua mente, numa simbolização mútua: ele tem a analista dentro de si, e ela o tem dentro dela, o que permite a separação das férias.

Ana, por sua vez, lida com as fantasias de controle onipotente sobre os pais e a analista usando a violência e a alucinose para se defender de situações em que se defronta com uma possível alteridade. Isso demanda enorme tolerância da analista para conter e transformar a violência e a angústia ligadas à passagem do tempo, explícitas em seu terror de não se sentir existindo, e a ambivalência em relação à analista, colocando em desenvolvimento sua capacidade de elaborar símbolos a partir dessas emoções.

O mesmo é descrito no trabalho analítico com adultos, em que os sonhos põem em movimento a possibilidade de simbolizar a experiência emocional com a analista. A autora recorre a Meltzer e a noções como objeto pensante, seio e mamilo combinados, casal combinado em harmonia como berço da criatividade, símbolos autônomos não culturais (que se constituem no limiar da pd, envolvendo complexidade) e nível estético da mente (que evidencia elaboração edípica, outro elemento de psicanálise para Bion, e mostra que isso não se dá no ego, mas se liga à função alfa, à permeabilidade da barreira de contato, fazendo parte do acervo criativo do indivíduo).

Como diz Marisa, o sonhar, no modelo pós-kleiniano de mente, se equipara ao pensamento pré-verbal, ao brincar, ao pensamento inconsciente, sendo constituído por flashes e imagens visuais aparentemente desconexas, em busca do significado de uma emoção, um pensamento nascente, início de formação simbólica. A emoção seria um elemento primário (decorrente de alguma sensação) em busca de elaboração, produzindo imagens oníricas e elementos protossimbólicos. Esse processo supõe tolerar o não saber, a dor mental, ter capacidade negativa, como diz a autora citando Keats.

A vida onírica é vista como um teatro gerador de significados. Lembrando Meltzer, Marisa diz: “Os objetos internos têm funções criativas que o self sozinho não consegue realizar” (p. 136). Lembra também o desenvolvimento da linguagem, que para Meltzer é primeiramente inconsciente, musical, adquirindo palavras a partir do consciente num segundo momento. O analista faria o percurso inverso em busca da musicalidade, contando com sua intuição analiticamente treinada e a capacidade de observação da experiência emocional em si próprio e no outro. A autora conclui que a linguagem visual dos sonhos é traduzida em linguagem verbal, comunicando a phantasia inconsciente vivida na experiência emocional com o analista, adquirindo-se compreensão.

A noção de conflito estético ocupa grande espaço nas considerações da autora, expressando a beleza e o deslumbramento do mundo em relação ao seio materno e o desejo de conhecer as qualidades do interior. O vínculo K será possível quando houver reciprocidade estética entre mãe e bebê, protótipo de explorações mentais sucessivas, e a emoção puder ser sentida e transformada. Superar o conflito estético depende de tolerar as emoções, transformando-as em vez de negá-las, aprisionando-as em não emoções. A ilusão é necessária para passar do objeto primário ao substituto, ambos relacionados por meio da phantasia inconsciente, como mostra o comovente relato de José, em que vemos reciprocidade e deslumbramento entre o bebê e a mãe. Refugiar-se no claustrum, esconder-se no objeto interno, impede a experiência emocional e a formação simbólica, como revela o caso de Miro. Sair do claustrum traz ambivalência e a possibilidade de discriminar fantasia e realidade – por exemplo, a fantasia de que o analista vai lhe roubar tudo de bom, esvaziá-lo, contexto em que as emoções se configuram como uma ameaça de morte, contra a qual surgem os rituais de defesa. Tanto Miro quanto Marie são apresentados como casos de não superação do conflito estético. Marie, por exemplo, não sabe se tem medo de morrer ou de viver.

Quando predominam os vínculos negativos, a simbolização e a criatividade são pobres, pois a base da criatividade está na possibilidade de tolerar e transformar as emoções e entrar em contato com a vida inconsciente, como formulado por Freud, lembra Marisa. Para Klein, a criação artística se relaciona à possibilidade de reparar objetos internos danificados; para Milner, à possibilidade de criar um objeto que nunca existiu. Por fim, a autora retoma a possibilidade de simbolizar a experiência emocional, na arte, na filosofia, na literatura, e os vários fatores envolvidos no funcionamento da função alfa. A criatividade estaria relacionada à criatividade dos objetos internos em sua relação com o self, ressaltando-se a importância da elaboração edípica nesse processo – a criatividade do casal parental, equacionando aqui Meltzer e Bion como um criativo casal parental dessa pesquisa e dessa obra de Marisa.

No final do livro, a autora se debruça sobre a criação poética, entendendo o poema como um espaço mental que permite a simbolização e a descoberta da própria mente. O sonho é visto como uma atividade pensante, inconsciente, constante, que busca dar sentido ao vivido e que expressa representações verbais, musicais, como a pintura e a poesia. No entanto, diz a autora, é preciso diferenciar símbolo artístico e sessão analítica. Na sessão analítica, a possibilidade de expressar a experiência emocional através da imaginação vai depender do trabalho conjunto da dupla analítica. Na arte, tudo vai depender da capacidade intuitiva do analista. Mas essa capacidade intuitiva não estaria igualmente na sessão analítica, não só da parte do analista, mas também do paciente? Considero essa discriminação importante, mas muito complexa, talvez ainda inacessível para mim neste momento.

Marisa termina o livro com alguns poemas do italiano Eugenio Montale, textos profundamente comoventes, traduzidos e analisados por ela em 2003, em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (usp). O poeta fala de um desejo de libertação e ao mesmo tempo de um medo de libertar-se de suas raízes, fugir da prisão e nascer para o novo, onde estaria o simbólico. Assinalam-se dois momentos desse processo: elaboração da experiência emocional –estado de mente onírico-poético – e surgimento da estrutura simbólica, do poema, do objeto artístico. Aqui lembro novamente Bion em sua teoria do pensar, em que primeiro acontece a gênese dos pensamentos por meio da função alfa e só depois, por pressão dos pensamentos, nasce um aparelho para pensar os pensamentos. Muito semelhante, não?

Rilha a roldana do poço,

a água sobe à luz e aí se funde.

Treme um recordo no transbordante balde,

no puro círculo uma imagem ri.

Encosto o rosto a evanescentes lábios:

deforma-se o passado, faz-se velho,

Pertence a outrem…

Ah o chiado da roda

te devolve ao negro fundo,

visão, uma distância nos separa.

(Montale, p. 128)

Nesse belo texto, segundo a autora, o poeta lida com presença e ausência, ir e vir, lúdico e criativo, ilusão e alucinação, dor e contato com a realidade, angústia de separação, passagem do tempo. Marisa associa isso ao fort-da descrito por Freud. Essa ilustração do processo criativo e simbólico do poeta me fez lembrar “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa (1995):

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

Penso que esse poema ilustra o que acabei de mostrar: o processo simbólico do poeta, que ficcionaliza a dor sentida, parte dela, e a transforma em beleza, em objeto artístico, que por sua vez nos ajuda a elaborar e transformar nossas próprias vivências.

Referências

Bion, W. R. (2000). Cogitações (E. H. Sandler & P. C. Sandler, Trads.). Imago. (Trabalho original publicado em 1992) [ Links ]

Bion, W. R. (2004). Elementos de psicanálise (J. Salomão, E. H. Sandler & P. C. Sandler, Trads.). Imago. (Trabalho original publicado em 1963) [ Links ]

Bion, W. R. (2022). Uma teoria do pensar. In W. R. Bion, No entanto… pensando melhor (P. C. Sandler, Trad., pp. 157-170). Blucher; Karnac. (Trabalho original publicado em 1962) [ Links ]

Pessoa, F. (1995). Poesias. Ática. https://bit.ly/3DAarmyLinks ]

Rezze, C. (2021). Psicanálise: de Bion ao prazer autêntico. Blucher. [ Links ]

Ana Maria Stucchi Vannucchi anavannucchi@gmail.com

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