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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.1 São Paulo  2023  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n1.01 

Editorial

A criança e os pais

Claudio Castelo Filho 


A relação entre pais e filhos é pedra angular de toda a história da humanidade. Está no cerne de todas as mitologias e religiões. Penso que no Gênesis a relação das criaturas com o criador é uma forma mitológica de organizar as primeiras experiências de crianças e bebês com seus genitores, a começar pela fantasia de um nascimento que exclui o relacionamento sexual – Adão formado pelo barro e Eva de uma costela de Adão. A obediência total e inconteste aos desígnios do pai é a premissa. Não cabe às criaturas a curiosidade, o conhecimento, a sabedoria, nem o discernimento próprio. O pai é que sabe tudo e tudo provê. A insatisfação com tal dependência e a necessidade de um pensamento próprio levam os dois a comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A curiosidade e a necessidade de autonomia são apresentadas como tentação demoníaca. O paraíso não deveria ser tão paradisíaco assim para que se ansiasse por algo mais do que nele havia. Ingerido o fruto do conhecimento, tal como destacou Melanie Klein, perde-se o paraíso. O conhecimento – a maturidade psíquica – revela a condição humana e seus infinitos percalços.

A concepção por via sexuada foi tratada como pecado original e o relacionamento dos pais visto como tabu. Todavia, o surgimento real do casal original só se daria com o relacionamento sexual entre os dois, tirando-os de uma condição fraterna. O relacionamento deles com os filhos tornou-se problemático, e o primeiro filho, enciumado e invejoso, matou o segundo.

Como destacou Bion no texto “Torre de Babel: possibilidade do uso de um mito racial” (1992/2000), publicado em Cogitações, há uma constante de um deus que se opõe ao conhecimento. Lembra o pai da horda primitiva postulado por Freud em “Totem e tabu” (1913/2012).

Na mitologia greco-romana, segundo a proposta de Hesíodo na Teogonia, o Caos dá origem, por partenogênese, às divindades primordiais, e por meio delas, com a participação de Eros, às gerações que surgem de forma sexuada. As relações de pais e filhos são desde sempre bastante tumultuadas e violentas, até o estabelecimento de uma (relativa) ordem pelos deuses olímpicos governados por Zeus. O rei dos deuses casa-se com sua irmã, Hera, mas suas atividades extraconjugais é que são pródigas em gerar filhos. Algumas delas são de natureza homoerótica, como aquela que teve com Ganimedes. A família olímpica da Antiguidade não seria muito diversa de muitas que agora passam a ser reconhecidas socialmente, assim como os conflitos entre pais e filhos expressos nos mitos. A deusa Hera está em constante conflito com o marido e frequentemente tenta atormentar a vida dos rebentos da infidelidade dele, como aconteceu com Héracles.

Para nós, psicanalistas, o modelo paradigmático, emblemático e turbulento do relacionamento de pais e filhos é o de Laio, Jocasta e Édipo.

O drama de Orestes, tão caro a Melanie Klein, tem também uma complicada relação familiar. Agamêmnon, aflito para atravessar o mar e guerrear contra Troia, convence a esposa Clitemnestra a levar a filha Ifigênia ao acampamento em que as tropas aguardam os ventos para navegar, com a promessa de um casamento à jovem. Quando chegam, dão-se conta da rusa do pai, que necessita sacrificar a filha para que a deusa permita que os ventos os levem através do Egeu. De volta da guerra, a rainha enlutada pela filha trama e executa o assassinato do marido. Electra, a outra filha, tomada pelo desejo de vingança pela perda do pai, urde com o irmão Orestes o assassinato da mãe. Perseguido pelas Fúrias e, por fim, auxiliado por Atena, o rapaz consegue a clemência das Erínias tornadas Eumênides, dando origem à justiça humana estruturada.

A Guerra dos 100 Anos pela sucessão do trono da França teve origem na incógnita de paternidade da filha de uma rainha francesa. Descoberta a infidelidade dela quando grávida, não se podia dizer quem era o pai, se o rei ou o amante. Nascido o bebê, que era uma menina, a mãe e o amante foram executados. Pairando a dúvida sobre a legitimidade da criança, estabeleceu-se uma lei sálica que impedia que as mulheres fossem monarcas governantes, a fim de evitar que uma possível bastarda ficasse com a coroa e o governo. A dinastia capetiana se encerrava ali, pois o rei não teve outros filhos e morreu. O trono foi assumido pelos Valois, iniciando outra dinastia, mas a filha de Felipe, o Belo, e irmã mais nova do rei francês traído, Isabel, conhecida como a Loba de França, era rainha da Inglaterra por casamento e considerou a lei sálica inválida, pois a excluía da sucessão, bem como a seus descendentes, que também eram herdeiros da coroa da Inglaterra. Iniciou-se, dessa forma, o conflito de 100 anos pela disputa do trono francês. Lutas intestinas entre Isabel e o marido, Eduardo 2º, culminaram com o assassinato do rei pelo amante da rainha. O filho, Eduardo 3º, executou o amante da mãe por regicídio e encarcerou a genitora até a morte dela.

O tema “A criança e os pais” rendeu uma grande quantidade de artigos, e por conta disso a editoria e a comissão de avaliação decidiram, por questão de espaço, que teremos dois números consecutivos com ele, para que não deixemos passar trabalhos significativos.

Nos trabalhos publicados encontram-se questões relativas às novas constituições familiares, ao gênero, aos desenvolvimentos científicos que levam à concepção de bebês em que não há propriamente o relacionamento sexual de um casal, o que faz surgir inúmeras reflexões sobre as consequências psíquicas de tais avanços técnicos. Entre elas, podemos mencionar as seguintes: que tipo de organização mental ocorre quando uma criança é gerada in vitro? O que acontece quando nascem muitos filhos de uma única gestação? Quais as consequências mentais para os pais do descarte de embriões não utilizados? E para os filhos surgidos dos embriões escolhidos? Que tipo de marca o luto pelos embriões descartados imprimiria nas famílias? E em filhos de doadores de espermatozoides e óvulos anônimos?

Há pouco tempo uma pesquisa revelou que provavelmente a avó de Ludwig van Beethoven teve um caso extraconjugal e que o pai do compositor e toda a sua descendência não têm a genética correspondente aos demais membros da família Beethoven. Os problemas relacionados à paternidade e as decorrentes angústias associadas à possibilidade de incesto, entre vários outros aspectos, por desconhecimento de quem seriam os irmãos ou os ancestrais, afetam as crianças adotadas. A busca pela família biológica é uma constante entre elas, por melhores que sejam os pais adotivos.

Essas e tantas outras questões extremamente importantes, como a do incesto e do abuso sexual, permeiam as páginas deste número e do próximo.

Neste número contamos com a contribuição de Francis Grier, atual editor do International Journal of Psychoanalysis e músico de notória reputação, que faz uma analogia bastante interessante entre o atendimento analítico e a produção e escuta musical. Três trabalhos de interesse atual, de Walter Trinca, Paulo Ceccarelli e Adalberto Goulart, integram a produção brasileira desta edição.

Por fim, temos os quatro trabalhos das plenárias do 53º Congresso Internacional de Psicanálise, da Associação Psicanalítica Internacional, que acontecerá em julho deste ano, em Cartagena das Índias, Colômbia.

Aproveito a oportunidade para recordar a todos que queiram submeter seus trabalhos à rbp que eles devem impreterivelmente seguir as normas de publicação que constam no site www.rbp.org.br. Os textos precisam ser inéditos e, uma vez aceitos, passam a ser copyright da revista. Adianto que o tema do terceiro volume de 2023 será “Religião e estados religiosos da mente”, para aqueles que já quiserem escrever sobre essa temática a fim de enviá-los à rbp.

Desejo a todos uma boa leitura.

Editor

Referências

Bion, W. R. (2000). Torre de Babel: possibilidade do uso de um mito racial. In W. R. Bion, Cogitações (E. H. Sandler & P. C. Sandler, Trads., pp. inicial-final). Imago. (Trabalho original publicado em 1992) [ Links ]

Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 11, pp. 13-244). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1913) claudiocasteloeditor@rbp.org.br [ Links ]

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