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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.1 São Paulo  2023  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n1.03 

Artigo

Ilusão e evanescência

Ilusión y Evanescencia

Illusion and Evanescence

Illusion et evanescence

Francis Grier1 

1Analista didata e supervisor da Sociedade Britânica de Psicanálise. Editor do International Journal of Psychoanalysis. Músico organista, pianista e compositor de música clássica para coral e voz


Resumo

O autor explora algumas similaridades entre experiências musicais e de sessões analíticas. Focaliza as qualidades da evanescência, a maneira como a música, em contraste com muitas outras formas artísticas, e sob certa perspectiva, dura somente enquanto é efetivamente tocada, e em seguida termina, de forma similar ao diálogo de analista e paciente em uma sessão. As reverberações psíquicas de alguns momentos transitórios e fugidios, no entanto, podem durar por toda a vida. Mesmo quando nenhum entendimento verbal profundo está acontecendo, ainda assim o encontro de paciente e analista é emocionalmente significativo. O autor ilustra esse ponto com um exemplo clínico. Explora a transferência como ilusão, e a relação entre verdade e ilusão a partir do conceito bioniano de O. Encerra com pensamentos a respeito do valor paradoxal do aspecto ilusório da estética e da natureza, como considerado por Freud em seu breve artigo “Sobre a transitoriedade”, e do sorriso que paira no ar do Gato de Cheshire, de Lewis Carroll.

Palavras-chave ilusão; evanescência; imaginação; transferência

Resumen

El autor explora algunas semejanzas entre experiencias musicales y de sesiones analíticas. Enfoca en las cualidades de la evanescencia, la manera como la música – en contraste con muchas otras formas artísticas – En algunos aspectos dura solamente mientras es efectivamente reproducida. Y, en seguida, se acaba. De manera similar a la discusión del analista-paciente en una sesión. Pero as rever-beraciones psíquicas de algunos momentos transitorios y fugitivos pueden durar por toda la vida. Y, aunque no ocurra ningún entendimiento verbal profundo, el encuentro del paciente-analista es emocionalmente significativo. Ilustra ese punto con un ejemplo clínico. Explora la transferencia como ilusión, y la relación entre verdad e ilusión a partir del concepto de El en Bion. Cierra con pensamientos sobre el valor paradójico del aspecto ilusorio de la estética y de la naturaleza, como considerado por Freud em su breve articulo “Sobre la Transitoriedad” (1916), y la sonrisa que está en el aire del Gato de Cheshire de Lewis Carroll.

Palabras clave ilusión; Evanescencia; imaginación; transferencia

Abstract

The author explores some similarities between musical and analytic session experiences. He focuses on the qualities of evanescence, the way in which music – in contrast to many other artistic forms – from a certain perspective lasts only as long as it is actually played. And then it ends. Similarly to the analyst-patient discussion in a session. However, the psychic reverberations of a few transitory, fleeting moments can last for a lifetime. And, even when no deep verbal understanding is taking place, the patient-analyst encounter is still emotionally significant. The author illustrates this point with a clinical example. He explores transference as an illusion, and the relationship between truth and illusion from Bion’s concept of O. He closes with thoughts on the paradoxical value of the illusory aspect of aesthetics and nature, as considered by Freud in his brief article “On Transience” (1916), and the smile that hangs in the air of Lewis Caroll’s Cheshire Cat.

Keywords illusion; Evanescence; imagination; transference

Résumé

L’auteur explore certaines similarités entre des expériences musicales et des sessions analytiques. Il met en lumière les qualités d’évanescence, la façon dont la musique – en contraste avec beaucoup d’autres formes artistiques –, sous une certaine perspective ne perdure que pendant quelle est effectivement jouée. Et, ensuite, elle finit. D’une manière similaire à la discussion de l’analyste et du patient dans une session. Mais les réverbérations psychiques de certains moments transitoires et fuyants peuvent durer toute la vie. Et même lorsque aucune entente verbale profonde a lieu, néanmoins la rencontre du patient et de l’analyste est émotionnellement significative. Il illustre ce point par un exemple clinique. Il explore le transfert en tant qu’illusion, et le rapport entre la vérité et l’illusion à partir du concept de O chez Bion. Il finit par des idées à l’égard de la valeur paradoxale de l’aspect illusoire de l’esthétique et de na nature, tel ce lui proposé par Freud dans son bref article « Sur la transitoire » (1916), et le sourire du Chat de Cheshire de Lewis Carroll qui plane dans l’air.

Mots-clés illusion; évanescence; imagination; transfer

Músicos podem, com frequência, admirar invejosamente as produções estéticas das muitas outras formas de arte, por serem tão sólidas, tão duradouras. Arquitetos projetam prédios, casas, até mesmo castelos. Esculturas tendem a ser feitas para durar. Pinturas são objetos sólidos – o que pode ser paradoxal, se a representação é de algum momento fugaz. Pense nos desenhos incrivelmente imediatos e vivos de cavalos nas paredes de cavernas, feitos há dezenas de milhares de anos...

Em contraste, vamos a um concerto, ouvimos uma música e – foi-se! Tão rápido quanto é produzido, o som se interrompe. É esse o caso para qualquer tipo de música, popular, religiosa, sinos de igrejas medievais, gamelão2 ou música de câmara (seja ela Schubert no Wigmore Hall ou um recital de cítara em Bangalore). Curta ou longa, banal, espirituosa, séria ou mesmo trágica. A Paixão segundo são Mateus, de Bach, uma icônica obra-prima de seriedade trágica, acaba assim que termina. Entretanto, a impressão que causa pode ser profunda e extremamente duradoura.

A música então parece ter vida interior própria. É como se passasse a ser uma espécie de objeto interno, irradiando energia. Sentimo-nos em uma relação com ela. Se você se emocionou profundamente com a Paixão segundo são Mateus, pode muito bem sentir-se engrandecido como pessoa, e em particular sentir que sua experiência de várias emoções, como pesar, traição, luto, ressentimento e esperança, pode ser estimulada, aprofundada e fortalecida.

Mas é difícil saber o que é de fato a música, sua natureza essencial. É ruído, é comunicação. Há algo muito natural sobre ela, como o cantar dos pássaros, mas é sempre também uma expressão de emoção. Até mesmo uma peça que comunica o esvaziamento da emoção é altamente emotiva. Mas sua expressão se evapora, rápido. É ilusória. Não podemos apreendê-la, não podemos contê-la. É como fumaça, talvez até menos substancial.

É essa qualidade estranha, ilusória e evanescente da música que é parte de sua natureza fundamental. Muitas vezes não se pensa sobre a evanescência da música. Algo tão potente não é percebido como efêmero. Mas é, e isso é perturbador.

Palavras podem ter algo dessa qualidade fugidia. Às vezes, como no teatro, há uma narrativa definida. Podemos nos prender à história. Mas se nos conectamos com um nível de significado abaixo da superfície, e nos atentamos à música por trás das palavras, podemos atingir uma área mais perigosa e livre – a da fantasia inconsciente e dos sonhos. Pensamentos e emoções muito menos lógicos podem ser provocados em nós por esses sons musicais transitórios. Podemos desconsiderar nossas reações, que passam por nós tão rápido ou que são muito loucas.

Bem, há psicanálise nisso tudo? Tenho a convicção de que você, leitor, já percebeu: estamos na psicanálise desde o começo. A música e as palavras da psicanálise clínica são muito similares a tudo isso que descrevi. São palavras, música, não escritas, não gravadas, únicas, transitórias, evanescentes. A sessão é um objeto impossível de apreender depois. Sabemos que qualquer relato será um tanto diferente do evento único que é a sessão em si. Nunca sabemos o que vai transcorrer – daí o temor e o tremor (Bion, 1974). Uma sessão costuma se organizar em segmentos. Com frequência, é assim que tentamos nos lembrar dela depois: talvez pensemos que teve três temas dominantes, ou musicalmente três arcos emocionais, com qualidades sonoras particulares – ritmos diferentes, andamentos diferentes. São frases musicais específicas emanadas do analista ou do paciente – as pausas silenciosas -, cada enunciado, incluindo os não verbais – respirações, um curioso grunhido ou fungada, um pigarreio... e, por vezes, um suspiro -, sempre tão musicalmente expressivo (Grier, 2019).

Todos esses componentes musicais passam e nunca se repetem. Assim, cada sessão tende ao inefável. Seria isso o O de Bion? A peculiaridade da relação é constituída de momentos altamente significativos e catexizados – às vezes positivos, às vezes negativos -, muitos dos quais escaparão ao par em termos de percepção consciente. Mas se um analista desejar escrever uma sessão, vai se perceber atormentado pela noção de que sua escrita não evoca a experiência de maneira adequada. Frequentemente, conseguimos escrever uma certa versão, muito afetada pelo próprio sentimento no instante da escrita, depois da sessão, em um fuso horário diferente. Nesse momento, considero que, se eu puder abrir mão de mirar na precisão factual da memória, permitindo que emerja uma versão dela, procurando de modo paradoxal ser menos exato, talvez possa conquistar algo ressonante com a sessão.

Aqui, a imaginação assume um papel central. E enquanto procuro não produzir ficções, tentando o tempo todo estar atrelado à realidade, seja esta a realidade de fatos ou memória ou emoção ou atmosfera ou imagens ou sons musicais, sei que não há de ser totalmente “verdade”, no sentido de verdade objetiva. Mas “imaginação” também não é totalmente preciso, é muito consciente. Busco um estado de mente através do qual eu possa acessar a precisão da emoção, um estado associativo mais livre, que permita um certo “deslizar” da precisão factual, mas não muito, na esperança de que uma criatividade mais inconsciente emerja. O trabalho do sonho está envolvido nisso, e ainda assim, não muito... Para mim, a melhor palavra é ilusão.

Muitas coisas importantes cabem nessa categoria, pouco substanciais, sólidas, tangíveis. Coisas efêmeras, evanescentes, fugidias, não lembradas com facilidade em seus detalhes, e ainda assim paradoxalmente duradouras, envolventes, emotivas, e às vezes transformadoras de nossa vida. O apaixonar-se, o odiar. Nós, analistas, estamos bem acostumados a escutar a Paixão segundo São Mateus em nossas sessões: as pessoas muitas vezes nos procuram por conta de algo terrível. Elas precisam cantar isso a nós, precisam fazer com que ressonemos com elas, talvez precisem que cantemos a elas enquanto são a plateia ressonante, para que o profundo pesar, o remorso e talvez a reparação tenham lugar. Como Winnicott (1965), acredito que a ilusão é crucial. Aprecio muito sua ideia sobre o significado dela na infância e a importância da desilusão gradual. Entretanto, acredito que nunca podemos abrir mão da ilusão por completo. Se perdemos a ilusão, nos arriscamos a ter a vida e a imaginação ressecadas. Podemos morrer. Alguns de nossos pacientes vêm a nós nesse estado, psiquicamente moribundos, precisando que os ajudemos a catexizar a ilusão e o ilusório, a serviço da vida. Meu pensamento se volta para a inspirada noção winnicottiana de objetos transicionais e sua importância para a saúde não só das crianças, mas também dos adultos (Winnicott, 1951/1958).

Como Klein, no entanto, considero a elaboração da posição depressiva o evento central em qualquer análise, e a Paixão segundo são Mateus pode ser emblemática do reconhecimento artístico disso na música clássica ocidental. O paciente precisa enfrentar a própria paixão, junto com o analista, reconhecendo o dano ao objeto amado, com todo o consequente pesar, para então – esperamos – caminhar em direção à reparação. Isso envolverá a realidade, as pessoas reais do par analítico, mas muito de sua relação também se passará na esfera do ilusório. E é necessário que aconteça no ilusório para que possa ser real.

Ilustrarei minhas ideias com o relato de um início de sessão que aconteceu durante a pandemia de covid-19, e portanto pelo telefone. Assim, o escutar, bem como a música do encontro analítico, era inevitavelmente primário. Isto foi escrito depois, é claro, e por esse motivo é apenas uma aproximação do que aconteceu. Descrevo toda uma série de impressões – outra palavra útil em paralelo a evanescente e ilusório. Os analistas ficam impressionados: o paciente projeta dentro deles, e então ficam quase que de forma literal pressionados internamente pelas emoções do paciente. Mas é claro: trata-se de uma via de mão dupla... Minhas descrições das emoções do paciente são todas filtradas pelo meu próprio psiquismo. Desse modo, com certeza não são representações puras de suas emoções, apesar de talvez serem recriações precisas de algumas de minhas fugidias emoções sobre suas fugidias emoções. Segue o relato.

Meu paciente me telefona. A qualidade do som de nossa interação é obviamente menor e prejudicada em comparação ao contato pessoal. Apesar disso, desde sua primeira inspiração, posso ouvir que há algo no ar: a respiração de meu paciente está agitada, muito mais do que o comum. De maneira involuntária, fico tenso, com o estômago contraído. É cedo, e eu digo a mim mesmo para relaxar – mas esse sou eu sendo profissional, tentando disciplinar minha reação e sendo defensivo.

Suspeito que isso seja mais frequente do que percebemos conscientemente: nos conectamos antes que a primeira palavra seja dita, mesmo ao telefone. Como o tipo de antecipação que acontece quando o braço de um maestro se ergue pela primeira vez em um concerto, antes de qualquer som musical: antes que uma nota seja tocada, uma antecipação ansiosa toma conta da plateia.

Meu paciente e eu já estamos no mundo da ilusão: não podemos evitar imaginar um ao outro. Não só porque nos encontramos pessoalmente por anos antes da covid-19. Mesmo se fôssemos estranhos, poderíamos imaginar um ao outro, e essa imaginação seria ilusória. Uma versão mais sutil tem lugar quando encontramos nossos pacientes pessoalmente. Ainda há uma versão imaginária que cada um projeta no outro, dando mais ou menos conta do contraste e da comparação com a realidade diante de nossos olhos. No plano auditivo, algo similar acontece. Nossa escuta é bastante subjetiva, para ambas as partes. Então, há de novo uma qualidade intangível e ilusória, mesmo em relação àquilo que apreendemos com nossos ouvidos.

Assim que meu paciente fala, mais uma vez me sinto tenso. Tenho de me esforçar para ouvir quando ele sussurra, mais como um gemido: “Tem sido uma semana difícil. Continua difícil”. Em geral, esse homem projeta a voz no registro tenor, mas hoje está balbuciando, agitado. De modo incomum, o tom está no registro baixo. Sou forçado a escutar com muita atenção, meus ouvidos projetados. Ele faz uma pausa. Minha ansiedade aumenta e me pergunto quando – ou se – ele falará de novo. Esses momentos de silêncio agitado são particularmente intensos de agitações ilusórias.

Há um minuto de silêncio. Estou ouvindo, ouvindo, incluindo, de forma incongruente, os pássaros de meu jardim. De repente, ele diz: “Os pássaros em seu jardim estão cantando. Eles parecem felizes”. Essa manifestação pareceu forçada, aparentemente agradável. Eu disse: “Você está tentando ser razoável, mas sinto que sente o contrário”.

Ele emite um som profundo em sua garganta. Um rugido? Um suspiro? Melancólico? Deprimido? Ansioso? Raivoso? Qual é a música? Sua indecifrabilidade é parte de seu caráter. Respondo com ansiedade. Em momentos como esse, quando minha escuta está concentrada em determinar a qualidade emocional da voz, consigo estar mais aberto, buscando alcançar o objetivo, do que quando me sinto convicto do que estou ouvindo e nem penso nisso – então, posso estar preso em uma ilusão.

Abaixando o tom, no registro baixo, articulando com pouca clareza, ele diz: “Terrível dificuldade em pegar no sono e permanecer dormindo”, como se falasse consigo mesmo. Estou agora “ouvindo atrás da porta”, enquanto ele aparentemente está incomunicável. No entanto, de forma paradoxal, sinto que ele está de fato se comunicando, como se eu estivesse em uma ópera ouvindo um personagem dizer, em uma ária, como se sente desgraçado, contorcendo-se sobre si mesmo de modo terrível.

“A noite passada foi ruim. Não dormi nada” – um monocórdio aborrecido. Outro paradoxo: parece sem afeto, mas na realidade comunica um afeto intenso e reprimido. É ainda impossível saber para onde isso vai. Para a depressão? Para a raiva?

“Meus sintomas têm sido severos.” Agora ouço os inconfundíveis tons de ameaça, de ira e até de raiva reprimida. “Ontem pela primeira vez senti meu estômago queimar. Azia. Falei com minha médica. Ela prescreveu um remédio. O remédio está aqui agora. Não sei se começo a tomar.” Aos poucos, seu tom começa a se elevar. O andamento, de lento e incerto, vai se tornando mais rápido e constante; as dinâmicas, crescendo de pianíssimo para forte; o timbre, tornando-se estridente, com claros tons de culpa e acusação.

De repente, o tom cai. Ele quase suspira: “Não sei se começo a tomar o remédio. Estou em dúvida...”. Então, subitamente forte, forçado, enunciando em meus ouvidos: “Posso sentir os sintomas agora mesmo”. Medo e pânico, demanda insistente e furiosa, cheio de razão e direitos.

Esse foi o primeiro encontro com meu paciente após uma ausência minha de uma semana. Ele se sente muito dependente da análise para se estabilizar. Mas nem sempre é assim após uma pausa. Estou surpreso. Não esperava que se sentisse tão inseguro. De imediato, fui invadido por perturbação e caos. Minha mente acelerada: o que se passou? Houve ocasiões em que meu paciente se comportou mal, às vezes de maneira violenta, mas fazia anos que isso não acontecia. Temo que seja um momento em que todo o nosso trabalho tenha sido desfeito, em que estamos de volta ao começo caótico e assustador da análise. Uma rápida associação com serpentes e escadas, e um súbito, chocante e assustador deslizar à estaca zero.

Mas essas emoções caóticas não me invadem por completo. Na maior parte do tempo, minha mente está cindida – espero, em uma cisão benigna. De um lado, estou reconhecendo, decodificando, articulando, registrando e considerando essas mudanças emocionais, muitas vezes apenas de forma musical, mal prestando atenção às palavras; de outro lado, estou reagindo emocionalmente, com minha própria agitação, medo, esperança e terror.

Há uma mistura em mim da capacidade de relembrar e da capacidade de fazer notações musicais um tanto precisas dos sons da voz do paciente – o tom, a duração, o andamento, a dinâmica, com as imagens provocadas pela música de seus enunciados (Grier, 2021). Disso emerge ilusão emocional atrás de ilusão emocional – não delírios, espero, mas ilusões -, enquanto acompanho o paciente em sua jornada emocional.

Ele soa mais recomposto, e pela primeira vez diz – quase “canta” – uma frase mais melódica, mais longa, com mais ternura de sentimento: “Também me sinto mal por ser o primeiro paciente do seu dia – o primeiro depois da sua ausência – e por você estar sendo recebido com todo o meu aborrecimento. Gostaria de poder te oferecer um começo melhor”.

Eu poderia ter tomado esses sentimentos por não sinceros, uma paródia de sentimentos civilizados, talvez até uma provocação. Mas a música em si soava terna e arrependida. Então, pensei que ele de fato sentia aquilo que dizia, de forma direta. Ele havia mergulhado na posição depressiva, temendo o dano ao objeto bom. Respondi: “Você está aflito, está sofrendo e está bravo comigo. É urgente que provoque algo em mim. Você precisa me perturbar. Mas então se preocupa em ser muito poderoso, e me fazer sofrer te deixa ansioso”.

Como será que soei, musicalmente? Não tenho certeza, uma vez que executo minha própria fala e meu próprio canto. Mas talvez eu estivesse afinado. Meu paciente pode ter sentido que encontrou uma plateia receptiva em mim, não ausente psicologicamente, como na semana anterior. Ele não estava cantando para um espaço vazio, com a terrível música de suas emoções reverberando nas paredes de volta para ele. Sua queixa era a de sentir-se incontido, e ele esperava agora que eu pudesse conter tais sentimentos incontidos, mesmo enquanto me empurrava, me golpeava e me cutucava com força para me provocar uma experiência de me debater com meu próprio continente interno. Isso envolve ilusões musicais, sons, qualidades da voz que vêm e vão e alteram-se em um nanossegundo.

Suspeito que se sentiu como uma criança abandonada pela mãe por tempo demais. Não podia usar o pensamento do processo secundário para ajudá-lo a entender o que se passava entre nós em nosso estado de separação. Ou, mesmo que pudesse dizer a si mesmo que eu só ficaria ausente por uma semana, que me veria logo, isso fazia cada vez menos diferença para seus sentimentos agitados e infantis, à medida que a semana se desenrolava.

O som musical de um adulto do sexo masculino é muito diferente daquele de uma criança. Entretanto, todos os homens já foram crianças, e os gestos e expressões musicais pré-verbais da criança podem certamente ser ouvidos por entre os tons de homens adultos. Mas esses homens adultos cresceram, e se estão tomados de emoções infantis, as perturbadoras em especial, podem usar o corpo e os punhos de maneira similar a como as crianças usam os seus.

Tinha sido assim com meu paciente. Ele havia sido aterrorizado por uma mãe abusiva, sem proteção do pai passivo. Havia se defendido aterrorizando seus objetos, como sua mãe, sem restrição interna de qualquer pai continente. Suas emoções predominantes eram infantis. Era difícil para ele aceitar que suas ideias, preconceitos e sentimentos de homem adulto com frequência eram infantis, particularmente dominados pelo medo de ser humilhado e pelo desejo de humilhar. Tudo isso era comunicado de modo musical, e meu próprio e imediato impulso musical era de luta ou fuga, de retaliação ou procura de abrigo.

Assim, a atmosfera do início da sessão era como o reemergir de uma música antiga, perturbadora e caótica, ressonando de forma ameaçadora. A ameaça de seu ressurgimento, o medo de que iria nos engolfar de novo, era imediatamente presente na música e no corpo. Tenho a convicção de que surgia em seu corpo. Ele não poderia ter entoado sua comunicação em minha direção sem que todo o seu corpo estivesse envolvido. Eu estava fisicamente tenso e nauseado.

Faz muita diferença para o paciente poder encontrar um instrumento musical no analista, ressonando sentimentos infantis, imaginativamente simpatizando com eles. Mas analistas também têm suas próprias reações, com as quais devem se debater. Minha necessidade de me debater com minha própria raiva por ser perturbado pelo paciente é o correlato de meu paciente debaten-do-se com sentimentos urgentes e intensos, que ameaçam destruí-lo. Devo reconhecer que, até certo ponto, meu paciente pode revelar seu self infantil através da música penetrante e desestabilizadora, enquanto eu devo perceber minhas próprias respostas musicais infantis sem revelá-las. Não posso gritar de volta, por exemplo. Isso exige trabalho e, ao passo que eu sempre espero que meus pacientes trabalhem, é por vezes um choque narcísico lembrar que eu também tenho de fazê-lo.

Durante todo esse período, estamos ambos criando impressões, muito próximas às ilusões. A música do par analítico em risco. O paciente está tentando me contactar com seus sentimentos, à espera de que eu possa tomá-los e contê-los. Ele tem de ser criativo, através de toda uma gama de pensamentos e palavras, mas também está trabalhando duro em um nível de processo primário, como um bebê com sua mãe, para me provocar sentimentos – para que eu verdadeira e ativamente os tenha. Ele precisa criar ilusões auditivas, ilusões musicais, que ressonarão em minha imaginação, desencadeando minha fantasia inconsciente.

Esse tipo de sessão será reconhecido por todos os psicanalistas. Não é uma sessão que altera o curso da vida, nenhum grande evento com interpretações perspicazes. Nem mesmo a sessão toda, apenas o início. Mas é minha tentativa de evocar um esboço, essencialmente musical, do início de uma sessão que muitos reconhecerão como um “primo de primeiro grau” de muitos inícios de sessões. Esses momentos são esquecidos com facilidade quando tentamos produzir uma visão geral de um caso. Mas, se nos debruçamos sobre eles, sem nos centrar de maneira ansiosa em temas verbais e filosóficos, buscando antes estar presentes ao conteúdo emocional fugaz – algo que faço através da música -, podemos ter acesso a uma dimensão que facilmente deslizaria para a insignificância. A emocionalidade do início dessa sessão é crucial para o que quer que emerja na sequência. É minha tentativa de evocar um retrato verdadeiro do paciente, do analista e do paciente, em dado momento, buscando capturar a qualidade cambiante do aqui e agora. Mas essa tarefa só é possível se reconhecermos o paradoxo de que, em essência, não podemos fazê-lo: é algo evanescente demais, ilusório demais.

A transferência é a ilusão por excelência dentro da psicanálise. Todo o ponto da transferência é que ela é ilusória – estamos imediatamente no mundo do paradoxo. Nosso objetivo é ajudar o paciente a elaborar sua neurose de transferência, apesar de não almejarmos que o paciente não mais transfira suas relações objetais internas para suas relações externas. Sabemos que essa não é uma possibilidade real, e não transferir seria patológico. Transferir demais, por outro lado, não é ilusão, é delírio. Mas não transferir é falta de imaginação, não influenciar um objeto afetivamente, não investir nem mesmo o objeto bom com vida e amor. Ou o objeto mau com ódio. Essa catexia é por definição ilusória – e ainda assim é da ordem da saúde. Isso não tem a ver apenas com o significado das palavras; é algo comunicado e elaborado através da musicalidade da voz, apesar de essa música ser muito efêmera, muito próxima à ilusão. A relação intercambiante entre as palavras e sua música – podem estar em acordo ou ser antagônicas, sutil ou violentamente – requer dos analistas atenção a cada dimensão, e à sua própria interioridade e respostas musicais. O analista deve sentir a diferença entre verdade e ilusão... e ainda capturar o paradoxo de que mesmo momentos verdadeiros podem ser percebidos de forma tão transitória que a própria qualidade da verdade talvez evapore no ilusório.

A qualidade definidora da ilusão é a de que ela é falsa. Com frequência, a desilusão é um objetivo da psicanálise. LaFarge (2015) investiga o trio desilusão, desapontamento e desespero, mostrando como a vida pode ser insuflada em um par analítico mortificado quando este consegue suportar a investigação de sua evasão prévia do desapontamento e de sentimentos depressivos. Uma fase de vida mais madura e renovada pode se desenvolver. Britton (1995) escreve sobre a tenacidade com a qual é possível se agarrar à ilusão edípica – minha mãe na verdade me ama mais, seu filho, do que ama o papai -, apesar da maciça evidência do contrário e da aceitação consciente da realidade da derrota edípica – eu sei que minha mãe ama meu pai mais que tudo no mundo. Steiner (2016, 2020) investiga em profundidade a ilusão e a desilusão. Ressalta a necessidade comum de alguma medida de ilusão, e exorta os analistas a reconhecer que a busca moralmente justificada pela verdade desiludida pode deixar um rastro de grande dor. Winnicott (1965) descreve como a mãe deveria, ideal e cuidadosamente, deixar o filho cair de seu trono ilusório – o trono de Sua Majestade, o Bebê – para a realidade da desilusão.

Klauber, entretanto, vai além e observa:

A ilusão transferencial não é apenas uma falsa percepção ou uma falsa crença, mas a manifestação da similaridade da experiência subjetiva elicitada por um evento do passado e do presente. A evolução, assim, representa um novo aspecto de compreensão, expressando-se não na linguagem do pensamento lógico, mas naquela da criatividade artística. (Klauber et al., 1987, p. 7)

E ainda:

Não podemos viver somente a partir da realidade. Precisamos das ilusões que tocam a realidade “com uma luz celestial”. É por isso que a religião é tão importante em todas as sociedades, não excluindo – por mais que tenhamos objeções às religiões – formas esotéricas que, com frequência, impregnam sociedades científicas. Suas soluções nos fornecem a coragem emocional para viver além da realidade...Em psicanálise, a transferência não só ajuda o paciente a discriminar, mas a imaginar. (p. 8)

Klauber é muito sucinto em relação a essa ideia, não a desenvolvendo. Em geral, a opinião analítica parece sugerir que preferiríamos que as coisas fossem diferentes. Se apenas pudéssemos nos libertar do princípio do prazer para o princípio da realidade e ficar ali! Se, após a imensa luta para evoluir da posição esquizoparanoide para a posição depressiva, apenas pudéssemos ficar ali! O fato de oscilarmos de modo contínuo entre essas posições (Britton, 1998) é implicitamente lamentado. O processo maturacional envolve aceitar o fato de que o lado imaturo de nosso aparelho psíquico sempre nos dará trabalho. É difícil valorizar as partes infantis esquizoparanoides de nossa personalidade, que buscam o prazer, evitam a dor e causam problemas, e que estamos sempre tentando superar. Entretanto, integram intrinsecamente o tecido das coisas. A Paixão segundo são Mateus reconhece isso. A traição de Pedro a Jesus, motivada pelo princípio do prazer e por um compreensível e esquizoparanoide medo da dor e da punição, é tão importante musicalmente quanto as sábias palavras de Jesus.

Mas e quanto ao fato de que a posição depressiva de hoje é a falsa certeza de amanhã? Por um momento, quase se alcança a verdade, mas logo ela não é sentida como tão verdadeira. Qualquer que seja o contexto, as coisas mudam para todos os participantes, externa e internamente, e então esse momento de verdade também participa da evanescência. A convicção desaparece, e a verdade se torna ilusória. Também é transitória. Embora parecesse tão verdadeira, agora, sob a nova perspectiva, aquela lembrança começa a adquirir uma qualidade ilusória. O que há agora é perda, dor, algo a ser lamentado. Temos de começar tudo de novo.

Uma vez que isso aconteceu com frequência suficiente para o percebermos como um padrão, uma encruzilhada se revela na estrada: um caminho conduz à depressão; o outro, à esperança. É desanimador saber que todas as nossas tentativas de alcançar a verdade vão falhar. Ainda assim, sentimos que estávamos na direção certa. Tentaremos de novo. Tomar isso como completa ilusão seria niilista. Uma interpretação diferente poderia conduzir a uma aceitação de que muito do mundo, e também de nossas tentativas de alcançá-lo, sempre será ilusório. No entanto, saber que a realidade sempre estará coberta pelo manto da ilusão pode tornar algumas qualidades da ilusão um tanto preciosas. Estou no território do conceito bioniano de O. Em si, o O não pode ser definido ou compreendido, mas pode ser intuído. Bion (1965) se refere a ele como realidade última, e de maneira implícita, em comparação, qualquer coisa que em geral tomaríamos como verdadeira é confusamente revelada como ilusória.

Talvez seja por isso, em parte, que artistas criativos empreendem a mesma tarefa repetidamente. Rembrandt e Cézanne e seus retratos; Mozart e seus 27 concertos para piano; Haydn e suas 104 sinfonias; Bach, que escreveu 24 prelúdios e fugas em todas as notas musicais existentes e depois fez tudo de novo; Schumann, que escreveu aproximadamente 140 músicas em um ano (1840). Em cada uma dessas empreitadas, cada um tentou retratar a realidade. Mas cada um, claro, experimentou insatisfação e precisou tentar de novo. E de novo. Sugiro que, a cada vez que tentaram retratar a realidade, sentiram não ter obtido sucesso. A realidade última, o O de sua jornada, sempre estava além da ilusão que haviam criado. A realidade última, O, é coberta por um manto de ilusões, de forma que o que quer que tenha sido capturado era apenas uma entre um infinito número de perspectivas, e finalizar uma tentativa só abria espaço para novas possibilidades. Se você escreve 104 sinfonias, talvez possa escrever mais 104, todas igualmente cheias de vida. 48 prelúdios e fugas? Por que não mais 48 – que é em essência o que Bach fez em sua última e incompleta obra-prima, A arte da fuga? Se você escreveu 27 concertos para piano até a sua morte, com 35 anos, talvez escrevesse a mesma quantidade se tivesse vivido até os 70, cada concerto sendo único e diferente, cheio de vida, cada um deles uma ilusão, no sentido particular que apresento aqui. Nada falso em relação a eles, mas cada um expressando o mais próximo que alguém pode chegar – ou que um gênio pode chegar – de uma articulação verdadeira de um aspecto da realidade última, O, que é fadada a ser experimentada, depois do evento, como ilusória, transitória, evanescente. Então, é hora de empreender a próxima tentativa.

O consultório de psicanálise pode oferecer uma analogia. Não precisamos ser místicos, penso eu, em relação a O. Muitos talvez concordem que um objetivo de uma análise, e também de cada sessão, é tentar abordar a verdade das coisas. A verdade em relação ao que é particular sobre o analisando, a verdade do processo e a qualidade da relação analítica. Deveríamos atender aos avisos de Steiner – alinhados com uma famosa frase de T. S. Eliot, “A humanidade não pode suportar muita realidade” – e caminhar com cuidado em torno da desilusão. Mas desde o início, de forma mais óbvia quando o analista está incluído e engajado no amor e no ódio e em alegrias e tristezas, e ainda mais evidente quando a análise caminha para o fim, é possível haver um espaço na mente do analista para contemplar o valor de uma eternamente renovável qualidade de ilusão.

Isso vai se revelar na transferência-contratransferência. O paciente pode mostrar identificações mais óbvias com as figuras primárias do início de sua vida, e ao mesmo tempo embarcar em um envolvimento sem fim com novas relações objetais derivadas da infinita variedade de suas fantasias inconscientes. Isso tudo é expresso na transferência. O analista precisa estar inteiramente vivo às possibilidades dos objetos recém-estabelecidos que o paciente necessita que o analista seja. Eles podem, em última instância, derivar dos objetos internos mais antigos do paciente, mas que foram submetidos a uma infinita série de transformações. Assim, com frequência são um tanto irreconhecíveis em termos de semelhança com as lembranças e a história do paciente.

Nos termos que emprego aqui, esses objetos são novas ilusões, e o paciente não está sozinho nesse processo. O analista deve não apenas estar receptivo às novas e diferentes projeções lançadas em sua direção, mas também estar ativamente tentando compreender o paciente e a relação analítica, de forma a pintar um novo, mais verdadeiro e mais preciso retrato do paciente. O retrato de cada sessão é novo, às vezes diferindo muito pouco do retrato de ontem, às vezes diferindo radicalmente, e assim os retratos de sessões contíguas podem ser quase irreconhecíveis. Não só retratos verbais, mas musicais. O paciente soará diferente ao expressar as mudanças em curso em sua evolução inconsciente, disparando respostas diferentes, receptivas mas também criativas, no analista, cujos próprios processos de fantasia inconsciente estarão vivos e expressivos se a análise for uma preocupação constante.

Esse processo não é defensivo em relação à maturidade, mas sim a expressão de uma forma de eterno rejuvenescimento, uma capacidade de ver novas qualidades nas coisas, após a dor de dar-se conta de que o caminho que se segue não é na realidade bom o suficiente, extenso o suficiente, sábio ou amplo o suficiente. Ele pede substituição, mais uma vez, por uma nova perspectiva ou sentimento, uma nova visão, um novo som, uma nova música. Antiga e moderna. Algo muito antigo, que tem sido buscado por esses poetas, músicos e artistas – possivelmente um único e compartilhado objetivo. O. Mas moderno no sentido de falha perpétua, insatisfação, algo sempre incompleto, necessitando renovação – novos experimentos, tentativas, pensamentos e frustrações. Deus nos livre – analistas podem até mesmo se utilizar de teorias de campos analíticos opostos, que estão fadados a usar “errado”, mas talvez de maneira criativa. A tentativa, então, do equivalente a um retrato ou a um concerto, com o fim de que o ciclo se repita, infinitamente.

Em seu livro mais recente, Salman Rushdie escreve sobre Pampa Kampana, sua mítica poeta-criadora:

(Graças à divertida satisfação de Pampa Kampana diante de Domingo Nunes e de sua pronúncia equivocada e enrolada, ela escolheu se referir tanto à cidade quanto ao Império como “Bisnaga”, ao longo de seu poema épico, procurando, talvez, lembrar-nos de que, embora seu trabalho seja baseado em fatos reais, há uma distância inevitável entre o mundo imaginado e o factual. “Bisnaga” pertence não à história, mas a ela mesma. Afinal de contas, um poema não é um ensaio nem uma matéria jornalística. A realidade da poesia e a imaginação seguem suas próprias regras. Escolhemos seguir o caminho de Pampa Kampana, portanto é sua cidade-sonho de “Bisnaga” que é aqui nomeada e retratada. Fazer o contrário seria trair a artista e seu trabalho.) (2023, pp. 33-34)

Não deveria nos surpreender o fato de um escritor tão criativo ter sido a pessoa capaz de compreender e articular o paradoxo da relação entre a ilusão e a realidade da forma mais clara. Essa passagem – entre parênteses e em itálico, que talvez simbolizem sua qualidade apartada, não totalmente real, próxima à evanescência – parece refletir a delicadeza do dilema do analista no consultório. Quando há ilusão demais, fantasia demais e processo primário demais, e quando há realidade demais, pensamento de processo secundário demais, há então pouca criatividade e imaginação? Quando o analista deve ajudar o paciente na construção de uma cidade-sonho, com sua própria ordem de realidade alternativa, e quando essa atividade compartilhada cruza a linha do delírio do analista-paciente em conluio?

Assim que cada tentativa de apreender a realidade se revela transitória, evanescente, não tanto realidade quanto ilusão, a próxima tentativa é concebida – envolvendo dor, luto, perda, confusão e frustração. Esses ciclos, talvez inconscientes, podem existir até mesmo para analistas não acostumados a pensar desse modo, que podem ser mais criativos do que se dão conta. Mesmo que envolvendo com frequência a tristeza e os equivalentes da Paixão segundo são Mateus, são no entanto esses ciclos de evanescência e ilusão que mostram ser criativos e fornecedores de vitalidade.

No ensaio “Sobre a transitoriedade” (1916/1957), Freud descreve duas atitudes contrastantes diante da transitoriedade da vida, que se sobrepõem a um sentido de ilusão subjacente àquilo que, superficialmente, parece sólido e belo. Diz ele:

Minha conversa com o poeta se deu no verão anterior à guerra. Um ano depois a guerra irrompeu e roubou do mundo suas belezas. Destruiu não só a beleza dos campos pelos quais passou e das obras de arte com as quais cruzou em seu caminho, mas também despedaçou nosso orgulho pelas conquistas de nossa civilização, nossa admiração pelos muitos filósofos e artistas e nossa esperança de um triunfo final sobre as diferenças entre nações e raças. Manchou a sublime imparcialidade de nossa ciência, desnudou nossos instintos e libertou os espíritos do mal que habitam em nós, que pensávamos ter domado para sempre através de séculos de educação continuada pelas mais nobres mentes. Tornou nosso país pequeno novamente e o resto do mundo remoto demais. Roubou-nos muito do que amávamos, e nos mostrou quão efêmeras eram muitas das coisas que tomávamos por imutáveis. (p. 307)

Freud escreve sobre ilusões, assim reveladas pela guerra, como desapontamentos. Coisas bonitas e elevadas tornam-se perturbadoras e deprimentes quando sua efemeridade é constatada.

Mas é o poeta que está deprimido pela transitoriedade da natureza, enquanto o próprio Freud concede um valor positivo à dimensão transiente e ilusória das coisas que vêm e vão, que florescem, mas então esmorecem e morrem. Segue a descrição inicial de Freud sobre o poeta:

Não muito tempo atrás, fiz uma caminhada de verão por um campo agradável na companhia de um amigo taciturno e de um jovem mas já famoso poeta. O poeta admirava a beleza da vista em torno de nós, mas não sentia nenhuma alegria nisso. Estava perturbado pelo pensamento de que toda essa beleza estava fadada à extinção, que desapareceria com a chegada do inverno, como toda a beleza humana e o esplendor criado, ou que ainda poderia ser criado, pelo homem. Tudo aquilo que ele poderia amar e admirar parecia estar despojado de seu valor pela transitoriedade à qual estava destinado. (p. 305)

E agora a resposta de Freud:

Mas eu contestei a visão pessimista do poeta, de que a transitoriedade daquilo que é belo implica a perda de seu valor. Pelo contrário, aumenta! Valor transitório é valor raro ao longo do tempo. A limitação da possibilidade de usufruir aumenta o valor da apreciação. Era incompreensível, declarei, que a percepção da transitoriedade da beleza devesse interferir em nosso alegrar-se por ela. (p. 305)

Essas interações são tão vívidas e contrastantes que quase exigem ser musicadas. E a musicalidade da escrita de Freud – mesmo traduzida, certamente uma das qualidades que o fizeram ser agraciado com o Prêmio Goethe em 1930 – conecta-se com o tema aqui apresentado. Se você pudesse imaginar que leu o ensaio de Freud somente uma vez ou, ainda melhor, ouviu alguém lê-lo em voz alta, encontrar-se-ia ainda mais em contato com seu aspecto poético e musical. Como uma obra de literatura, retrata seu assunto central – o transitório. Sua brevidade, apenas três páginas, enfatiza o sentido de que, se alguém ouvisse a leitura do ensaio, essa experiência se aproximaria muito de ouvir uma peça musical; quase sem que se percebesse, a peça teria acabado, evaporando-se sua ressonância. Ainda assim, levando em conta toda a evanescência da situação, a pessoa poderia jamais esquecê-la. É claro, o não esquecimento poderia muito bem apontar para sua veracidade, sua não ilusão. Acredito ser isso que Freud pensava. Mas o sentimento é agridoce, pois, apesar de algo verdadeiro permanecer, há também algo central que desaparece, evapora, com frequência deixando uma questão – de novo, isso pode ser sólido demais; talvez seja mais o sentimento de uma questão, uma dúvida –, a de se você realmente compreendeu o que se passou quando pensou tê-lo feito.

No encontro de Alice com o Gato de Cheshire (Carroll, 1865), ele gradualmente desaparece, até que só reste seu sorriso pairando na atmosfera. Alice já tinha visto muitas vezes um gato sem sorriso, mas nunca um sorriso sem gato. Esse é um momento magnífico de ilusão criativa, e reconhecemos sua realidade emocional. Todos tivemos experiências de algo evaporando, em que apenas uma parte – o sorriso – resta flutuando ali. É um absurdo, sorrisos não são capazes disso, mas ainda assim é o que fazem. Meu paciente é assim. Ele deixa algo flutuando no ar. Com frequência é um som. Não mais palavras em particular, não mais um pensamento, menos ainda uma interpretação. Certamente uma emoção, persistindo na atmosfera, com frequência uma ressonância musical em evaporação. Muitos reconhecerão essa experiência em relação a uma pessoa importante, uma pessoa amada ou odiada, muitas vezes uma criança. De maneira ainda mais óbvia um bebê, porque bebês não se valem de palavras e frases e do material do processo secundário; emitem sons particulares, sempre musicais, e esses sons musicais muitas vezes ficam flutuando no ar. Tais sonoridades com frequência sobrevoam no limite da consciência, não propriamente articuladas, não propriamente reconhecidas, mas potentes mesmo em sua evanescência na relação. Real? Ilusão?

Mas essa é a essência da ilusão, a de ser ilusória.

Tradução de Mariana Mies

2N.T.: o gamelão, música tradicional de Java e da Indonésia, é performado por um grupo de músicos predominantemente percussionistas.

Referências

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Recebido: 15 de Março de 2023; Aceito: 22 de Março de 2023

Francis Grier fjrgrier@gmail.com

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