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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.1 São Paulo  2023  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n1.04 

Artigo

Tecendo o encontro: Criança e pais na mente do analista

Tejiendo el encuentro: niño y padres en la mente del analista

Weaving the encounter: child and parents in the mind of the analyst

Tisser la rencontre : enfant et parents dans I’esprit de I’analyste

Regina Elisabeth Lordello Coimbra1 

1Psiquiatra. Psicanalista. Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicanalista de crianças e adolescentes da Associação Psicanalítica Internacional (IPA)


Resumo

A autora apresenta sua experiência analítica a partir de visão diferente da tradicional, em que a psicanálise é vista pela tendência binária da clínica com crianças e adolescentes ou com adultos. O analista das relações pais-bebê, crianças, latentes e adolescentes trabalha com o conceito de campo analítico estendido, o setting como zona compartilhada da clínica. A presença dos pais é inerente à condição de dependência emocional, econômica e social da criança em relação a eles. Os pais têm participação especial no horizonte do campo analítico e constituem com o paciente e o analista uma conjunção de forças que determinará efeitos no analisando e no analista. A autora faz um exame detalhado desse conjunto de fenômenos.

Palavras-chave psicanálise; pais-bebê; criança; latente; campo analítico

Resumen

La autora presenta su experiencia analítica desde una perspectiva diferente a la tradicional, cuando el psicoanálisis es presentado por la tendencia binaria de la clínica con niños y adolescentes/adultos. El analista de las relaciones padres-bebé, niño, infante y adolescente trabaja con el concepto de un campo analítico extendido, el “encuadre”, como un área compartida de la clínica. La presencia de los padres es inherente a la condición de dependencia afectiva, económica y social del niño hacia ellos. Los padres tienen una participación especial en el horizonte del campo analítico y junto con el paciente y el analista constituyen una conjunción de fuerzas que determinarán efectos sobre el analizando y sobre el analista. El examen detallado de este conjunto de fenómenos fue presentado como: “Tejiendo el encuentro: niño y padres en la mente del analista.

Palabras clave padres; psicoanálisis; padres-bebé; niño; latente; encuadre; campo analítico extendido; situación edípica

Abstract

The author presents her analytical experience from a different perspective than the traditional one, when psychoanalysis is presented by the binary tendency of the clinic with children and adolescents/adults. The analyst of parent-infant, child, infant, and adolescent relationships works with the concept of an extended analytic field, the “setting”, as a shared area of the clinic. The presence of parents is inherent to the child’s condition of emotional, economic, and social dependence on them. Parents have a special participation in the horizon of the analytic field and constitute with the patient and the analyst a conjunction of forces that will determine effects on the analysand and on the analyst. The detailed examination of this set of phenomena was presented as: “Weaving the encounter: child and parents in the mind of the analyst”.

Keywords parents; psychoanalysis; parent-infant; child; latent; setting; extended analytic field; oedipal situation

Résumé

L’auteure présente son expérience analytique d’un point de vue différent de celui traditionnel, lorsque la psychanalyse est présentée par la tendance binaire de la clinique avec un enfant et un adolescent/adulte. L’analyste des relations parent-nourrisson, enfants, nourrissons et adolescents travaille avec le concept d’un champ analytique étendu, le « cadre », comme un espace partagé de la clinique. La présence des parents est inhérente à l’état de dépendance affective, économique et sociale de l’enfant à leur égard. Les parents ont une participation particulière dans l’horizon du champ analytique et constituent avec le patient et l’analyste une conjonction de forces qui déterminera les effets sur l’analysant et sur l’analyste. L’examen détaillé de cet ensemble de phénomènes était présenté comme suit : « Tisser la rencontre : enfant et parents dans l’esprit de l’analyste ».

Mots-clés parents; psychanalyse; parents-bébés; enfant; latent; cadre; champ analytique étendu; situation ædipienne

A reciprocidade e sincronia do desenvolvimento corporal e do psiquismo é observada na zona compartilhada da clínica e inexoravelmente envolve a presença dos pais, da família e de seu entorno: escola, outros familiares e profissionais afins.

ALESSANDRA RICCIARDI GORDON & REGINA ELISABETH LORDELLO COIMBRA

Apresentar reflexões a respeito da psicanálise com crianças e adolescentes é sempre algo prazeroso. Para isso, vou percorrer os meandros de minha longa trajetória profissional como psicanalista, marcada por momentos intensos e movimentos decisivos, acompanhados de muita angústia e de aprendizado a ser compartilhado.

O início de minha carreira profissional aconteceu no campo médico, da psiquiatria, e me encanta recordar a descoberta da psicanálise ao trabalhar na tão querida Comunidade Terapêutica Enfance (Jones, 1970), conhecida como cte. Estive na companhia de colegas que constituíram a primeira geração de minhas famílias psicanalíticas.

Ainda jovem psiquiatra infantil, fui receber uma família que levava o filho mais velho para internação na cte. Chamava-se M e tinha 6 anos. Conversei horas com os pais e saí perplexa da entrevista. A família do garoto acreditava que o filho seria o novo anticristo. Os pais me perguntavam se eu também via o dentinho que “nascia” no céu da boca do menino, e falavam do nome do filho, que confirmaria a identidade atribuída a ele. Na ocasião recebi a maravilhosa supervisão de colegas da cte, psiquiatras com formação em psicanálise, que me ajudaram a pensar em hipóteses a respeito do que poderia acontecer na relação entre o garoto e os pais, considerando os fenômenos psíquicos inconscientes intergeracionais.

Essa criança iniciou atendimento psiquiátrico na cte, fazendo parte do grupo de crianças de sua idade, enquanto eu dava os primeiros passos na direção do aprendizado e futuro interesse pela psicanálise. Agradeço à família de M por colaborar para minha inserção no campo psicanalítico e para as reflexões sobre o contexto “a criança e os pais”.

O estímulo implícito nesse contexto contém dois sujeitos em interação, a criança e os pais, tendo como pano de fundo a mente do analista. Os pais têm participação especial no horizonte do campo analítico e constituem com o paciente e o analista uma conjunção de forças que determinará efeitos no analisando e no analista.

Chamarei o exame detalhado desse conjunto de fenômenos de tecendo o encontro: criança e pais na mente do analista. Pretendo construir esta apresentação a partir da observação da clínica psicanalítica desde a perspectiva da dupla criança-pais em relação dinâmica com o analista. Espero que venha a ser útil para os colegas.

Em meu percurso, passei por vários movimentos de reorganização conceitual até chegar à analista que sou hoje. No transcorrer do tempo, estive próxima à tendência dicotômica entre psiquiatria e psicanálise, e também entre ser psicanalista de adultos e/ou ser psicanalista de crianças e adolescentes. Compreendo esse caminho a partir da própria história da psiquiatria e da psicanálise, fato curioso que também tem aspectos próximos à minha trajetória.

Historicamente, a psiquiatria e a psicanálise tiveram seus inícios a partir do universo dos adultos e depois chegaram às crianças e aos bebês. Há mais de um século, em seu início, o tratamento de adultos foi ponto de partida da psicanálise, com a perspectiva de buscar o reconhecimento do inconsciente e a natureza de seus conteúdos expressos pela livre associação de ideias por meio da linguagem verbal. O acesso psicanalítico à vida mental das crianças acontece desde o início do século 20, a partir da atividade do brincar, correspondendo à linguagem verbal do adulto. Em torno de 1950 teve início novo aporte teórico e técnico da psicanálise pelo acesso às instâncias psíquicas mais arcaicas, a partir das relações pais-bebês. Essa íntima relação de trocas subjetivas trouxe novos conhecimentos para a compreensão dos estados mentais presentes em bebês e crianças, permitindo ao psicanalista acessar a constituição do psiquismo ou mesmo trabalhar com o sofrimento psíquico instalado precocemente e atuar na intervenção de patologias futuras. (Coimbra, 2022, pp. 82-83)

Portanto, a visão tradicional da psicanálise, com crianças e adolescentes ou com adultos, mostra tendências diferentes do modelo que considero o campo analítico mais amplo, que parte das relações pais-bebê, da criança, do latente e do adolescente até chegar ao adulto, dentro de uma perspectiva integrada. Enfim, a psicanálise é uma só, com suas especificidades teórico-técnicas, próprias de cada momento do desenvolvimento, o que nos permite observar fenômenos psíquicos em movimento e em diferentes direções, vividas no interior do processo analítico.

O conceito generalizador de infância como o longo período que vai do nascimento até a adolescência torna indiscriminadas as nuances próprias da mobilidade do desenvolvimento psíquico. Poderíamos pensar a psicanálise além do vértice do infantil regressivo, inconsciente e atemporal na mente adulta, ou mesmo na mente de uma criança. Também, e principalmente, buscar a criatividade do processo de constituição do psiquismo, a partir das relações pais-bebê, dos primitivos processos de intersubjetividade e dos objetos internos parciais, em direção a processos mais integrados, até a elaboração depressiva, em meio ao caldo de cultura dos mandatos edípicos e das forças libidinais em plena interação com a realidade externa, desenvolvimento físico e cognitivo.

Definindo e ampliando o território de conversa sobre “tecendo o encontro: criança e pais na mente do analista”, lembro o que diz o artigo “Psicanálise de crianças: um terreno minado?”: “Consideramos o trabalho com crianças um terreno potencialmente minado, um campo cheio de armadilhas para serem desarmadas. Por outro lado, é um terreno fértil e como tal oferece para o analista um campo simples, lúdico e menos defendido” (Lisondo et al., 1996, p. 9). Esse artigo mostra o encanto das especificidades do trabalho psicanalítico com crianças e adolescentes. Entretanto, faz alertas em relação a armadilhas sinuosas. Por que poucos corajosos analistas se interessam em trabalhar com crianças?

Vários colegas que trabalharam muitos anos com crianças relatam que, em determinado momento, abandonaram essa prática, mas permaneceram com adolescentes, talvez pela proximidade com o setting analítico com adultos. Não há respostas específicas sobre essa tendência, mas é possível pensar em algumas hipóteses diante da complexidade do tema. Observa-se que o fator idade do analista pode levá-lo a uma menor disponibilidade para trabalhar no setting físico e psíquico requerido para atender crianças. Também, e principalmente, as dificuldades inerentes à proximidade com os pais das crianças podem suscitar “cansaço”. Colegas de outros países e outras sociedades informam sentimentos semelhantes.

Braga (1996) falou de sua experiência ao apresentar reflexões sobre o trabalho com os pais na prática psicanalítica com crianças e adolescentes. A autora faz uma introdução histórica em que discorre sobre experiências de uma grande geração de analistas de crianças e adolescentes, indo desde a ideia de assepsia técnica – quando uma analista atendia a criança e outro os pais, simultaneamente – até um momento de maior proximidade entre pais e analista, constituindo-se assim duas práticas muito conhecidas: acompanhamento de pais e depois orientação de pais. Segundo Braga,

ambas as atividades traziam comunicações curiosas, a primeira sugeria estar ao lado, sem trânsito na horizontal, como uma ideia de limite de interação e de intimidade, enquanto a ideia de orientação trazia a mensagem de conhecimento onipotente do analista, se sobrepondo à participação criativa dos pais. (p. 170)

A autora amplia suas ideias questionando se poderia haver psicanálise no contexto do chamado trabalho analítico com os pais, estendendo esse questionamento também ao conceito de campo de investigação. Apresenta sua experiência e diz que esses encontros podem promover transformações, que algo se passa além das palavras, fato que estimula a atitude analítica em atividades como o trabalho com pais, casal, família e vincularidade.

Na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), o Setor de Psicanálise de Criança e Adolescente teve participação marcante no processo de atualização da formação de analistas a partir da perspectiva da formação integrada. Encontra-se no Histórico da Formação Integrada, Setor de Documentação da SBPSP (2021), um texto que relata a regulamentação da formação em psicanálise com as relações pais-bebê, com crianças, com latentes e com adolescentes integrada à formação em psicanálise com o paciente adulto. Além da significativa conquista como formalização institucional, ressalta-se o valor de seu conteúdo psicanalítico:

O trabalho analítico seguindo as relações pais-bebê, criança, latente e adolescente diferencia-se tecnicamente da análise de adultos. A reciprocidade e sincronia do desenvolvimento corporal e do psiquismo é observada na zona compartilhada da clínica e inexoravelmente implica na presença dos pais, da família e algumas vezes de seu entorno: escola, outros familiares e profissionais afins (área do trabalho transdisciplinar). Trata-se de uma experiência viva, como deve ser a formação em psicanálise, que se sustenta por múltiplos planos que se ancoram como andaimes e dialeticamente se movimentam entre as fronteiras das alteridades, do psíquico e do factual, do corporal-concreto e do abstrato, do interno e do externo e na cultura e história pessoal da criança. Portanto, o conhecimento da técnica para o trabalho analítico com bebês, criança, latente e adolescente implica no contato do analista com seus estados primitivos de mente, o infantil, a criança, o latente e o adolescente em si mesmo, e principalmente sustentar estas instâncias presentes no trabalho com os pais.

Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, 1990), a pessoa até 12 anos incompletos será considerada criança, enquanto de 12 a 18 anos será considerada adolescente, e a idade-limite superior determinará a maioridade civil, definida pelo Código Civil (Lei nº 10.406, 2002). O desenvolvimento do tema “tecendo o encontro: criança e pais na mente do analista” aqui apresentado seguirá o conceito de criança com a liberdade de abranger fenômenos psíquicos de faixas etárias que vão desde as idades iniciais da constituição da subjetivação até o momento que antecede a chegada da pré-puberdade e adolescência. Portanto, quando o texto requisitar, será usada a nomeação criança ou as especificações para cada idade: relações pais-bebê, criança e latente.

Os analistas das relações pais-bebê, crianças, latentes e adolescentes trabalham com o conceito de campo analítico estendido, o setting como zona compartilhada da clínica. A presença dos pais é inerente à condição de dependência emocional, econômica e social da criança em relação a eles. Tal fenômeno diferencia os parâmetros dessa análise daqueles da análise de adultos. É sempre importante considerar que, nessas condições, o analista estará diante de uma multiplicidade de fatores para responder “Quem é o paciente?”. A resposta não é simples, e dificilmente haverá apenas uma possibilidade e uma faixa etária, expressão do paradoxo próprio do trabalho analítico.

Serão recebidos os chamados pacientes e seus pais e/ou a família para o trabalho de “avaliação psicanalítica”. Por serem menores diante da lei, o analista precisa da autorização dos pais para iniciar o processo de avaliação. Busca-se privilegiar a especificidade da escuta, da observação, da continência no trânsito transferencial e contratransferencial inconsciente, na relação dialética com o nível consciente e inconsciente da participação dos protagonistas presentes no campo relacional.

O primeiro encontro e os subsequentes poderão acontecer em várias modalidades. O critério é de responsabilidade do analista: apenas os pais ou um deles; livre para as pessoas da família; toda a família; os pais e a criança; apenas a criança.

Vivemos em uma cultura em que os adultos responsáveis pelas crianças fazem o primeiro contato por telefone. As primeiras notícias informam aspectos interessantes a serem observados: como a criança “paciente” é apresentada, dados sobre a família e os filhos, se os pais são casados ou separados, se estão em litígio judicial, se são monoparentais, viúvos, adotantes, migrantes, se desejam atendimento exclusivamente online ou presencial etc.

A colega Marisa Mélega tem longa experiência nas consultas compartilhadas, com a presença do grupo familiar. O encontro comunica informações valiosas a respeito da qualidade dos vínculos intrafamiliares. O campo analítico que avalia o que ela chama de situação-problema está detalhado no texto “Intervenções terapêuticas conjuntas pais-filhos” (1998). Trata-se de uma abordagem inspirada no modelo de observação da relação mãe-bebê, método Bick, aplicada em contexto clínico.

Também a colega Alicia Lisondo apresenta o processo de avaliação psicanalítica e como o diferencia da anamnese habitual no texto “Avaliação psicanalítica dos estados mentais primitivos na constituição do psiquismo em infans e crianças: os pais na cena” (2015).

Tenho grande admiração pelas colegas e proponho um resumo das sugestões propostas:

  1. O questionamento à forma direta e objetiva de obter informações.

  2. A concepção de que os conteúdos deverão surgir espontaneamente no trânsito das interações subjetivas das avaliações.

  3. A ideia renovadora a respeito do número de entrevistas e do tempo da avaliação, que é livre.

  4. A diluição da antiga expectativa acerca da sessão de devolutiva final nas conversas compreensivas e reveladoras durante o processo de avaliação, em que o analista está incluído.

  5. A noção de que o modelo psicanalítico de avaliação é um processo vivo, nutrido pela interação de fenômenos emocionais que transitam a cada atendimento entre os participantes.

A construção da conversa sobre “tecendo o encontro: criança e pais na mente do analista” vai começar pelos bebês. Para cada bebê há duas gestações, no útero e na mente dos pais (na mente das pessoas em seu entorno emocional), oferecendo aos filhos seus modelos de subjetividade, a partir da intersub-jetividade, na esteira do desenvolvimento das funções de parentalidade.

A função de parentalidade (vir a ser pai e ser mãe) é um processo que vai se desenvolver com a colaboração do desejo de ter um filho. No entanto, embora a experiência mostre que desejar um filho seja importante para construir a função, não é suficiente. Os recursos psíquicos dos pais serão determinantes nessa tarefa. Esse é o acesso ao nascer da subjetividade, o vir a ser, o despertar da vida mental em direção ao futuro.

Quando pensamos na mente dos pais como elemento participante da constituição da mente do filho, chegamos ao conceito de parentalidade, definido por Serge Lebovici (Solis-Ponton, 2004). Essa noção não inclui apenas o sentido biológico do termo. Ser pai ou mãe não é só ter um filho; é também uma oportunidade para refletir a respeito de sua descendência, e o bebê vai colaborar para constituir as funções de parentalidade. “Quando nasce um filho, nasce um pai.” Aliás, é um trabalho de mão dupla: há participação ativa das competências do bebê apresentando-se aos pais, buscando e estimulando narcisicamente os pais, disponibilizando a eles a construção da inscrição de seu bebê em sua mente. Do contrário, o filho não existe; eles olham, mas enxergam outra criança.

De acordo com Moro,

não nascemos pais, tornamo-nos pais... A parentalidade se fabrica com ingredientes complexos. Alguns deles são coletivos, pertencem à sociedade como um todo, mudam com o tempo, são históricos, jurídicos, sociais e culturais. Outros são mais íntimos, privados, conscientes ou inconscientes, pertencem a cada um dos dois pais enquanto pessoas, enquanto futuros pais, pertencem ao casal, à própria história familiar do pai e da mãe. Aqui está em jogo o que é transmitido e o que é escondido, os traumas infantis e a maneira com a qual cada um os contém. (2005, p. 259)

Golse (2004) apresenta ideias que ampliam nosso conhecimento. Fala dos efeitos sobre os pais das experiências da parentalidade: os bebês nos tocam, mobilizando em nós o desejo de cuidar deles, muitas vezes para compensar os bebês que não fomos, ou para curar ou reparar os bebês que fomos; jamais morrem em nós os bebês que fomos.

O bebê tem necessidade de uma história para se construir, uma narrativa para juntar suas partes, como elo interno constituinte de si mesmo, envolvendo os pais e a situação edípica inerente à sua existência como ser humano. Esse espaço se define pela presença inevitável das marcas da intergeracionalidade e da transgeracionalidade (a criança mítica, a imaginada, a narcísica e a fantasmática).

Segundo Lebovici, o bebê imaginário que se estabelece na mente dos pais é o “bebê transgeracional”, que ocupa um lugar fundamental ao lado da transmissão genética (Solis-Ponton, 2004).

As crianças adotadas precisam de ajuda para construir uma história. Há dois casais de pais, fantasias de um casal assexuado que roubou o bebê de um casal fértil, cheio de lutas edípicas, tal qual o mito de Édipo.

A comunicação inicial entre um bebê e seus familiares pode ser comparada à situação de estar em um país cuja língua não falamos. Tentamos todo tipo de comunicação: gestos; sons; os chamados teatros: das mãos, da boca, dos olhos; a musicalidade da voz; a mímica corporal; a tonalidade do braço que carrega o bebê etc. A construção da interação afetiva vai se estabelecendo. Os bebês respondem e oferecem seus sons, seu corpinho para ser acariciado, entrando num jogo bem interessante. Esse ritmo é compartilhado a partir de experiências afetivas de presença e tolerância à ausência. O desencontro inviabiliza o desenrolar da constituição psíquica, levando a uma subjetivação falida.

Na vida neonatal, o bebê não se discrimina do corpo e da mente da mãe, ou do cuidador. O palco dos acontecimentos é seu corpo, e coisas e pessoas são percebidas de maneira confusa. A percepção inicial é de detalhes sensoriais e depois do conjunto. Para isso, é necessária uma mente adulta, que dê significados emocionais para as experiências sensoriais vividas entre eles e captadas pelo bebê, significados confirmados pelo aprender pela experiência, constituindo-se em pensamentos que serão pensados pelo aparelho psíquico. As experiências emocionais iniciais são fundamentalmente binárias e excludentes, boas ou más, absolutas e possessivas, fantásticas, lábeis, de natureza concreta e sensorial, sem noção de memória, com raras noções de espaço, atemporais, sem antecipação, sustentadas por onipresença e onisciência, originadas de um ponto e vividas como algo total.

Inicialmente os contos de fadas assustam as crianças pela natureza concreta, até que a presença continente dos pais favorece a ampliação da percepção, propiciando discriminação entre o mundo da concretude e o mundo da representação simbólica. Assim se enriquecem as brincadeiras das crianças e o gosto pelas narrativas dos contos infantis; vai se instalando a percepção de tempo; também a condição de se separar dos adultos significativos e manter a relação amorosa mais realística com os pais. Enfim, passa a ser possível usufruir a diferença eu-outro e ampliar os espaços externo e interno da situação edípica.

Próxima dos 3/4 anos, a criança tem maior noção das diferenças entre os sexos, entre os corpos, e aumenta sua curiosidade sobre seus interiores e o espaço externo. A conquista dos controles esfincterianos já estabelecidos promove o confronto dessas descobertas com as vivências arcaicas dos momentos anteriores do desenvolvimento sobre a sexualidade humana. Essa ampliação leva a criança a pensar em sua origem a partir dos pais, duas pessoas diferentes entre si, sustentando o contato com a bissexualidade humana e as forças pulsionais. Por outro lado, dialeticamente, pela reversão de perspectiva, acontece um grande impacto, desmoronando as fantasias primitivas da criança de que os pais foram concebidos por ela e, portanto, seriam sua posse e extensão (contexto com a qualidade de objetos internos parciais). Isso tem como consequência a percepção de que o casal de pais que a constituiu como pessoa a transcende (contexto com a qualidade de objetos internos mais integrados). Ressalto aqui uma faceta muito importante da tão famosa situação edípica: quando a criança chega aos 5/6 anos, a latência se apresenta.

Penso ser importante especificar as funções da latência, que se inicia próximo ao período da alfabetização e segue até a pré-puberdade. A latência é pensada não apenas pela perspectiva da organização sexual; alguns autores sugerem ampliar a observação e pensar a latência como um momento em que o lugar dos pais dá um salto significativo (Carignani, 2000; Etchegoyen, 1993; Franch, 2005).

Surge a realidade impactante e dialeticamente significativa, que impõe limites e posterga a ação das forças sexuais para a adolescência; que abre e amplia os espaços para o desenvolvimento cognitivo e emocional com a chegada da alfabetização, pela liberação da sublimação e pelos ajustes da repressão. Nova rendição a mais um sistema de ordens, que se impõe à criança à sua revelia (regras para aprender a ler e a escrever), além da percepção de ser um produto de outras pessoas, e não o criador de si mesmo.

O pensamento psicanalítico tem considerado que as atividades da criança na latência são expressões de defesas para mantê-la a alguma distância das pulsões sexuais. Essas defesas vão agir sobre as pulsões, com o abandono do vínculo sexualizado em favor do vínculo sublimado. A criança busca governar a realidade que a cerca e ser agente participativo de sua história. As ideias mais atuais abrem espaço para a importância do trabalho analítico com latentes, a partir de novas articulações teórico-clínicas, tomando como base novas posições metapsicológicas para sustentar essa discussão.

Valorizamos as chamadas tarefas da latência, que levam o jovem latente a conhecer o mundo além-família, os espaços afetivos que já não acontecem apenas dentro dela. A aproximação do social e da cultura leva o latente ao voo da exogamia, sua capacidade de abstração se amplia, e as relações amigáveis com seus pares lhe permitem eleger seu “melhor amigo”, o que vai possibilitar o nascimento das primeiras grandes amizades individuais, e consequentemente o afastamento da condição de satélite do casal edípico, com os lutos correspondentes. Ao lado da grande conquista, conseguir dormir na casa do amigo, há uma ampliação da percepção do tempo linear e um redimensionamento da visão onipotente, onisciente e onipresente em relação aos pais.

O momento da latência favorece a vivência de novas e diferentes identificações em relação aos objetos primários (pai e mãe). A expansão das redes de identificação levará às figuras originadas do social, com ampliação da trama identificatória, favorecida pelo campo relacional com outros adultos, professores especialmente, jogadores de futebol, pessoas midiáticas etc. A latência é uma passagem, um tempo de espera da maturidade da sexualidade genital da adolescência e do corpo em processo de crescimento.

Os vários desdobramentos do trabalho psicanalítico em campo estendido nos aproximam intimamente dos pais e das famílias, porém ressalto que não trabalho na área da psicanálise de família, embora muitas vezes a família faça parte do meu trabalho, assim como uma criança pode ser o foco de um atendimento familiar. Considero fundamental a especificidade do espaço da família como ponto de acesso para colegas analistas de vínculos familiares.

Neste artigo seria interessante nomear diferentes possibilidades de constituição das relações pais-filhos: pais que formam uma família tradicional; divorciados; em novos casamentos e novas famílias; em litígio judicial; viúvos; monoparentais; homoafetivos; adotantes; desconhecidos; constituídos a partir de inseminação artificial; desejosos de atendimento exclusivamente online ou presencial; migrantes etc.

Há aspectos bem complexos que justificam ampliar os comentários a respeito das interferências no desenvolvimento de um filho, presentes nas relações intergeracionais (entre gerações imediatas) e transgeracionais (gerações que se sucedem). Nesses contextos, não há discriminação entre os sentimentos próprios de uma criança e as intrusivas identificações projetivas originadas na mente dos pais. Algo que pode ajudar o analista com relação às comunicações por identificação projetiva vividas na contratransferência seria certa estranheza na qualidade, na localização e na intensidade dos estados emocionais, sugestiva dos chamados sentimentos “corpos estranhos”, sobretudo por serem experienciados repetidas vezes, havendo possibilidade de se manterem de geração em geração, constituindo o que Bleger (1967/1981) denominou núcleos aglutinados. Observa-se o fenômeno em que a criança não considera somente seus pais, mas também seus objetos internos.

Bernard Golse (2004) apresenta o direito de toda criança vir a ser informada sobre sua origem, direito inerente ao ser humano. Serão inúmeras etapas nesse processo, que tem início, mas não tem fim – talvez só com a própria morte. Cada um dos momentos vai caracterizar possibilidades peculiares de apresentar para um filho a noção clássica da história da vida: cada ser humano é constituído por outros dois seres humanos diferentes, um homem e uma mulher, chamados pai e mãe. Considera-se interessante essa possibilidade pelo aspecto reorganizador que oferece para a vida de uma pessoa, principalmente no interior de famílias com vínculos monoparentais. A cada momento da ontogênese do ser humano, desde quando é um bebê e para toda a sua vida, haverá qualidades especiais de condição emocional para entrar em contato com sua história.

Temos observado pais atentos à sua condição de responsabilidade emocional em relação à vida dos filhos e aos cuidados quanto ao entorno emocional que será oferecido a eles. São aspectos fundamentais para a qualidade de valores, sustentação e contenção da dinâmica emocional entre eles. Vamos transitar entre conversas que permeiam temas como sinceridade emocional e recursos para sustentar as diferenças de identidade de corpos sexuais, da presença do casal parental sexualizado que constituiu o filho, da estratificação geracional, de realidade externa e interna, e de tempo e espaço.

Tem sido muito frequente, com certo teor de eloquência, os pais procurarem os analistas de criança, principalmente, na expectativa de resoluções um tanto mágicas e rápidas: “Nossos filhos não têm limites. Precisamos de ajuda”. Também se pode observar pais que não sustentam as diferenças geracionais e de lugares recíprocos dentro da família, de modo a não se manterem na condição de adultos responsáveis pela procriação, atribuindo aos filhos o lugar onipotente de participação na decisão dos pais de gerar filhos ou não.

A colega Ponce de León (2016) apresenta ideias enriquecedoras sobre o modelo de pensamento das funções de parentalidade:

Introduzir a criança nesse universo de diferenças não é um fato que ocorre naturalmente em todas as suas nuances, pois depende de uma longa cadeia que se constrói desde antes do nascimento, em um a priori que é a inscrição da diferença no vínculo parental, com ambos os parceiros localizados em lugares recíprocos. Esse aspecto de condição estruturante para o filho, que surge da assimetria geracional, leva-me a propor a ideia de uma “função diferenciadora”. O termo “diferenciadora” se refere à ação de marcar diferenças e permitir, desse modo, suas inscrições no psiquismo e no vínculo, o que prepara o caminho para o reconhecimento da alteridade.

O trabalho do psicanalista com pais-bebês tem a finalidade de atender as demandas primitivas da constituição da subjetividade, cuja instalação se processa a partir da intersubjetividade: “Quem constrói mente é mente”. O preparo do analista para essa função vem sendo desenvolvido desde a metade do século 20 (1948), a partir do método de observação da relação mãe-bebê de Esther Bick (1964/1967). Esse campo de trabalho analítico implica, antes de tudo, entrar em contato com estados emocionais inquietantes, não verbais, observados em silêncio e pela expressão muitas vezes corporal, e ao mesmo tempo sentir-se incluído na família e estar livre de ideias preestabelecidas para exercer a função analítica de continência. Trata-se da chamada clínica 0 a 3 (Silva, 2010).

Os conteúdos intrusivos de várias naturezas e em trânsito no entorno emocional do filho vão promover na criança a sobreposição de estados emocionais perturbadores, principalmente os que ocorrem em momentos mais primitivos da constituição de mente. Nessas condições não há recursos psíquicos para delimitar o self, possibilidade de elaborar sua existência como decorrente de um processo alheio à sua participação (ser um produto de outros dois humanos diferentes), nem percepção realística do casal parental sexualizado como objetos totais. Enfim, faltam melhores condições emocionais para funcionar internamente em dois trilhos: conter o modelo do casal parental interno e compreender sua existência separada na realidade externa.

Selma Fraiberg, Edna Adelson e Vivian Shapiro (1974) observam o seguinte:

Em todo quarto de bebê há fantasmas. São visitantes do passado não lembrado pelos pais, hóspedes não convidados para o batizado. Em circunstâncias favoráveis, esses espíritos inamistosos e não desejados são banidos do quarto e retornam às suas moradas subterrâneas. ... Em geral, não é necessário os pais nos procurarem para atendimento clínico ... mas ... os intrusos do passado podem fixar residência no quarto do bebê, reivindicando tradições e direitos de propriedade.

Costumo apresentar aos pais as emoções em função dos sentimentos vividos a partir das situações edípicas em todas as suas versões, que poderão buscar caminhos de elaboração por toda a vida, favorecendo seu não retorno como fantasmas na outra geração.

Como exemplo, podemos citar a presença constante de mecanismos depressivos em filhos de pais separados que choram no momento de término da visita na casa de um dos pais e volta para a casa do outro, fato muitas vezes usado nas tramas judiciais entre os pais. Observo que os pais se sentem ajudados se puderem observar que a criança chora por estar vivendo momentos tristes, depressivos e culposos, por não discriminar os fatos e principalmente por desejar viver em apenas uma casa. Também é bastante comum os pais informarem os filhos que, após a separação, tudo será muito melhor, vão ter duas casas, dois quartos, duas televisões e dois video games. Curiosamente essa questão provoca culpa, os filhos não conseguem corresponder às demandas excitadas dos pais. Trata-se de mecanismos defensivos à dor depressiva que se distribui sobre todos da família. O trabalho analítico estendido aos pais poderá promover sustentação à elaboração de angústias mascaradas por apelos sedutores, também atribuídas às crianças, elegendo-as como “pacientes”.

Wallerstein e Kelly (1998), com base numa longa pesquisa, informam que nem a separação nem o casamento infeliz mantido são garantias resolutivas para os filhos. O impacto das características dos vínculos vai repercutir de acordo com o momento do desenvolvimento emocional dos filhos e a qualidade do trânsito das emoções entre os componentes da família. Os estados emocionais emergentes em experiências de separação do casal vão mobilizar inúmeras possibilidades, sendo a dor depressiva diante da perspectiva de luto e seus correlatos defensivos os mais comuns. O campo de elaboração do luto vai envolver os pais, os filhos e a família ampliada.

Britton apresenta a relação entre a situação edípica e a posição depressiva:

Essas duas situações estão inextricavelmente entretecidas, de modo tal que uma não pode ser resolvida sem a outra: nós resolvemos a posição depressiva elaborando o complexo edípico e o complexo edípico elaborando a posição depressiva. Vejo a posição depressiva e a situação edípica como nunca concluídas, mas sim como tendo de ser trabalhadas em cada nova situação de vida, em cada estágio de desenvolvimento e a cada acréscimo importante à experiência ou ao desenvolvimento. (1994, p. 58)

Em continuidade ao tema anterior, o contato com a dor da perda do mito do casamento como vínculo eterno e os novos casamentos após a separação dos pais trazem sobreposições e ajustes aos novos estímulos emocionais, como também novas esperanças ao mostrarem os pais em condições de reorganização afetiva. Observamos as famílias reconstituídas e as famílias ampliadas muitas vezes buscando saídas para compor a complexidade que esses encontros apresentam aos filhos. Todo cuidado é pouco para estabelecer barreiras aos riscos de incesto entre filhos que vivem como irmãos.

A função analítica tem sido bastante efetiva para a proteção dos filhos nos contextos em que o casal está separado, porém mantém o vínculo do casamento pelo ódio. Nesses casos busca-se a intervenção do Poder Judiciário pela falência das condições emocionais dos pais. É interessante notar que esses processos se estabelecem por falta de contenção intrapsíquica, rivalidades edípicas intensas entre os pais, e falta de significados simbólicos que representem as funções de parentalidade e as concepções de grupo familiar. A experiência analítica tem sido oferecer aos pais a compreensão dos efeitos terríveis sobre os filhos como participantes passivos e ativos dos processos judiciais entre os pais.

Diante de muitos anos de experiência, quero ressaltar minha opinião sobre o lugar do analista de criança quando é solicitado pelos pais a se posicionar nos litígios entre eles, sustentados pela judicialização. Trata-se de situações difíceis. Muitas vezes entramos em contato com grande sofrimento psíquico, distribuído entre as pessoas que lutam judicialmente. O analista costuma ser bombardeado pelas instâncias jurídicas a dar sua opinião, principalmente pelo “cabo de guerra” que os pais impõem ao analista para a anuência às suas demandas pessoais.

Considero importante a postura analítica de se manter representante do paciente e valorizo a colaboração de colegas psicanalistas que atuam na área de mediação jurídica.

Dois trabalhos interessantes sobre questões relacionadas às novas configurações familiares (famílias homoafetivas, por exemplo) encontram-se no volume 25 do Livro Anual de Psicanálise: “Meninos apenas! Mães não permitidas” (Smolen, 2011) e “Realidade triádica, pais do mesmo sexo e análise de crianças: resposta ao artigo de Ann Smolen” (Herzog, 2011). Eles mostram a análise de duas crianças, ambas do mesmo sexo dos pais, mas de sexo diferente do analista. O casal de pais adotou o garoto com 8 meses, e o casal de mães teve a garota por gestação assistida, com o óvulo de uma das mães, fecundado por esperma de um doador conhecido, gestado no útero da outra mãe. Ambos chegaram à análise com 4 anos.

Foram verificados fenômenos emocionais muito próximos nos dois casos. Observou-se competência das crianças em expressar curiosidade referente ao “instinto epistemofílico” de Klein, quanto às origens, às diferenças e às semelhanças de várias naturezas. A curiosidade quanto ao sexo anatômico oposto teve teor mais exuberante do que comumente se vê em outras crianças, assim como a curiosidade a respeito do contexto edípico em sua vida. Essas buscas tinham características que seguiam as linhas do desenvolvimento, desde as discriminações a partir dos contatos sensoriais e corporais até as conversas explícitas e mais elaboradas simbolicamente sobre suas origens e as de seus pais e mães.

Evidenciou-se a luta dessas crianças em procurar o vigor e principalmente a paixão existente nos modelos de casal edípico diferenciado sexualmente, como gerador de sua vida. Observou-se também, como contraponto, a presença de projeções transgeracionais dos pais e mães sobre os filhos, que vão se expressar como fantasias sobre o sexo oposto, com qualidades de impulsividade, raiva e persecutoriedade.

Herzog afirma:

Cada vez mais, as crianças estão sendo criadas em ambientes que guardam pouca, ou nenhuma, semelhança com a assim chamada família nuclear de antigamente, mesmo que a direita política continue a defender esse aspecto da antiga realidade social como o único modo pelo qual podem ocorrer intimidade e cuidados com pessoas. Há algum tempo sabemos que as crianças são muito hábeis em todos os comportamentos relativos à manutenção da vida e adaptações, quando se trata de obter do ambiente aquilo que é essencial para seu crescimento e seu desenvolvimento adequados. O grupo Brazelton nos mostrou como um bebê trabalha para fazer surgir receptividade na mãe deprimida, insensível. Anna Freud e Sophie Dann demonstraram as formas pelas quais as crianças sem pai, na Inglaterra em guerra, idealizavam pais a partir dos substitutos disponíveis na comunidade. Não seria, portanto, surpresa alguma afirmar que uma criança, criada numa família não formada por mãe feminina e pai masculino, pudesse revelar seus próprios esforços para conceituar e administrar as particularidades dos arranjos de seus cuidadores. Mais que isso, poderíamos prever que ela estaria aberta – se não francamente predisposta – a manifestar não apenas a fome de objeto, mas também a fome de representações. (2011, p. 25)

Seguindo a interessante retrospectiva dos textos atuais, nos deparamos com as questões de gênero em crianças e suas repercussões entre os pais e sobre as próprias crianças. Tenho poucas experiências clínicas em relação a essas demandas, embora tenha muitas leituras e conversas com colegas em busca de conhecimento e aprendizado sobre as novas configurações familiares e as neossexualidades.

Alguns pontos chamam a atenção, como o risco de definições prematuras aceitas pelos pais, justamente em momentos em que os representantes psíquicos de qualidade de objetos internos se expressam a partir de fantasias inconscientes onipotentes, pouco testadas pela realidade, parciais, muitas vezes em plena concepção de casal parental combinado e com representações identitárias indiscriminadas.

Indago se haveria certo teor disfórico na busca de definições classificatórias e diagnósticas de fenômenos manifestos, em contraste com a verificação de que o desenvolvimento do psiquismo humano é um longo, inacabado e incompleto processo. Reconheço a condição dificílima vivida pelos pais. Vejo-os confusos e subjugados à nova ordem de significados, e até impedidos de pensar diante de experiências atravessadas por ação marcadamente corporal, em detrimento do acolhimento aos estados emocionais dos filhos – talvez diante de angústias que estimulem neles dor pelo medo e culpa por não terem oferecido confiabilidade estruturante aos filhos.

Para finalizar, deixo algumas indagações: será que na atualidade busca-se sair da situação de angústia que a complexidade da vida apresenta mediante a crença em caminhos sem conflitos, admitindo-se a precoce “escolha” da sexualidade da criança como modo de se esquivar da função dos pais em se oferecer como referência para as gerações seguintes às suas? Seria essa a nova versão da autoalienação parental? Seria a busca facilitadora para complexidades inevitáveis, atribuindo-se aos filhos funções que seriam dos pais/cuidadores?

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Recebido: 20 de Março de 2023; Aceito: 29 de Março de 2023

Regina Elisabeth Lordello Coimbra bethcoimbra07@gmail.com

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