Refletir sobre a psicanálise de crianças tal como pensada e praticada hoje em dia nos ajuda a integrar novas contribuições e atualizar aspectos da experiência sistematizada através dos anos – pouco mais de um centenário, se tomarmos os primeiros artigos das pioneiras, como Hermine von Hug-Hellmuth (1915, citada por Boukobza, 1993b), Melanie Klein (1921/1996) e Anna Freud (1927/1971). Sinto-me honrada e grata em ter sido convidada a fazê-lo e espero contribuir para esse debate.
Nesse amplo espectro escolhi focalizar o trabalho psicanalítico com os pais, tanto por sua relevância para os que trabalham com crianças quanto por entender que minha própria forma de trabalhar passou por alterações significativas. São os pais que trazem a criança para a análise. São eles que sustentam financeira e emocionalmente o trabalho analítico. Eles têm uma influência significativa no setting através da demanda por análise, da pontualidade e assiduidade, do pagamento e de outras interferências. Tal influência pode levar a conflitos, impasses, e requer atenção do psicanalista. Entretanto, os pais não são diretamente objeto de interpretação. Como compreender e onde localizar essa relação? Estaria dentro do setting, fora dele, num campo estendido? E como alcançá-la? Devemos criar um tempo e um espaço para isso?
Desde as ponderações de Klein (1932/1997), tivemos alterações significativas na maneira de compreender e intervir nessa arena. Proponho um percurso através de alguns autores e suas concepções sobre o lugar dos pais no trabalho com a criança. Esse recorte pessoal será entremeado por dois relatos clínicos com o objetivo de tecer algumas considerações sobre o tema.
Os inícios da psicanálise com crianças
Klein (1932/1997) incentivava a manutenção de um relacionamento amistoso, de confiança e cooperação, mas não entendia que poderia haver um trabalho com os pais. Isso era consequência da sua concepção sobre a psicanálise com crianças, que tinha no trabalho analítico com a criança a condição necessária e suficiente para retomar o processo de desenvolvimento, produzir efeitos benéficos na relação dela com seus objetos internos e externos, e capacitá-la a conviver melhor em seu ambiente. Para Klein, a relação dos pais com a criança estava profundamente fundada em complexos psíquicos inconscientes não passíveis de serem modificados com os recursos de que a analista da criança dispunha. Ela já percebia no relacionamento dos pais com a analista forte ambivalência, mais ou menos consciente, pois o pedido de ajuda frequentemente era acompanhado de culpa quanto ao quadro da criança. Acreditava que a revelação de detalhes da vida pessoal da família e o ciúme da relação analítica, lastreado na rivalidade da mãe com sua própria imago materna, eram elementos penosos, que poderiam interferir negativamente no processo. Via a análise como um processo entre a criança e sua analista, e por isso restringia ao máximo a conversa com os pais. Não revelava detalhes do processo; nas entrevistas iniciais, falava brevemente de seu significado e efeito, agregando algumas informações sobre questões sexuais e dificuldades que pudessem surgir. Seu objetivo era minimizar influências negativas e possibilitar a continuidade do trabalho. Sua concepção unitária da psicanálise resulta na compreensão de que o foco do trabalho analítico é a criança pequena: a criança pequena no adulto, a criança pequena na criança (Geissmann, 1987).
O intenso debate entre os que praticavam a psicanálise com crianças culminou nas discussões controversas de 1944, com o estatuto da neurose de transferência nas crianças ocupando uma posição central. Klein defendia que a neurose de transferência se instala nas crianças de maneira análoga ao que acontece nos adultos, com seus elementos essenciais: o brincar como expressão de comunicação (simbólica) e associação livre, o papel do analista de interpretar a transferência, a diferença mantida entre os pais reais e as imagos parentais. Klein diferenciava o superego precoce interno e as imagos parentais da presença da instância superegoica externa, que age sobre a criança e se situa na pessoa dos pais. Ela desenvolveu a concepção de que o mundo e os objetos internos se constituem através dos mecanismos de projeção e introjeção, operantes desde o início da vida, e preconizou o trabalho analítico com os objetos internos, diferentes dos pais reais.
Por todas essas razões, Klein não propunha um trabalho com os pais. Isso não significa que não observasse relações entre o comportamento da criança e a fantasia dos pais, ou que priorizasse a constituição como fator único no desenvolvimento. Mas considerava a criança um agente ativo no seu desenvolvimento e valorizava as mudanças que aconteciam no mundo interno pelo trabalho analítico e que teriam influência positiva nos relacionamentos (Spillius, 2006).
Essa forma de trabalhar se perpetuou por muitos anos e marcou uma época em que não se dava por certo manter um trabalho com os pais para além das entrevistas iniciais.
Anna Freud (1927/1971) não reconhecia o estabelecimento da neurose de transferência e acreditava que faltaria à criança a percepção de sua condição e a compreensão do propósito da situação analítica. Ela recomendava uma fase preparatória para a análise, na qual a analista se apresentava como uma aliada, uma educadora interessante e interessada, que tinha o controle da situação. Essa postura visava estimular a instalação da transferência positiva, com o objetivo de criar um forte vínculo para sustentar o trabalho analítico posterior. Afirmava ser importante contar com a cooperação dos pais, mas na prática frequentemente entrava em conflito com eles, chegando a descrevê-los como culpados da situação e idealizando a internação da criança numa instituição educacional dirigida por psicanalistas. A Clínica Hampstead, em Londres, foi dirigida por ela, e suas ideias inspiraram a criação de instituições e clínicas infantis nos eua.
Anna Freud entendia que a presença dos pais reais – a edição original das relações afetivas – existia na realidade e ainda não havia se esgotado. O vínculo com o analista seria um novo vínculo, que rivalizaria com os pais pelo amor da criança e, mais ainda, a obrigaria a fazer uma escolha entre ambos. Segundo Boukobza (1993a), para Anna Freud o superego da criança estaria em relação permanente com os objetos dos quais se origina, e por isso a análise com crianças não poderia ser uma relação privada entre duas pessoas: os pais estariam forçosamente implicados nela. De maneira paradoxal, não tinha uma proposta de trabalho conjunto ou mesmo de trabalho com os pais. Adotava uma postura de autoridade junto à criança e a seus pais. Tomava para si a tarefa de educar e posteriormente (terminada a fase preparatória) a de analisar. Ao fazer ingerências na educação da criança, tornava-se uma pessoa poderosa, com forte influência pedagógica, diante da qual a criança e os pais ficavam em um estado de completa dependência e/ou conflito.
Acredito que em nosso cenário tivemos menos influência da técnica de Anna Freud na prática de psicanálise com crianças, embora tenha nos trazido valiosas contribuições, como a teoria dos mecanismos de defesa do ego.
Winnicott (1962/1990b) foi um discípulo de Klein, mas a partir de 1944 foi expelido do grupo kleiniano e manteve uma posição independente. Segundo Abram e Hinshelwood (2018), o trabalho dele centrou-se na experiência subjetiva do ambiente e em sua influência no desenvolvimento da mente e do sentido do self. Ambiente se refere a ambiente psíquico, aos sentimentos e atitude emocional que a mãe tem com seu bebê. A partir de 1945, Winnicott concebe a mãe (enquanto ambiente e objeto) como primária e os instintos como secundários; o self do bebê se inscreve a partir do relacionamento mãe-bebê e incorpora as tendências inatas do bebê combinadas ao ambiente/objeto original. Para Winnicott (1960/1983), a unidade básica é a mãe e o bebê. Este precisa dos cuidados do objeto primário para se desenvolver e atingir uma fase em que possa perceber-se como separado. Nessa função a mãe não é sentida como um objeto externo, seu atendimento suficientemente bom às necessidades do bebê resulta na manutenção do seu bem-estar, e a sensação de continuar a existir é assegurada. O bebê é apresentado às palavras e ao seu uso como símbolos, e o desenvolvimento se dá em direção à integração. Tal desenvolvimento complexo envolve o ego materno, que complementa o ego do bebê, tornando-o forte e estável. Num dado momento, o ego do bebê se torna livre do apoio do ego da mãe e alcança separação mental desta – diferenciação em self pessoal e separado.
A forma de Winnicott trabalhar com a criança e os pais está enraizada na sua concepção sobre a constituição psíquica e o papel da mãe no desenvolvimento emocional primitivo do bebê. Ele trabalhou extensamente em consultas terapêuticas com mães e bebês em que obtinha a história da criança, com atenção à situação na casa e ao relacionamento com pais e irmãos, para além do sintoma (Winnicott, 1971). Através do jogo da espátula, observava a interação do bebê com esse objeto (algumas vezes também com uma cumbuca) diante da presença da mãe; assim, constatou que a conduta da criança era reveladora das fantasias acerca do objeto e da forma como se relacionava com este, acompanhada de mais ou menos ansiedade (Winnicott, 1957/1990a). Além da observação do bebê e de sua mãe, essa modalidade possibilitava a ocorrência de uma situação – um ensaio – em que um conflito poderia ser vivido e se desenvolver até um termo.
O autor percebeu a possibilidade do uso dos pais na psicoterapia com a criança. No artigo “Cordão: uma técnica de comunicação” (Winnicott, 1960/1983), em função da distância, mostra a opção por um trabalho indireto com a criança, através dos pais. Nas entrevistas com eles, explicou o sentido do brincar com o cordão e o relacionou às dificuldades do menino com a separação. As conversas que se seguiram trouxeram grande benefício à criança e à família. Em dois outros trabalhos, Winnicott (1955/1987a, 1965/2018) relata intervenções junto à família de crianças – respectivamente, num episódio psicótico sofrido por uma menina levada para internação psiquiátrica, e com um garoto que presenciou o acidente no qual o pai faleceu, no dia do seu 11º aniversário. Nesses textos, apresenta o uso que fez da família e das mães, tanto da menina quanto do garoto, em ambos os casos desempenhando funções de continência e constância, e permitindo que a regressão seguisse seu curso até a completa recuperação das crianças. São artigos valiosos, em que o autor expõe sua compreensão das funções materna e paterna, da família como ambiente terapêutico, e descreve uma forma de trabalho psicanalítico com os pais.
As contribuições do autor à minha formação analítica tiveram o papel de destacar a importância do ambiente emocional da criança, bem como de localizar a força das pulsões como secundária à maneira como o bebê é recebido pela mãe-ambiente. Como salienta Khan (1975/1987), o paradoxo da relação mãe-criança reside no fato de que o ambiente (a mãe) torna possível à criança tornar-se si mesma, ou seja, é através da relação com a mãe que a disposição constitucional da criança pode se realizar.
Suas consultas terapêuticas deram origem ao atendimento pais-bebê,2 desenvolvido por Lebovici (1987) e praticado por Mélega (2002), Norman (2003), Laznik (2008/2013), Silva (2010), Salomonsson (2022), entre outros. Através dessa modalidade de atendimento, a interação mãe-bebê na família é observada por um psicanalista que, com sua presença, permite que o relato dos pais sobre o bebê seja acolhido e inserido na história familiar. Seu relacionamento com os próprios pais, a vinda do bebê, sua concepção, gestação, nascimento e desenvolvimento, até as dificuldades que suscitaram o pedido de ajuda, são enunciados e passam a compor uma narrativa (Golse, 2020). Com sua mente continente, o psicanalista acolhe, contém e sonha o que vai colhendo nessas interações. Sua presença atenta e receptiva tem a função de filtro e propicia a ampliação do continente, ao mesmo tempo que contribui para o fortalecimento do vínculo mãe-bebê.
Prosseguindo
Vamos seguir pensando o trabalho com os pais: quando é necessário, como fazê-lo e em que contexto? Landolfi (1989) apresentou algumas concepções sobre a utilidade do contato frequente com os pais, tendência cada vez mais estabelecida na psicanálise atual. O psicanalista que trabalha com a criança deve se manter atento ao que se passa na situação familiar, não apenas no processo de avaliação, mas ao longo do trabalho. O objetivo é conhecer não somente os pais e a história da família, a forma como se relacionam e o lugar do filho nessa dinâmica, mas também o vínculo que estabelecem com o analista, bem como a capacidade reparatória deles. Sua contribuição fundamental se refere às paratransferências, ou seja, todo um conjunto de relações que se produz entre o analista e as pessoas do entorno da criança – pais, irmãos, avós, outros parentes, empregados domésticos, professores e profissionais que a atendem. Ao estender o campo de observação para incluir as paratransferências, o analista tem melhores condições de apreender o que está se passando, as possíveis influências que auxiliam ou prejudicam o processo, e favorecer o prosseguimento do trabalho até seu termo. O analista se inteira do que está em curso no ambiente da criança e fica atento à possíveis fantasias de interrupção. Pais que se sentem excessivamente culpados, segredos e não ditos familiares, dificuldades com pontualidade e pagamento, crianças depositadas3 e pacientes emissários4 são situações que, se não forem percebidas e trabalhadas a tempo com os pais, levam à interrupção prematura, seja por parte dos pais, seja por uma contra-atuação inconsciente do analista. Landolfi propõe o estabelecimento de um verdadeiro contato emocional entre pais e analista, de forma que este possa observar o que se passa em um nível mais profundo.
Gostaria de ilustrar essa contribuição com um breve relato de uma análise interrompida. Nesse caso, a falta de contato com os pais ao longo do atendimento foi determinante. Trata-se de um menino de 6 anos, com um quadro estruturado de defesas autistas, atendido há mais de 20 anos. Nas entrevistas iniciais, ficou clara a necessidade de análise, o que foi oferecido numa base de três sessões semanais. Estabelecemos uma relação amistosa, que permitiu o início da análise, mas pouco conversamos ao longo do processo. Não foram observadas ou relatadas dificuldades explícitas, e eu entendia que o trabalho se daria estritamente com a criança.
Esse menino tinha uma rotina com rituais. Pouco falava, não tinha amigos, era de difícil trato em casa e esquivo na escola. Na análise conseguimos estabelecer um vínculo e aos poucos consolidá-lo. Sua brincadeira tinha fortes características sensoriais, como brincar com água e giz molhado. Seus jogos tinham forte teor obsessivo. Rabiscava minuciosamente o papel e colocava pontos em cada um dos espaços vazios. Às vezes, falava de si na terceira pessoa. Era muito concreto. Inicialmente, manteve-se retraído e envolvido em suas brincadeiras, mas com o desenrolar do trabalho passou a tolerar melhor minha presença e a me incluir. Comecei a participar do desenho de rabiscos no papel, alternando com ele a colocação dos pontos. Ainda de maneira incipiente, ele passou a fazer uso do campo analítico para expressar-se através dessa e de outras brincadeiras que foram adquirindo um “colorido simbólico” no decorrer do segundo ano, como a confecção de aviões, com nomes masculinos e femininos, com os quais brincávamos, ora de forma mais competitiva, ora de forma mais colaborativa. Esses aviões representavam a dupla analítica, do mesmo modo que os pontos nos espaços poderiam representar o espaço que cada pessoa distinta ocupa, ora mais aberto às relações, ora mais avesso a estas. Mas a corporeidade da brincadeira era necessária para aqueles ensaios que compunham o desenvolvimento do processo de simbolização em curso, e por isso falo em “colorido simbólico”. Lembro uma brincadeira cuja primeira parte consistia em ralar giz e guardar cuidadosamente as aparas numa caixa, o que podia durar toda a sessão. Na segunda parte da brincadeira, que passou a existir após algum tempo, ele escalava uma estante de ferro da sala e, lá do alto (que era mais simbólico do que real), abria a caixa e espalhava o conteúdo com evidente júbilo. Depois juntávamos e guardávamos as aparas na caixa. Essa brincadeira foi repetida muitas vezes, e penso que era uma oportunidade de experimentar prazer por estar vivo, ser aceito e bem-vindo. Nela se manifestavam potência e sentimento de realização e conquista de uma postura de agência – era uma experiência emocional compartilhada com a analista. O processo de construção de um mundo interno simbólico e com sentido ainda estava em fase incipiente, mas já em curso.
Nessa época, fui comunicada de que aquele seria o último mês e, ao solicitar uma conversa, fui informada pela mãe de que, durante as entrevistas iniciais, eu teria dito que o tratamento duraria 18 meses. Como ele já estava melhor, decidiram encerrar a análise. Lembro-me de sua expressão, um misto de rivalidade, triunfo e sentimento de injustiça. Não havia possibilidade de conversa; ela estava irredutível. Foi na supervisão que pude sentir e elaborar parte da dor e do desamparo, e tentar me colocar em condições para o último mês dessa análise. Não vou me estender nas vicissitudes dessas sessões, em que ele pôde expressar parte da raiva e da frustração com relação à interrupção e ao fato de eu não conseguir detê-la, e a esperança de ter levado da análise ferramentas úteis.
Gostaria de discutir a postura, segundo a orientação da época, de trabalhar unicamente com a criança. Ao conduzir o processo dessa forma, eu subtraí à mãe a possibilidade de falar sobre seu filho e ser ouvida nas suas dificuldades e angústias. Que conversas poderíamos ter tido? Talvez sobre as dificuldades da convivência, o sentimento de impotência diante de rituais e condutas repetitivas, as fantasias quanto à origem dele e os receios quanto ao seu futuro? Talvez ela pudesse ter expressado suas expectativas quanto ao tratamento, sua duração, a relação que existia na dupla, seus sentimentos de exclusão ao trazer o filho repetidamente ao consultório e permanecer na sala de espera? Talvez a conversa entre nós tivesse possibilitado que a expressão de incompreensão e injustiça vislumbrada na última entrevista se modificasse por indagações e esclarecimentos, apresentando-se dúvidas e conflitos? Hoje penso que o oferecimento de um tempo e um espaço para a transformação do que ela experimentava de maneira solitária, ou até mesmo sem palavras, poderia ter feito a diferença na história da mãe e da família. E, sobretudo, que uma postura analítica receptiva e continente, que não fui capaz de lhe conceder, teria permitido um desfecho mais favorável ao atendimento do filho.
Poderia me estender aqui e falar da repetição da situação traumática, ou da presença de um objeto interno sádico e cruel, que surgiu na transferência da criança e no momento da interrupção emergia como um objeto irredutível e intolerante atuado pela mãe, mas pensar que, frente a essa configuração mental, apenas o atendimento do garoto pudesse ser transformador me parece agora, no mínimo, ingênuo.
Esse caso me levou a perceber a necessidade de um contato mais próximo, com entrevistas propostas pelo analista sensível e atendimento aos pais. Compreendi que conversar sobre o que os pais estão observando na criança em casa, na escola e junto aos amigos, e o que pensam a respeito da própria vinda para a análise, pode permitir que possíveis ambivalências e conflitos sejam contidos, sonhados e verbalizados pelo psicanalista nos encontros. O objetivo não é apenas tentar observar influências negativas ou detectar possíveis fantasias de interrupção, como recomendou Landolfi (1989), mas sobretudo manter um contato emocional que permita um trabalho de acompanhamento da concepção que os pais têm da criança. Naturalmente essa ideia é matizada por complexos inconscientes e por projeções mais ou menos conscientes, mas essas conversas podem oferecer um espaço de construção de uma narrativa transformadora para os pais, junto com o psicanalista.
Outras analistas que discutiram este tema
Lisondo et al. (1996) entendem que na análise com crianças o campo analítico deixa de ser bipessoal5 e se torna um campo estendido, pois os pais estão presentes compondo o setting, seja levando a criança para as sessões, com seu poder sobre ela, seja apoiando ou interferindo na análise, com suas características emocionais. Citam Antonino Ferro ao apontar a maior complexidade no interjogo das identificações projetivas, que incluem aquelas provenientes dos pais e as do analista para com eles. Toda essa conjuntura requer do analista sensibilidade e atenção para observar, refletir e elaborar tais fatores, levando em conta a presença dos pais reais, para além de sua emergência como objetos internos. Sabemos que as identificações projetivas dos pais com o filho, atualizadas na relação com o analista, remontam à fase edípica e/ou pré-edípica: são fantasias arcaicas, temores antigos, mandatos transgeracionais, que podem emergir e impactar o campo. Aqui temos a corroboração da proposta de criar um espaço e um tempo junto aos pais, para que essas fantasias e temores possam ser contidos, sonhados e verbalizados.
Guignard (1986) traduz a complexidade da situação analítica ao descrevê-la como um processo de três gerações,6 incluindo a criança, os pais e o analista, que atua como suporte e continente dos objetos internos dos pais e da criança. Há um interjogo importante aí que deverá ser mantido. Além disso, o analista está em contato direto com os pais, convivendo com situações em que a transferência dos pais em relação ao analista se manifesta. O analista é vivido pelos pais como uma figura parental, o que resulta numa postura defensiva proporcional à severidade do superego deles. A autora considera necessário ao analista um “estado de espírito” que envolva a capacidade de identificar-se com o sofrimento da criança e também com o dos pais, a percepção tanto de sua fragilidade, angústia e culpa quanto da ferida narcísica que aflora quando buscam atendimento. Essa condição pode resultar em uma atitude acusatória ou projetiva ao analista. Guignard enfatiza a necessidade de receber e conter tal transferência para que não interfira negativamente na contratransferência com a criança. Aliás, pensa que um intenso trabalho contratransferencial deve estar sempre em curso na mente do analista, de modo que interferências não elaboradas não sejam levadas para o setting com a criança, e menos ainda interpretadas nesse contexto. Essa seria uma transgressão do setting de três gerações, praticada pelo analista, que resultaria numa posição delicada para a criança, ao ser colocada pelo analista numa situação de intrusão. A autora recomenda realizar entrevistas com os pais caso sejam percebidas questões relevantes para a continuidade do atendimento, a fim de que sejam trabalhadas e o analista possa seguir sustentando o setting de três gerações.
Num artigo posterior, Guignard (1997/2000) mantém a recomendação de um intenso trabalho contratransferencial por parte do analista e reconhece a complexidade da tarefa de captar a interação das fantasias inconscientes dos pais com relação ao filho, mas enfatiza que, por mais complexa que seja, essa tarefa é função do analista da criança. Para ela, os pais devam ser recebidos para entrevistas, juntos e/ou separados, antes e ao longo do processo analítico, sem a criança. Pensa que tal trabalho não põe em risco o espaço privado da criança na relação analítica, pois o analista dispõe de ferramentas analíticas para conter as informações que lhe chegam até que possam ser incluídas na relação transferencial. Nessas entrevistas, o analista pode discriminar suas próprias projeções e outros aspectos inconscientes seus dirigidos ao meio familiar do paciente, como a onipotência infantil e a rivalidade invejosa. A autora descreve também a satisfação inconsciente que pode advir da posição de supermãe/pai que muitas vezes é conferida a nós pelos pais. Ou ainda a relutância à conversa que muitos analistas vivem, quando os pais da criança têm sua própria análise, ou quando se deixam pautar por regras institucionais que balizariam tais encontros. O inovador é que Guignard discute o trabalho com os pais focalizando aspectos defensivos e fantasmáticos do analista que podem obstruir o processo, e que são acessados através do contato com os pais e de uma cuidadosa elaboração transferencial/contratransferencial.
No início de minha formação era usual o encaminhamento dos pais a outro profissional para conversar sobre as dificuldades emergentes no processo. Minha experiência com esse arranjo foi breve, pois penso que faltam elementos ao psicanalista que não está em contato analítico com a criança para ouvir os pais. Que conversa teriam quando é a relação com o analista do filho que está imantada de tantas projeções e fantasias? Essa postura “purista” foi igualmente questionada por Guignard (1986), que entendia o peso das resistências ao trabalho analítico nessas condições pouco propícias.
Com essas críticas e a experiência de casos como o relatado, fui percebendo a necessidade de um contato direto com os pais. Os ensinamentos de Winnicott (1971, 1960/1983, 1955/1987a, 1945/1987b, 1965/2018) e sua experiência de conversa com os pais de bebês e crianças atendidos por ele, e às vezes com ele, me encorajaram a incluir os pais no campo analítico e a criar um espaço e um tempo para ouvir os pais. Artigos como o de Lisondo et al. (1996) me ajudaram a sistematizar e encontrar subsídios clínico-teóricos para essa postura. Luis Kancyper, citado pelas autoras, também recomenda que o mesmo analista que atende a criança deve agregar um fluxo analítico aos pais, usando a compreensão construída acerca da conflitiva do filho e da relação intersubjetiva parental. Oswaldo Di Loreto, em comunicação pessoal às autoras, tem posição semelhante, e sugere que a escuta aos pais desenvolvida pelo analista da criança ajuda a desembaraçar tramas identificatórias e projetivas, bem como a conter e verbalizar conflitos e impasses.
As trocas nos seminários, jornadas e grupos de pares, mas sobretudo nas supervisões, do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo contribuíram para o desenvolvimento dessa postura de trabalho com os pais, tendo como objetivo a relação deles com a criança, com a análise e com o psicanalista.
Petricciani (2011) escreve sobre sua experiência e reconhece a necessidade de um trabalho com os pais que permita que questões primitivas, fantasias, rivalidades inconscientes e/ou conscientes ou outras características da personalidade dos pais sejam recebidas pelo analista do filho. Ela advoga o desenvolvimento de um estado mental receptivo, em que flexibilidade, tolerância e paciência sejam matizadas a um posicionamento firme e claro na relação com os pais. Para a autora, e também para mim, devemos utilizar nossa escuta analítica para interpretar os pais dentro de nós, ou seja, para acolher, compreender ou transformar aquilo que está sendo vivido e/ou expresso, de forma que as fantasias inconscientes com relação ao filho possam ser elaboradas. Ela sugere que essa captação aconteça desde sempre e seja logo trabalhada na mente do analista, mas é enfática quanto à necessidade frequente de um trabalho direto com os pais. Assim, não basta observar, acolher e sonhar as questões advindas dos pais que adentram o campo da análise do filho, mas compartilhar esse trabalho interno do analista com os pais. Com isso, embora não tenham a experiência interna do processo analítico do filho, participam de um processo ao surgirem conflitos, impasses ou outras questões relevantes.
Avaliação psicanalítica: um início de conversa
A avaliação psicanalítica já é um início do processo de trabalho com os pais. Através de entrevistas com eles, observação lúdica e entrevistas conjuntas pais-criança, é possível observar, conter, tentar pôr em palavras, criar (ou recriar) com os pais uma narrativa para questões, conflitos e impasses, bem como ter uma compreensão interna das dificuldades e possibilidades da criança na relação com ela. Esse é um processo de elaboração de hipóteses. O olhar se dirige para a situação total apresentada pelos pais, na qual a criança pode ser o emergente de uma dinâmica que a precede, para além dos sintomas que lhe trazem sofrimento. A avaliação psicanalítica pode propiciar uma experiência muito valiosa e frequentemente deflagra um processo de indagação e mudanças.
Lisondo (2015) a descreve como um processo aberto às transformações em crescimento, ou seja, é transitória, não acabada, não saturada e aberta à validação dos pais. O analista mantém uma postura de humildade diante do não saber e de paciência diante da incerteza, sensibilizando os pais a participar de forma comprometida no desenvolvimento do filho, o que incrementa a paternidade psíquica. Pais e analista vivem juntos esse processo de desvelamento ou criação de sentido sobre a criança, uma experiência emocional de aprendizagem. Nem sempre esse processo de indagação é bem-vindo. Podemos nos deparar com imobilidade, dificuldade para pensar o novo, temor e paralisia. A avaliação oferece então uma oportunidade privilegiada de observar essa configuração e trabalhar para que se amplie o campo de percepção e pensamento, a fim de pôr em curso o potencial para mudanças e a disponibilidade dos pais para iniciar e manter o processo analítico.
Vou apresentar brevemente o relato de um trabalho (Gordon, 2022) desenvolvido com pais que foi determinante para a efetividade do atendimento da criança e que ilustra a postura de trabalho psicanalítico com os pais. Trata-se de um menino de 11 anos, que havia feito psicoterapia cognitivo-compor-tamental e vinha sendo medicado com Ritalina desde os 5 anos. Os sintomas relatados no início do primeiro atendimento já não eram mais observados. Eu estava diante de um garoto contido, hostil e quieto, que se desentendia com frequência com outras crianças.
Na avaliação psicanalítica era perceptível a necessidade de trabalho com os pais em paralelo ao atendimento do garoto. Já nas primeiras conversas a mãe relatou a história da adoção, suas dificuldades para conceber e sua infertilidade, que se tornou uma realidade após uma infecção provocada por múltiplos procedimentos de fertilização in vitro. Lutos não elaborados, defesas maníacas e impulsividade levaram à adoção de um bebê sem que um espaço mental estivesse disponível para recebê-lo. Ficaram evidentes as discrepâncias entre o bebê imaginário e o bebê real adotado por eles: desde a cor da pele, que foi escurecendo com o crescimento, até o fato de ter sido adotado num processo extraoficial, ocorrido sem o conhecimento do pai. Esses assuntos cruciais não puderam ser tratados por eles e permaneceram como um não dito, ou uma cripta (Trachtenberg, 2017), produzindo efeitos. Essa criança cresceu sob o signo da dissimulação, pois havia negações e projeções massivas na sua origem e história.
As dificuldades da primeira infância com relação à cor da pele e à dotação intelectual emergiram novamente na puberdade, mas permaneceram como uma incógnita impossível de ser equacionada: em meio à ambiguidade, era difícil pensar. Era necessário trazer à tona e criar uma narrativa – e foi esse o trabalho que fizemos juntos – para que a vinda desse garoto, tal como era, pudesse ser aceita, simbolizada e elaborada, e a história dele construída de forma verdadeira. Não era fortuita a busca pela psicanálise na entrada da adolescência, em que questões profundas com relação à filiação psíquica e às identificações estavam por ser revividas, e ele precisaria contar com vínculos bem estabelecidos e objetos internos firmemente introjetados.
Esse trabalho permitiu abordar a história do casal, o desejo de construção de uma família e a urgência por um filho. Foi importante acolher e conversar sobre a impulsividade que produziu consequências permanentes no corpo da mãe e na vida da família, o luto pelo filho natural jamais nascido, a vinda de um bebê não esperado e cuja presença, com suas características próprias, trazia a necessidade de intenso trabalho psíquico para perceber, acolher e nomear o impacto da situação real vivida por eles. O campo transferencial passou a ser continente de insatisfações, receios e conflitos, e o repertório se ampliou para incluir pensamentos nunca antes pensados. O filho pôde começar a ser visto, o que propiciou, entre outras coisas, a mudança de um atendimento neuropsiquiátrico que entendia suas dificuldades como provindas de deficiências cerebrais para uma abordagem psiquiátrica psicodinâmica, com a retirada da Ritalina. Essa psicanálise durou cerca de quatro anos e pudemos viver um processo rico, algumas vezes conturbado, mas verdadeiro e possível.
Considerações finais
Através das contribuições dos autores citados pudemos acompanhar uma mudança de perspectiva – de uma postura de não trabalhar com os pais para a percepção da utilidade e necessidade desse trabalho. As contribuições de Winnicott (1971, 1960/1983, 1955/1987a, 1945/1987b, 1965/2018) revelaram a importância do ambiente emocional para a constituição psíquica da criança e ampliaram o foco para abarcar sua história. Sua observação da interação mãe-bebê propiciou a apreensão da dinâmica das relações familiares, fantasias parentais e capacidade de continência do objeto. Todo um campo se descortinou com a inclusão dos pais na cena analítica que abrange a observação de bebês, o atendimento conjunto pais-bebês, e o trabalho analítico com os pais.
Landolfi (1989) ampliou o campo para incluir as paratransferências e justificar o trabalho com os pais, inicialmente voltado para a preservação do tratamento. Lisondo et al. (1996) e Lisondo (2015) recomendam esse trabalho não apenas para que o processo psicanalítico seja preservado, mas para que conflitos, fantasias e temores dos pais sejam contidos, sonhados e verbalizados em entrevistas com o analista da criança. Todas as autoras citadas recomendam intenso trabalho transferencial/contratransferencial a fim de perceber, acolher, compreender e transformar o que adentra o campo analítico vindo dos pais. Petricciani (2011) recomenda uma postura receptiva e continente, para que tais interferências sejam contidas e trabalhadas a princípio na mente do analista, mas ressalta a importância de que esse trabalho com os pais se dê com frequência, mediante uma posição ativa e firme. Guignard (1997/2000) compreende que esse trabalho oferece uma possibilidade de perceber e elaborar aspectos contratransferenciais do analista que podem emergir e ser discriminados de projeções por parte dos pais.
A criança é um agente ativo no seu desenvolvimento, e as mudanças no seu mundo interno propiciadas pelo trabalho analítico terão uma influência positiva nos seus relacionamentos (Spillius, 2006). Entretanto, frequentemente é necessário um trabalho com os pais para que a concepção que eles têm acerca da criança seja verbalizada e trabalhada com o analista, e para que as expectativas com relação à análise sejam compartilhadas. Assim, quero enfatizar que a proposta de realização de um trabalho com os pais visa, sobretudo, fazer que o trabalho com a criança aconteça de forma mais efetiva e integrada, ou seja, trabalhamos com os objetos internos num mundo interno habitado por transações afetivas e com sentido, mas é preciso sensibilidade e atenção para observar, refletir e elaborar o que advém dos pais reais, para além de sua emergência como objetos internos, e que se manifesta através da transferência deles no cotidiano do atendimento. Tenho observado que, ao manter um contato emocional com os pais, é possível acompanhar a concepção que eles têm da criança ao longo do processo analítico. Essas conversas (que não aconteceram no primeiro caso relatado) podem oferecer um espaço de construção de uma narrativa transformadora para os pais, junto com o psicanalista.
Em alguns casos a realização de trabalho psicanalítico com os pais é condição necessária para que o atendimento psicanalítico com a criança seja efetivo e conduza à retomada do processo de desenvolvimento que implica os pais, é verdadeiro e com sentido para aquela família, tal como na segunda ilustração clínica. É nesse espaço que os pais poderão ser ouvidos e acolhidos nas suas dificuldades, angústias e conflitos. O contato emocional com o analista pode ser continente do que é vivido solitariamente ou do que ainda não adquiriu uma representação na mente dos pais.
Por fim, quero ressaltar que a criação de um tempo e espaço para o trabalho com os pais não põe em risco o espaço privado da criança na relação analítica, desde que se mantenha uma postura de continência e discriminação, bem como a capacidade de utilizar ferramentas analíticas para estar com os pais e ao mesmo tempo preservar e proteger o espaço da criança. Conflitos e projeções do analista para com os pais também emergem e precisam ser discriminados e contidos a fim de não causar impacto no campo analítico com a criança. Nesse sentido há que se investir na observação da contratransferência e no trabalho contínuo de elaboração que acontece na mente do analista.