A palavra incesto já traz um choque ao ouvinte; é carregada de horror e repulsa. Casos famosos da mídia são associados ao incesto, como o de Josef Fritzl, “o monstro de Amstetten”, que abusava sexualmente da filha, Elizabeth Fritzl, desde que esta tinha 11 anos de idade; ele a aprisionou no porão de sua casa e, com ela, teve sete filhos.
Esse é um caso excepcional, que não trata só de incesto, mas também de doença mental, crime e psicopatia. Na maioria dos casos de incesto, não há esse tipo de relação.
Outra associação comumente feita ao incesto é a relação entre parentes próximos que geram filhos. A maioria das relações de abuso sexual intrafamiliar relatadas são perpetradas sem o uso de violência física e concentram-se em carícias e toques que não evoluem para a conjunção carnal.
Divergindo das crenças de senso comum, o abuso sexual intrafamiliar ou incesto é democrático, pois acontece em todas as classes socioeconômicas e culturais, e o pai biológico figura como o principal perpetrador desse tipo de abuso nas denúncias, e não o padrasto, membro familiar incluído nas famílias reconstituídas (Cohen, 2021; Cohen & Gobbetti, 2020; Gobbetti, 2000; Goodwin, 1989).
O Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (Cearas), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, vem estudando e trabalhando com o tema do incesto desde 1993, tendo atendido mais de 400 famílias incestuosas. O referencial psicanalítico oferece a compreensão de que os desejos incestuosos são inerentes ao ser humano, mas a proibição de atuar esses desejos é necessária para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade. A proibição do incesto é a lei primordial que permite a individualização do ser humano e a sua inserção na cultura, delimitando as funções psíquicas estruturantes da família (Cohen, 2021).
Com essa ideologia, o Cearas oferece atendimento em saúde mental a famílias que tenham uma denúncia judicial referente ao abuso sexual praticado entre seus membros, representando a Justiça um limite externo frente à não assimilação da proibição do incesto (Gobbetti & Cohen, 2002).
Há uma diversidade de relacionamentos incestuosos denunciados, mas estes não são os únicos existentes nas famílias; em grande parte dos casos, há outros relacionamentos incestuosos, que não são denunciados ou não são nem percebidos como abusivos. Portanto, a definição de abuso sexual utilizada na nossa cultura através da Justiça é uma definição moral, que por vezes distancia-se das preocupações da área de saúde mental, que caminham num âmbito ético (Gobbetti, 2000).
Apesar de pouco abordado, e até mesmo pouco reconhecido, provavelmente pelo fato de o mito do amor materno ainda prevalecer em nossa sociedade, o incesto ou abuso sexual cometido pelas mães com os próprios filhos é fenômeno muito frequente nas famílias incestuosas.
A experiência tem demonstrado que o abuso cometido pelas mães, subvalorizado nas estatísticas, tem uma expressão distinta e mais aceita pela sociedade, embora tal relação possa ser tão ou mais destrutiva para o desenvolvimento mental quanto qualquer outro abuso sexual cometido por homens dentro da família.
Famílias incestuosas
Nota-se que, nos casos de incesto, as pessoas anseiam por perfis de agressores e vítimas, e a experiência de atendimento a famílias tem demonstrado que tanto as “vítimas” quanto os “agressores” rotulados pela Justiça têm características muito distintas, além do que, ao observar a família como um todo, surge aos profissionais a dificuldade em sustentar esses rótulos no âmbito da saúde mental.
O que se percebe e pode ser retratado aqui é um perfil das famílias atendidas no serviço.
A maioria das relações incestuosas denunciadas acontece entre pais e filhos, sendo a maior parte cometida por pais contra filhas. Tal dado já demonstra que as relações incestuosas prevalecem nas relações consanguíneas, divergindo da crença de senso comum de que o abuso sexual ocorreria mais nas famílias reconstituídas. Outras relações de maior incidência, embora com frequência bem menor que as primeiras, são as seguintes: padrastos-enteados (na maioria, padrasto-enteada), irmãos (principalmente as relações heterossexuais entre irmãos) e avôs-netos (na maior parte, avô-neta) (Cohen & Gobbetti, 2020).
A maior parte das relações sexuais denunciadas se configura por toques e carícias, não envolvendo uma relação sexual completa. Também ocorre via sedução, sem violência física, na maioria dos casos. São raras as famílias em que acontece uma relação sexual completa ou conjunção carnal, e mais raras ainda as que têm denúncia de gravidez resultante da relação.
A nossa experiência tem demonstrado que as relações incestuosas denunciadas não são as únicas que ocorrem na família; durante o atendimento, há relatos de várias outras relações abusivas. Exemplos são os abusos sexuais cometidos contra meninos, que não são denunciados pelo estigma que condena tais “vítimas” ao rótulo da homossexualidade. Em várias famílias, já nas entrevistas iniciais, foi observado que irmãos do gênero masculino também tinham sofrido abuso sexual, embora só constasse a denúncia de abuso contra a criança e/ou adolescente do gênero feminino.
Percebe-se assim que o abuso acontece tanto com homens quanto com mulheres, da mesma forma que é praticado por ambos. Embora as estatísticas mostrem que a maioria das denúncias de abuso sexual envolvem pessoas do sexo feminino como “vítimas” e do sexo masculino como “abusadores”, elas não retratam a realidade. O que se observa é que os homens têm mais dificuldade de denunciar e, mesmo, de discriminar uma situação de abuso sexual, da mesma forma que as situações de abuso sexual cometidas por mulheres são mais difíceis de serem percebidas enquanto abusivas.
A maioria das relações sexuais abusivas é denunciada depois de um ou mais anos. Já houve casos de famílias nas quais a relação sexual denunciada foi relatada após um período superior a 10 anos. Pode-se concluir que os outros membros da família têm um conhecimento mais ou menos consciente das relações incestuosas, além de estas fazerem parte do cotidiano e da dinâmica da família.
As relações incestuosas são muito mais complexas e não podem ser atribuídas apenas à presença de um indivíduo “doente” dentro da família. A experiência dos atendimentos vem reforçando cada vez mais essa ideia, pois a oportunidade de acompanhar as famílias permitiu observar a participação de todos os membros da família na manutenção da relação incestuosa, bem como perceber outros abusos não denunciados (Gobbetti, 2000).
Nota-se que há um comprometimento social e emocional de vários membros da família, e não apenas daqueles intitulados pela Justiça como “vítima” e “agressor”. Como exemplo, poderíamos dizer que a mãe, em relações incestuosas entre pai e filha, ou os pais, em relações incestuosas entre irmãos, foram percebidos em várias famílias como figuras centrais na manutenção da dinâmica incestuosa.
Na experiência clínica, é clara a participação das mães na dinâmica incestuosa, embora isso seja pouco denunciado. Dados objetivos contribuem para confirmar a participação delas através da omissão. A denúncia das relações incestuosas entre pai e filha(o) ou entre padrasto e enteada(o) só é feita pela mãe quando o casal já está separado. Em uma parcela ínfima dos casos, quando o casal está junto e a denúncia é feita pela mãe, percebe-se que a denúncia surge como consequência de conflitos entre o casal ou foi uma situação “forçada” por profissionais de saúde ou educação que tiveram contato com a criança/adolescente. Nesse último caso, pela nossa experiência, as mães costumam continuar com o companheiro e cultivar uma descrença frente ao relato dos filhos envolvidos.
Dados clínicos também apontam a participação ativa das mães na dinâmica incestuosa: abusos sexuais não denunciados por não serem percebidos enquanto tais devido ao acesso sociocultural quase irrestrito dado à mãe em relação aos filhos. Em muitas dessas famílias, aconteceu uma extensão do período de amamentação para muito além de cumprir as necessidades biológico-emocionais da criança. Há mães que chegam a amamentar os filhos até 10 anos de idade, e também mães que dão banho nos filhos até a adolescência.
Tais comportamentos não são compreendidos pela família nem pela sociedade enquanto violentos e abusivos por serem mascarados por atitudes de cuidado. Mesmo comportamentos mais chocantes aos profissionais de saúde mental que se deparam com essas situações, como mães que examinam o corpo das filhas para verificar se elas ainda se mantêm virgens, não são denunciados (Gobbetti, 2018).
Outra observação é o histórico de abuso sexual nas famílias de origem do casal. Nota-se também, às vezes, que o histórico de abuso existe apenas na família materna, em casos de relações incestuosas denunciadas entre pais e filhos ou mesmo entre irmãos. De alguma forma, essas mães parecem repetir a dinâmica incestuosa da família de origem.
Percebeu-se que a relação sexual genital denunciada entre pessoas da mesma família era apenas o sintoma de uma dinâmica disfuncional, da qual todos os membros do grupo participavam. Também se observou que os membros da família apresentavam uma tendência a repetir esse tipo de relacionamento em outros grupos, tanto as crianças nas futuras famílias que vão constituir quanto todos os membros do grupo em outras relações.
A principal violência ocorrida no incesto não se refere ao aspecto biológico-sexual, e sim à perversão das funções familiares, que podem ser entendidas como necessárias e estruturantes no desenvolvimento psicossocial do indivíduo.
A compulsão à repetição do incesto
Os principais objetivos da terapia familiar de base psicanalítica para as famílias incestuosas é a instauração de um conflito frente à relação incestuosa (algo que normalmente não é vivenciado quando as famílias chegam para tratamento) e a consequente criação de uma demanda própria dos membros do grupo familiar pelo trabalho terapêutico.
A realização de tais objetivos é fundamental para que os indivíduos da família se desenvolvam e façam escolhas próprias diante das relações que venham a estabelecer – ou seja, parem de repetir compulsivamente o estabelecimento de relações indiscriminadas e abusivas –, e também para interromper o ciclo da violência do incesto entre as gerações.
Observamos nas famílias a repetição de relacionamentos abusivos em diferentes relações, como mulheres que se uniram a vários homens que abusaram de seus filhos ou crianças que, tiradas de seu lar de origem em decorrência de abusos, foram novamente abusadas por outras pessoas em seus lares substitutos. Tais situações são bem definidas pelo conceito de compulsão à repetição de Freud:
Essa perpétua recorrência da mesma coisa não nos causa espanto quando se refere a um comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e podemos discernir nela um traço de caráter essencial, que permanece sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma repetição das mesmas experiências. Ficamos muito mais impressionados nos casos em que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possui influência, mas nos quais se defronta com uma repetição da mesma fatalidade. (1920/1980a, pp. 35-36)
Além dessa repetição de experiências individuais, também se observou que a maioria dos responsáveis pelo núcleo familiar tem um histórico de abuso na família de origem. Os adultos narram o próprio abuso sofrido na infância/adolescência ou o abuso sofrido por outro membro da família de origem.
Os relatos sobre o abuso sofrido na infância ou adolescência são bem mais frequentes na fala das mães nas famílias atendidas no Cearas. Inclusive, um discurso bastante comum e utilizado por muitas mães já nas entrevistas de triagem é: “Eu sofri abuso quando era criança. Nunca imaginei que isso aconteceria também com meus filhos”.
É interessante notar que os filhos muitas vezes se surpreendem com os relatos de abusos sofridos pelos pais, pois na maioria das famílias esses relatos não haviam sido compartilhados antes.
Observa-se a repetição de vivências abusivas por gerações, experiências não significadas em nível simbólico e transmitidas em estado bruto. A experiência incestuosa repetida entre gerações inscreve-se como transmissão psíquica transgeracional, que é invasiva, sem possibilidade de elaboração, constituída por traumas, lutos e segredos familiares (André-Fustier & Aubertel, 1998; Benghozi, 2000; Granjon, 2000; Trachtenberg, 2014).
Freud tratou da transmissão psíquica do incesto entre gerações, através da herança filogenética, em Totem e tabu (1913/1980d), utilizando o conceito de herança arcaica. Assim é transmitido o tabu fundamental, o tabu do incesto, configurado pela interdição da relação sexual incestuosa e pela proibição de matar o pai.
Além do que se herda pela evolução da espécie (filogenético), há também uma transmissão entre as gerações de cada família. No texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914/1980c), Freud associou a afetividade com os filhos ao renascimento do narcisismo dos pais. Desse modo, a geração sucessora carrega o peso de realizar o não realizado pela antecessora. A constituição do psiquismo do bebê já se inicia antes de seu nascimento, a partir do objeto de desejo dos pais; daí a se tornar um sujeito com desejo é um longo caminho.
Segundo Correa, “o vínculo mãe-bebê e o grupo familiar constituem o berço psíquico do sujeito, constituído por uma tecelagem psíquica grupal que atravessa outras gerações” (2003, p. 35). Assim, podemos entender que as mães são as figuras parentais que exercem mais fortemente a função de elo entre gerações ou de transmitir a herança familiar.
Nas famílias incestuosas, percebe-se a exata reprodução com os filhos das relações da mãe com o próprio pai e principalmente com a própria mãe, relações sobre as quais se queixam e tecem severas críticas. Na conferência sobre feminilidade, Freud (1933/1980b) afirma que a passagem da mulher para a condição de mãe, a partir do nascimento dos filhos, pode fazer renascer a identificação com a própria mãe e levar à reprodução de comportamentos dessa última nas relações como uma compulsão à repetição.
Repete-se o abandono, a simbiose, a indiscriminação e várias outras tendências relacionais próprias das famílias incestuosas. O que se tem em comum nessas tendências é o olhar para os filhos como objetos, nunca como sujeitos.
O abandono ou a agressão física são mais facilmente compreendidos como relações abusivas, enquanto a invasão do corpo dos filhos ou a indiscri-minação entre os próprios desejos e os desejos do outro são interpretados, no máximo, como cuidado excessivo.
Inspecionar o corpo dos filhos para se certificar de que não tem nenhuma marca de abuso, ir à escola amamentar filhos que já entraram no ensino fundamental, dar banho em filhos adolescentes que não conseguem se higienizar sozinhos, pôr os filhos para dormir na cama dos pais, se não entre o casal, no lugar do companheiro da mãe, que acaba dormindo em outro cômodo, são alguns dos muitos comportamentos relatados por essas famílias e que não são questionados nem dentro nem fora do grupo familiar.
Inquestionável é a importância da ligação mãe-bebê na estruturação do psiquismo da criança. O processo da amamentação vai muito além da função fisiológica. Essa primeira relação, de completude e simbiose, é essencial e estruturante para o bebê. Melanie Klein (1952/1978) aprofundou a teoria psicanalítica sobre o psiquismo do bebê e a importância de suas relações iniciais com a mãe; o quanto as experiências iniciais de cuidado materno poderiam reforçar ou mitigar as ansiedades persecutórias do bebê, ansiedades essas oriundas da pulsão de morte.
Segundo Klein (1926/1996), os estágios primitivos do complexo de Édipo teriam início em meados do primeiro ano de vida, concomitantemente com o auge da posição depressiva, sendo as tendências edipianas liberadas como consequência da frustração e do sentimento de perda sentidos pela criança com o desmame. Dessa forma, para a autora, tanto as tendências edípicas quanto a estruturação do superego iniciam-se muito antes da fase preconizada por Freud (dos 3 aos 5 anos), o que pode reforçar a ideia de que o primeiro limite estruturante é o “desmame”, a interrupção da relação “incestuosa” com a mãe.
Entendemos que as mães são responsáveis pela erotização necessária ao desenvolvimento do bebê, uma “erotização primária”, que relacionamos ao conceito de narcisismo primário de Freud, segundo o qual “as primeiras satisfações sexuais autoeróticas são experimentadas em relação com as funções vitais que servem à finalidade de autopreservação” (1914/1980c, p. 103). Essa erotização, biopsicológica, num primeiro período da vida, tem um fim estruturante. Denominamos essa relação de incesto primário. Percebemos, nas famílias incestuosas, que a maioria das mães dá continuidade a esse tipo de relacionamento erotizado com os filhos, por causar prazer a ambos. Essa relação simbiótica e indiscriminada, por nós denominada de incesto secundário, é destrutiva para o desenvolvimento mental e psicossocial e para a estruturação do indivíduo, sendo a origem da dinâmica incestuosa familiar (Cohen & Gobbetti, 2008).
O processo de maternagem na sociedade atual
Muitas das características observadas nas famílias incestuosas atendidas no Cearas são também observadas em várias outras famílias em nossa sociedade, famílias com as quais temos contato através de convivência pessoal ou até conhecimento por meio da mídia. Não nos referimos aqui a famílias em que houve uma denúncia de abuso sexual, mas a famílias que têm características comuns aos “abusos não denunciados”.
Atualmente, várias teorias reforçam um processo de maternagem estendida e são valorizadas socialmente como boas relações mães-filhos. A amamentação prolongada é estimulada pelo próprio Ministério da Saúde (2016) e por profissionais adeptos da recente teoria de neurocompatibilidade, que – como outro exemplo – valorizam também o compartilhamento da cama dos pais pelos filhos. Para esses profissionais, tais práticas são sustentadas a favor do respeito à criança e seu desenvolvimento individual, e esses limites deveriam ser estabelecidos a partir das necessidades das crianças, e não dos adultos.
Uma criança consegue discriminar qual é o limite para práticas que causam prazer e são proporcionadas pelos adultos responsáveis e que têm um vínculo de amor e confiança? Entendemos que é exatamente dessa forma que as crianças encaram relações de toque e carícia genital, quando são perpetradas pelos pais. Qual é o limite entre as práticas de “respeito à vontade da criança” e as práticas abusivas?
Sem a intenção de fazer um julgamento moral de determinados comportamentos, propomos aqui uma reflexão sobre eles no âmbito ético, já que a repressão estruturante dos desejos incestuosos não está ligada à relação concreta, mas sim à indiscriminação simbólica que impossibilita o desenvolvimento individual e social.
É importante ressaltar que, frente aos novos conceitos de família (por exemplo, as famílias homoafetivas ou com um único genitor), as funções familiares continuam as mesmas e devem ser entendidas no mundo simbólico; a continência e o limite funcionais são fundamentais.
Dentro da mesma perspectiva, partimos para outro exemplo, no qual se nota o uso do avanço tecnológico para driblar a proibição do incesto.
Assim como, mesmo nas famílias incestuosas, o abuso pelas mães não é percebido, a reprodução do incesto através das técnicas de reprodução assistida também não é questionado socialmente.
Um exemplo bastante comum é apresentado a seguir.
Um casal homoafetivo masculino com o desejo de ter filhos recorre à reprodução assistida, com a implantação do embrião em uma barriga de aluguel, procedimento nomeado no Brasil como cessão temporária de útero. Nesse caso, quem se dispõe a levar a gestação é a mãe de um deles. Foram dois embriões, cada um com o sêmen de cada indivíduo, e duas doadoras anônimas de óvulos. Os embriões foram fertilizados fora do corpo, in vitro, e somente um embrião deu certo, e eles não sabem qual. Para todos os efeitos, o filho é dos dois.
Quais serão as fantasias envolvidas e qual será a repercussão no mundo mental dessas possibilidades objetivas nesses indivíduos?
A utilização de técnicas de reprodução assistida é normatizada pela Resolução cfm nº 2.294/2021, que veio substituir a resolução anterior, Resolução cfm nº 2.168/2017, mas sem mudanças em relação ao aspecto a ser abordado aqui: a exigência de parentesco entre a gestante de substituição e um dos pais do futuro bebê. Diz a norma:
A cedente temporária do útero deve ter ao menos um filho vivo e pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau. Demais casos estão sujeitos a avaliação e autorização do Conselho Regional de Medicina.
A cessão temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial e a clínica de reprodução não pode intermediar a escolha da cedente. (Resolução cfm nº 2.294, 2021, grifo nosso)
Entende-se que essa exigência de parentesco está estritamente ligada ao inciso 2, já que a cessão de útero de forma “solidária” e de caráter não lucrativo é mais esperada entre pessoas que tenham um vínculo de parentesco.
De acordo com o mito inquestionável do “amor materno”, a pessoa mais recomendada para assumir a gravidez de substituição sem interesses financeiros seria justamente a mãe de um dos parceiros.
Como fica emocionalmente a relação entre mãe e filho, quando a primeira está gerando um filho do próprio filho?
No caso referido e em outros divulgados na mídia, podemos dizer que, através da tecnologia, poderia obter-se a concretização de fantasias incestuosas dos indivíduos envolvidos. Será que o conhecimento humano caminha no sentido de burlar as “leis” estruturantes do indivíduo e da sociedade (Gobbetti & Cohen, 2020)?
Considerações finais
Principal tabu da humanidade, o incesto tem sua proibição como estruturante do indivíduo e da sociedade. Segundo Freud, a transmissão da proibição ocorre filogeneticamente pela humanidade e também através das gerações familiares.
Entendemos que as relações de abuso sexual intrafamiliar denunciadas são apenas o sintoma de uma dinâmica familiar disfuncional, que dificulta o desenvolvimento biopsicossocial de todos os membros do grupo.
Através de nossa experiência no Cearas, observando a repetição da dinâmica incestuosa entre as gerações, com predominância da repetição na família materna, percebemos que as mães têm um papel fundamental na manutenção dessa dinâmica, já que os conteúdos psíquicos são amplamente transmitidos na relação mãe-bebê, em sua vivência (história) e em sua herança (pré-história).
Os objetivos da pulsão podem ser transformados – quanto ao seu fim – pelos seres humanos através de sua capacidade de simbolização, e a tendência à satisfação, ser encontrada em comportamentos socialmente aceitos (sublimação).
O problema reside em como os seres humanos, mediante sua inteligência e suas experiências, continuam a buscar a satisfação de suas pulsões primárias, dissimulando a atuação de fantasias incestuosas em comportamentos socialmente aceitos.