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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.1 São Paulo  2023  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n1.08 

Artigo

A dimensão do ser na vida mental

La dimension del ser en la vida mental

The dimension of being in mental life

La dimension de l’être dans la vie mentale

Walter Trinca1 

1Psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)


Resumo

O ser interior é constituído como um sistema endógeno que define a realidade existencial primária e o centro nuclear da vida mental de uma pessoa. Em sua unidade, inteireza, coesão e indivisibilidade, ele se caracteriza como uma matriz estável e estabilizadora, que responde pela existência particular e específica da pessoa. Ao mesmo tempo, ele é um centro de organização e de harmonização do todo somatopsíquico e de suas relações com o mundo externo. A experiência de ter um ser é básica e elementar, como vem sendo descrita ao longo do tempo pelas diferentes formas de conhecimento que se ocupam da interioridade humana. No ser do ser humano, há uma abertura não sensorial às experiências, mas também obstáculos e impedimentos a elas, de modo que se encontram, por um lado, o contato com o ser interior e, por outro, o distanciamento de contato. Assim, o autor formula um modelo geral, no qual esse ser se distingue do self. Este se refere a uma instância sobre a qual aquele pode ou não exercer influência e ação, na dependência do estado do contato. O modelo geral compreende a interação de vários fatores, em que se destacam as atividades da pulsão de morte, os efeitos da fragilidade e da sensorialidade sobre o self, entre outros aspectos. O psicanalista trabalha com base nessas noções, visando ajudar o paciente a estabelecer ou restabelecer o contato consigo mesmo. As consequências e implicações do modelo estendem-se a questões vinculares, estéticas e éticas, mas também aos sentidos e significados para a vida e o viver.

Palavras-chave ser interior; self; modelo psicanalítico; sensorialidade; fragilidade do self

Resumen

El ser interior está constituído como un sistema endógeno que define la realidad existencial primaria y el centro nuclear de la vida mental de una persona. En su unidad, entereza, cohesión e indivisibilidad, se caracteriza como una matriz estable y estabilizadora, que responde por la existencia particular y específica de la persona. Al mismo tiempo, el ser interior es un centro de organización y armonización del todo somato-psíquico y sus relaciones con el mundo externo. La experiencia de tener un ser es básica y elemental, tal como ha sido descrita a lo largo del tiempo por diferentes formas del conocimiento que se ocupan de la interioridad humana. En el ser del ser humano hay una apertura no sensorial hacia las experiencias, pero también obstáculos e impedimentos hacia ellas, de tal modo que se encuentran, por un lado, el contacto con el ser interior y por el otro, el distan-ciamiento de contacto. De esta manera, el autor formula un Modelo General, en el cual ese ser se distingue del self. Este se refiere a una instancia sobre la cual aquel puede o no ejercer influencia y acción, en la dependencia del estado de contacto. El Modelo General comprende la interacción de varios factores, donde se destacan las actividades de la pulsión de muerte, los efectos de la fragilidad y la sensorialidad sobre el self, entre otros aspectos. El psicoanalista trabaja basado en esas nociones, buscando ayudar a los pacientes a establecer o restablecer el contacto con ellos mismos. Las consecuencias e implicaciones del Modelo se extienden a cuestiones vinculares, estéticas y éticas, pero también a los sentidos y significados hacia la vida y el vivir.

Palabras clave ser interior; self; modelo psicoanalítico; sensorialidad; fragilidad del self

Abstract

The inner being is formed by an endogenous system that defines the primary existential reality and core center of a person’s mental life. In its unity, completeness, cohesion, and indivisibility, it is characterized as a stable and stabilizing matrix, which accounts for the unique and specific existence of a person. At the same time, it is where the somatopsychic whole and its relationships with the external world is organized and harmonized. The experience of having a being is basic and elementary, as described over time by the different forms of knowledge dealing with human inner world. Human beings have a non-sensory openness to experiences, but they also present obstacles and barriers to them, so that, on the one hand, there is contact with the inner being and, on the other, detachment from contact. Thus, the author formulates a General Model, in which this being is distinguished from the self. The latter refers to an instance over which the former may or may not exert influence and action, depending on the state of contact. The General Model comprises the interaction of several factors, in which the activities of the death drive, the effects of fragility and sensoriality on the self, among other aspects, stand out. The psychoanalyst works based on these notions, aiming to help patients to establish or reestablish contact with themselves. The consequences and implications of the Model extend to binding, aesthetic, and ethical issues, but also to the senses and meanings for life and living.

Keywords inner being; self; psychoanalytic model; sensoriality; fragility of the self

Résumé

L’être intérieur est constitué comme un système endogène qui définit la réalité existentielle primaire et le centre nucléaire de la vie mentale d’une personne. Dans son unité, son entièreté, sa cohésion et son indivisibilité, il se caractérise par une matrice stable et stabilisatrice qui répond de l’existence particulière et spécifique de la personne. En même temps, il est un centre d’organisation et d’harmonisation de l’ensemble somatopsychique et de ses rapports avec le monde extérieur. L’expérience d’avoir un être est basique et élémentaire, comme le décrivent au fil du temps les différentes formes de connaissance qui s’occupent de l’intériorité humaine. Dans l’être de l’être humain, il y a une ouverture non sensorielle aux expériences, mais également, leurs obstacles et leurs empêchements de sorte qui se trouvent, d’un côté, le contact avec l’être intérieur, et de l’autre, l’éloignement de contact. Ainsi, l’auteur formule un Modèle Général dans lequel cet être se distingue du self. Celui-ci fait référence à une instance sur lequel celui-là peut ou non exercer une influence et une action, conformément à l’état du contact. Le Modèle Général comprend l’interaction de plusieurs facteurs où sont en évidence les activités de la pulsion de mort, les effets de la fragilité et de la sensorialité sur le self, parmi d’autres aspects. Le psychanalyste prend appui sur ces notions dans le but d’aider les patients à établir ou rétablir le contact avec eux-mêmes. Les conséquences et les implications du Modèle s’étendent à des questions éthiques, esthétiques et de liens, mais également aux sens et aux significations pour la vie et l’acte de vivre.

Mots-clés être intérieur; self; modèle psychanalytique; sensorialité; fragilité du self

A natureza do ser interior

O ser interior é um sistema endógeno que corresponde à realidade existencial primária da pessoa e à formação fundante do psiquismo humano. O que há de fundamental é a existência do ser que define a pessoa como tal e compõe os alicerces de sua vida. Na correnteza psíquica, o ser interior revela-se como uma matriz de existência, que mantém a pessoa viva e a faz experienciar-se como si mesma. Ele é uma referência primordial constitutiva da individualidade, a que se pode atribuir os sentidos de centro nuclear, raiz primária e verdade interior. Em outras palavras, ele consiste numa forma originária, na qual a pessoa se define pelo que verdadeiramente ela é, caracterizando-a desde os primórdios de sua vida. Como eixo basilar, compreende um sistema de energia e de operatividade, em que se ancora o continente somatopsíquico, com as características de singularidade e especificidade, ou seja, ele é único e exclusivo em cada pessoa. Suas feições são particulares, ir-replicáveis e intransferíveis, embora se possa, também, considerá-lo em sua natureza universal, presente em todos os seres humanos. Isso significa que o ser interior se constitui em entidade autônoma, não dependendo de outras existências para operar, a não ser da existência da própria pessoa. Ele se configura como idêntico a si mesmo em sua coesão interna. Daqui se depreende, em princípio, sua unidade, sua indivisibilidade e sua inteireza, que perduram enquanto perdurar a vida da pessoa. Pode-se dizer que esses aspectos dizem respeito aos componentes fundamentais da identidade primária, que tende a se manter relativamente estável ao longo dos processos variáveis da vida e do viver. No entanto, o ser interior pode se atualizar e evoluir, sem a perda de suas características essenciais, mantendo-se em conformidade com o que ele é. Desde esse ponto, estabelecem-se sistemas primários de equilíbrio, organização e harmonização, que se estendem em relação ao contato com a realidade interna e externa (Trinca, 2007).

A experiência pessoal de haver um ser na interioridade conduz ao autor-reconhecimento, que põe em evidência não só a existência do ser, mas também a sua continuidade no tempo. Nesta, ele é experimentado como fundamentalmente o mesmo, desde quando a pessoa passou a tomar conhecimento de sua existência. Geralmente, a continuidade do ser apresenta-se como um fluxo experiencial, no qual a pessoa se autopercebe como “este sou eu”, referindo-se a uma presença simultaneamente mental e corpórea. Daqui se pode verificar a realidade da experiência de existência própria, associada à identidade. Em sua simplicidade, essa experiência é referida à discriminação com respeito à existência do outro, servindo de parâmetro para a detecção da existência e da ação do ser interior de outras pessoas, tal como se encontra, por exemplo, nos atendimentos psicanalíticos.

Essas observações indicam claramente que o ser interior se constitui nas dimensões e limites da pessoa real, que tem sua existência no mundo real. Excluem-se, para isso, toda pertinência e toda implicação místicas ou metafísicas. De maneira semelhante, ele não equivale às concepções engendradas em contextos não naturais, quaisquer que sejam. Nas suas relações com o ambiente, estão contidas as possibilidades de expressão do ser no mundo, mas, em si mesmo, o ser interior não é essencialmente composto pelo ambiente, onde ele se inscreve. Como foco de vida, é anterior a qualquer tipo de formação condicionada com que possa interagir. Desse modo, importa, sobretudo, seu caráter imanente e sua caracterização dentro do campo científico, sendo estudado especialmente pela psicologia e pela psicanálise.

Na mira dos pensadores

A noção de ser no ser humano é, certamente, muito antiga. Pode-se pensar que a inscrição “Conhece-te a ti mesmo”, gravada no Templo de Delfos, fizesse apelo a essa noção. Heráclito de Éfeso disse: “Eu me procurei a mim mesmo” (1964, p. 79), tendo em vista a obtenção desse conhecimento. No estoicismo de Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio, um princípio diretor é representado como cidadela interior que se delimita a si mesma, sendo comparável ao Sphairos de Empédocles (Hadot, 2022). Um núcleo central na interioridade humana foi concebido pelo taoísmo chinês como equivalente à própria natureza do ser humano, ao admitir um princípio vital presente no corpo, que entrava em harmonia com o mundo exterior. A individualidade é um conceito amplamente espalhado em diferentes culturas, tendo raízes remotas na história humana. No século 11 de nossa era, Avicena apontou a possibilidade de apreensão imediata da identidade subjetiva (Jambet, 2015), antecedendo de vários séculos o pensamento moderno. Para Descartes, pai da modernidade, o ser da subjetividade é existente como pensamento, mas este só é possível dentro do todo da existência, tomada como realidade inescusável. Reduzida ao cogito, a noção de ser disseminou-se por inúmeras correntes filosóficas, sofrendo severas críticas, justamente por seu racionalismo estrito (Jaspers, 1958). Rousseau (1782/1943), por sua vez, descreveu poeticamente o estado da interioridade sob os efeitos do sentimento da existência de um ser em harmonia consigo mesmo, de que resultam contentamento e paz. As experiências de Rousseau de certo modo concorreram para as concepções de Maine de Biran e de Michel Henry. Enquanto o primeiro associou o ser à consciência, ao corpo vivo, à potência das ideias, ao esforço e à religião, o segundo condicionou-o à base corporal, sendo esta, em princípio, o próprio ser (Hamraoui, 2021).

Na verdade, para muitos autores fora da psicologia e da psicanálise, esse ser não foi concebido como algo abstrato, mas sim vivencial em plano direto e imediato. Não passou desapercebido que ele operava uma surda germinação inconsciente. Mas a noção alargou-se enormemente com o advento da psicanálise, tomando proporções por vezes incalculáveis, como o si-mesmo de Jung (1982), que corresponde arquetipicamente ao somatório de todas as possibilidades contidas no conjunto de todos os indivíduos humanos, não se distinguindo das imagens divinas. Muito mais concentrado e discernível se situa na psicanálise o conceito de self, em especial quando contém explícita a ideia de um núcleo central. Essa foi a posição de Winnicott (1971/1972), que veio clarificar os sentidos de autenticidade e de continuidade da existência. Trata-se de uma posição dissonante de Freud, para quem o ego – uma instância relativamente equivalente ao self2 – se constituía numa entidade pusilânime e fraca, estando sujeita à predominância dos impulsos. Freud (1917/1976) disse que o ego não era dono de sua casa. Como sabemos, já em seus primórdios, a psicanálise orientou a investigação do ser para muito além do fluxo de consciência, suplantando as limitações filosóficas da época. Na psicanálise, o ser constitui-se em existência viva, tanto no nível consciente quanto no nível inconsciente, deixando de ser meramente uma formulação consciente, como o foi para William James, ou apenas pensamento, como o foi para Descartes, ou ainda entidade metafísica, como o foi para Parmênides.

O ser como vida

Hoje podemos situar a fundamentação ontológica do ser interior no próprio fato da existência da vida, tomada como fenômeno ao mesmo tempo geral e particular. Esse ser não só representa a vida, como é a vida mesma, instalada na interioridade. Sob esse aspecto, vida e ser correspondem-se, estando compreendidos no todo somatopsíquico. Por isso, o ser é apreendido como fenômeno vivo em estado original, assim como é fonte nuclear de irradiação de vida, alcançando o conjunto mente-corpo. Desse modo, há identificação do ser com a vida interior. Sendo fonte de vida e correnteza de existência, o ser põe e mantém a pessoa viva, ao operar os princípios vitais dos centros de sustentação interna. A vida assume em plano particular e individual o que ela significa em plano geral, sob a forma de querer-viver universal. Nesse sentido, não se diferencia daquilo que Bergson (1907/1959) chamou de élan vital. Podemos compreender, portanto, que as origens e os processos vitais dos ser interior são essencialmente não violentos e construtivos. Além disso, como a vida, ele assume propriedades de organização e de harmonização, refletidas nas relações com o organismo, com o mundo externo e com as demais instâncias e partes psíquicas. Assim, pode-se caracterizá-lo como impulso básico de vida, que contém meios autoatualizantes de existência num ambiente interno e externo de características complexas.

Em consequência, encontra-se a mobilidade psíquica, uma expressão do ser como realidade viva em movimento. Para Bergson, “a vida em geral é a própria mobilidade” (Thibaudet, 1923, p. 239). No ser, a vida apresenta-se de modo livre, leve e solto, de sorte que, pela liberdade de ser, se consumam as condições primárias de liberdade da pessoa, que jamais é aprisionada por seu próprio ser, do qual promanam realizações por escolhas voluntárias, livres e criativas. Como fator inaprisionável, livre e criativo, a vida do ser é um dos aspectos centrais mais impressionantes da condição humana, em vista da realização da individualidade em suas mais lídimas aspirações.

A não sensorialidade

Daqui se segue a abertura do ser em um continente propício ao acolhimento do fluxo inesgotável das coisas, no qual geralmente se apresentam a experiência nova e a emergência criativa em estado de frescor. A abertura do ser (que não se reduz ao acolhimento e à experiência) consiste, em especial, num estado fundamental de disponibilidade e de potencialidade receptivas, sendo isento o mais possível de desarmonias. Nessas condições, pode-se falar do ser interior em sua constituição não sensorial, que se correlaciona com a mencionada disposição livre, leve e solta, sendo completamente distinta de um objeto concreto. Essa disposição proporciona a abertura à experiência, tanto nos relacionamentos internos quanto nos externos, de forma a expandir a consciência, assim como o conhecimento da realidade em geral.

O estado do self

Poderia parecer maravilhoso, se a existência humana se circunscrevesse a esse ser-em-relacionamento. Mas a complexidade, o conflito, o comprometimento e a turbulência da mente se impõem como realidades inexoráveis, tomando parte nos processos da vida e do viver. Desse modo, paralelamente ao ser interior, e distinto deste, temos o self. Em que consiste a distinção entre ambos? Se o primeiro, como vimos, é estável e harmônico em seus princípios, raízes e atividades, o segundo é constituído por um campo variável, inconstante, incoerente, conflitivo, contraditório, multiforme, multifacetado e propício a ocorrências de todo tipo, sejam de conteúdos ou de dinâmicas mentais.

Como um campo de ocorrências, o self é composto de múltiplas partes e infindáveis elementos, estando sujeito a influências e a instalações provenientes dos objetos internos, do próprio organismo, dos objetos externos, das demais instâncias psíquicas, bem como de elementos e fatores mentais de todo tipo. A configuração do self, sendo variável e plástica, está na dependência do que para ele aflui, o que nele repercute, se instala e se mantém. Geralmente, ele se constitui no interior dos embates, conflitos e turbulências, dando forma a seu continente e expressão a seus conteúdos. Suas feições estão em função do que predominar em cada momento, mas também, especialmente, do substrato que vier a se consolidar. Pode ocorrer que alguns fatores e elementos lhe deem estabilidade, enquanto outros continuem sendo versáteis e inconstantes. Ou seja, uns se estabelecem como organizações, enquanto outros se conservam instáveis. De modo geral, as características do self são determinadas pelos componentes que nele se instalam e se mantêm, quando são predominantes. Além disso, ele pode se consolidar como órgão de comunicação interna e externa, sendo uma precondição para as experiências. Como instância mediadora, nas funções de consecução da existência, o self oferece condições concretas para a adaptação, a sobrevivência, a conservação e a defesa da vida (Trinca, 2016).

Contato e distanciamento de contato

Voltando, agora, à existência do ser interior na vida mental, o ponto central a ser considerado é o estado do contato que a pessoa estabelece com ele. O contato com o próprio ser é a base da existência individual, tanto quanto o distanciamento de contato é fonte de distúrbios, dificuldades e comprometimentos de toda ordem, que se refletem sobre as relações internas e externas da pessoa. Tanto o contato efetivo quanto o distanciamento de contato têm efeitos sobre o self, de tal modo que o que se passa neste depende inteiramente do estado de contato com o ser interior. Isso significa que o ser interior exerce maior ou menor influência, presença e ação sobre o self, determinando a natureza, a dinâmica e as condições internas deste, que condicionam suas manifestações internas e externas. Como o contato é exercido em graus, maior ou menor grau de contato implica diferentes modalidades de self. Caso o contato não se efetive de modo suficiente, o self fica à mercê de outros fatores e elementos, que são estranhos ou alheios ao ser interior e à existência genuína da pessoa. Quanto maior for o grau de distanciamento de contato, maior será a desorganização e a desestruturação psíquicas, em consequência do afastamento das forças propulsoras ligadas ao princípio de vida. Inversamente, quanto maior for o grau do contato que se realiza, maior será a organização e a estruturação do self, bem como do todo psíquico.

Havendo contato satisfatório, a natureza não sensorial do ser interior se faz sentir, com repercussões conscientes e inconscientes. Nesse caso, preponderam integrações e relacionamentos significativos, visto que é próprio desse ser estabelecer a organização e a harmonização, que se transmitem à vida mental. Os conflitos, comprometimentos e turbulências são creditados ao distanciamento de contato, quando a ação organizadora do ser interior não se efetiva ou é insuficiente sobre o self. Cada grau de distanciamento de contato pode ser associado a determinada modalidade de perturbação psíquica. É interessante considerar três tipos básicos de contato: consciente, inconsciente e oclusivo. O contato consciente está na base da função alfa e das transformações das experiências emocionais em elementos alfa; o contato inconsciente responde pelo predomínio de personalidades neuróticas; e o contato oclusivo correlaciona-se com as personalidades psicóticas (Bion, 1966).

Um modelo geral

A observação do estado de contato – em combinação com a existência do self em separado do ser interior – vem permitir a construção de um modelo geral de compreensão das perturbações psíquicas, cujos fatores principais são o próprio distanciamento de contato, a fragilidade do self, a angústia de dissipação do self e a sensorialidade. Esses fatores estabelecem conexões entre si, em interação dinâmica, à qual vêm se acrescentar, por um lado, a constelação do inimigo interno (um subproduto da pulsão de morte) e, por outro, a estruturação inconsciente e a expansão de consciência. Trata-se de um modelo, e não de uma nova teoria psicológica. Ele resulta do fato de que, alterando-se o estado do contato, o self se modifica a fim de se ajustar à situação. Ao haver distanciamento de contato, a tendência principal consiste na instalação da fragilidade do self, que, em graus menores, tem por consequência o enfraquecimento do self e, em graus mais elevados, o esvaziamento do self. No enfraquecimento há debilitação e perda de vigor psíquicos, como se nota, por exemplo, nas inconsistências, nos desenfoques e nas dispersões. No esvaziamento, porém, os centros de sustentação e de funcionamento, a estruturação e a organização sofrem abalos consideráveis, como se encontram, especialmente, nas patologias do vazio, cujo paradigma é a síndrome do pânico. Pode-se inferir que a fragilidade do self serve de referência para atribuir ao contato com o ser interior uma função relacionada às experiências de existência e, inversamente, ao distanciamento de contato uma função associada às experiências de inexistência.

Na fragilidade do self, é possível constatar a emergência da angústia de dissipação do self, que se dá em graus, sendo associada ao terror de passagem à inexistência. Em graus elevados, ocorrem sensações de que o ser interior não tem efetividade existencial sobre o self, criando situações de solidão, vácuo e desfazimento da individualidade. Para fazer face a tais ameaças, a pessoa encontra alternativas de mobilização da sensorialidade. Esta diz respeito a elementos saturados de concretude ou que têm as propriedades, as qualidades e as características desta. Nesse caso, a tendência principal consiste em objetificar e tornar factuais os dados dos relacionamentos internos e externos, como apontado por Bion (1975/1989). A sensorialidade básica é um fator comum e normal na vida humana, mas, no caso em foco, a pessoa faz dela um uso intensificado e a emprega de modo exacerbado, constituindo internamente estados e áreas de saturação sensorial. À medida que seus graus aumentam, a sensorialidade torna-se cada vez mais densa e virulenta, dando a tônica à personalidade. Locupletar-se de sensorialidade é, certamente, uma atribuição do self, não do ser interior. Assim, podem ser descritos pelo menos quatro tipos distintos de sensorialidade, que formam configurações específicas e podem dar origem a diferentes modalidades de perturbação psíquica:

  1. Sensorialidade de preenchimento substitutivo: repleta o self de produtos vicariantes, como a drogadição, o falso self, a destrutividade antissocial, as ideologias e crenças dogmáticas e o trabalho excessivo.

  2. Sensorialidade básica intensificada: torna-se marcante por transformar emoções normais em verdadeiras obstinações, como o ciúme, a inveja, a possessividade e a ganância.

  3. Sensorialidade de corte e exclusão: refere-se a supressões, desligamentos, desinvestimentos, expulsões e imobilizações tanto dos vínculos internos quanto dos externos, como se verificam, em especial, na esquizoidia e na esquizofrenia.

  4. Sensorialidade produzida por ataques: os objetos internos se voltam contra a pessoa, produzindo rejeições, abandonos, hostilidades e malefícios, vistos, por exemplo, na depressão por perda de objeto e na depressão psicótica.

O modelo geral prevê que cada grau de distanciamento de contato tem implicações sobre as “escolhas” feitas pelos indivíduos. Incidindo sobre o self de maneira específica, elas acabam por constituir focos nodais ou sistemas mentais determinantes, que são padrões característicos de funcionamento mental. Para isso, porém, é preciso levar em conta a ação da pulsão de morte, representada pela constelação do inimigo interno, que se constitui em um dos principais fatores responsáveis pelo distanciamento de contato. A constelação atua para provocar e alimentar autodepreciações, autodesqualificações e autoinvalidações, entre outros aspectos, voltando-se contra o mundo interno e contra o mundo externo. Associada à destrutividade, ela opera em franca oposição ao contato com o ser interior.

Apesar de tudo, pode-se encontrar, no modelo geral, um espaço ampliado ao contato com o ser profundo, que alcança efetividade a partir da experiência de inteireza e se estende de modo a alcançar desenvolvimentos e expansões consideráveis. Na estruturação inconsciente e na expansão de consciência, as propriedades de abertura do ser atingem culminâncias nas quais o contato com esse ser chega a libertar o self de interferências e de poluentes, deixando-o relativamente límpido. Por vezes, torna-o propenso a experiências alargadas, ampliadas e abrangentes, como descritas, por exemplo, em Trinca (2019). Nessas condições, é possível haver sentimentos de presença de vida interior, assim como experiências de harmonia, transfiguração e eteridade, entre muitos outros aspectos. A expansão de consciência decorre de contato com a não sensorialidade, que incide em graus elevados sobre o self.

Uma perspectiva para os fatos

Em 2001, foi apresentada a perspectiva de que o ser interior se constitui em instância diferente do self (Trinca, 2001). Dessa perspectiva, as noções de contato e de distanciamento de contato com o núcleo fundamental dão inteligibilidade e coerência à compreensão dos fatos mentais. Essa abordagem foi apresentada de modo sistemático em Trinca (2011). É importante reafirmar que, em sua constituição, o ser interior é um foco de vida em si mesmo inteiriço, harmônico e indiviso, cujas influências e atividades sobre o self se fazem sentir por presença igualmente coerente e harmoniosa. Daqui resulta que, sob o princípio de vida, a organização e a expressão do self passam a ser as menos discrepantes possíveis da força unitária que o rege, sob predominância do contato bem-sucedido. Em tais circunstâncias, em vez da vacuidade e da falta, aparecem as funções de integração, ordem, criação e expansão, consubstanciadas nas relações bem-sucedidas entre ambas as instâncias. É impressionante verificar pela observação clínica a capacidade do ser humano de retomar os princípios de estabilidade, organização, boa forma e harmonia ao se tornar consciente das forças e dos fatores que interagem na interioridade. São princípios que respondem, igualmente, pelo desenvolvimento humano em seus múltiplos aspectos, de que não se excluem as integrações com o corpo, inseridas na unidade somatopsíquica. Sob os auspícios do ser interior, o self compõe núcleos diretores e põe em movimento tendências à unificação do todo psíquico e de suas relações com a realidade exterior. Pelo modelo apresentado, vimos que há uma ordem geral na mente, pela qual se depreendem formas hierárquicas, em que a personalidade se desestabiliza e se estabiliza, se desorganiza e se organiza, se desarmoniza e se harmoniza, na dependência dos fatores e elementos que desempenham suas funções e atividades.

A partir dessas observações, torna-se mais simples verificar que muitas dificuldades, confusões e perturbações atribuídas à pessoa são, na verdade, consequências de um self comprometido por insuficientes presença e ação do ser sobre ele. Os processos terapêuticos também poderão se simplificar, ao focalizarem justamente o fulcro da questão, que em geral consiste na retomada do contato por meio da experiência de existência própria, em relação com a consciência do que se passa na interioridade. Essa é uma situação que difere essencialmente do engano de tomar o self interferido por outros fatores como se fosse o próprio ser da pessoa e, daqui, tentar empreender terapeuticamen-te uma reorganização mental impossível. Estar em acordo consigo mesmo correlaciona-se com o estabelecimento da predominância do ser no self, cujos resultados se refletem tanto de modo consciente quanto inconsciente. Decerto, essa perspectiva tem efeitos não só sobre os relacionamentos psicoterapêuticos, mas também sobre as relações humanas em geral.

Ao psicanalista, em particular, o modelo apresentado oferece condições de inscrever os sintomas, os sofrimentos e os comprometimentos psíquicos em um conjunto de fatores que interagem de modo relativamente coerente no interior de um sistema global, sob o qual se configuram as perturbações psíquicas. Desde essa dimensão, torna-se possível a organização de pensamentos clínicos significativos. Em vez de se mover ao acaso pelo arcabouço teórico, o psicanalista é sensível às principais constantes geralmente encontradas nos atendimentos clínicos. Isso de modo algum representa um abandono da associação livre e da atenção flutuante, uma vez que cada atendimento propõe por si mesmo uma diversidade de condições, a partir das quais o profissional acolhe e estrutura os dados. Ele sabe, porém, que no centro das relações humanas está o indispensável reconhecimento de ser de cada pessoa, algo que se coloca desde os primórdios dos encontros entre a mãe e o bebê.

Conclusão

Não são preferências teóricas que orientam a formulação do modelo exposto, e sim experiências clínicas desenvolvidas ao longo de mais de 50 anos. Constatar que certo nível de distanciamento de contato produz o vácuo do esvaziamento do self e da angústia de inexistência (podendo conduzir ao pânico) constitui uma referência primeira e indispensável para não ignorar as noções da existência do ser. De igual forma, é importante averiguar as consequências das experiências de inexistência, quando o contato não se realiza ou se torna insuficiente. O contato coloca-se, portanto, no centro da questão humana, revelando-se mais nitidamente nas situações clínicas básicas. A observação dos movimentos emocionais de existência e de inexistência do contato com o ser interior permite verificar um desdobramento de situações psíquicas e, em decorrência, o aparecimento de fatores e elementos com os quais se pode operar clinicamente. Os resultados são promissores e já foram comunicados anteriormente (Trinca, 1999, 2007, 2011, 2016). O psicanalista mantém sua atenção voltada para o ser individual, mas não se exime de formular enunciados sobre o ser do ser humano; por isso, não se isenta de considerar as implicações de seus pensamentos e hipóteses em relação a questões humanísticas e universais. São por assim dizer necessárias as conexões do que aqui foi exposto com as noções de realidade, a ética, a estética, os sentidos e significados para a vida e o viver, entre outros aspectos (Trinca, 2019, 2022). É indispensável, porém, frisar que a harmonização do todo somatopsíquico e de suas relações internas e externas conduz ao fortalecimento dos vínculos e das ligações afetivas, podendo proporcionar experiências inolvidáveis de alegria.

2Uma discussão desse assunto encontra-se em Trinca (2016).

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Recebido: 03 de Março de 2023; Aceito: 15 de Março de 2023

Walter Trinca wtrinca@usp.br

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