Há trabalho suficiente para se fazer nos próximos cem anos, nos quais nossa civilização terá de aprender a conviver com as reivindicações de nossa sexualidade.
SIGMUND FREUD
A angústia é a mãe da invenção no teatro psíquico.
JQYCE MCDQUGALL
Introdução
Começarei o texto citando as referências psicanalíticas que balizarão meu caminho. Farei um breve percurso histórico dos pontos discutidos, para situá-los nas mudanças temporais. Em seguida, abordarei as questões de gênero e das construções identitárias na atualidade, para discutir sua incidência na psicanálise. Finalmente, apresentarei algumas reflexões que de forma nenhuma se propõem a ser conclusivas.
Não por acaso, Freud inicia os Três ensaios (1905/1976j) na contramão dos sexólogos e psiquiatras da época, para quem a sexualidade “normal” estava ligada à reprodução. O clássico Psychopathia sexualis (1886/1990) de Krafft-Ebing, amplamente citado por Freud, teve inúmeras reedições, além de ter sido traduzido em várias línguas. Nessa obra de referência lemos: “A perenidade da raça humana é garantida por um poderoso impulso natural (Naturtrieb) que exige imperiosamente ser satisfeito” (p. 5).
As práticas sexuais que escapavam à Naturtrieb, ao impulso (Trieb) natural (Natur), foram minuciosamente repertoriadas e etiquetadas, dando origem a uma variedade de desvios: perversão, narcisismo, autoerotismo, sadismo, masoquismo, entre outros. Um “herbário de prazeres” (Foucault, 1976/1985, p. 63), que se estendia do acanhado admirador de sapatos até os portadores do “sentimento contrário”, a homossexualidade, foi se construindo. Isso deu origem a uma nova caça às bruxas, não mais por motivos religiosos, visando exorcizar o demônio (leia-se: o desejo), mas em defesa dos bons costumes, da moral e da saúde, em uma perspectiva higienista e repressiva. Criaram-se dispositivos com o intuito de regular e controlar as sexualidades, assim como curar suas manifestações “desviantes” – aquelas que escapavam aos critérios estabelecidos pelo discurso do poder e que, por extensão, ameaçavam a ordem vigente. (É triste ver como esses fatos se repetem na atualidade.)
Embora as “sexualidades desviantes” sempre tenham existido, sendo tratadas como pecado, pouca-vergonha, atentado ao pudor, sodomia e outras tantas nomenclaturas, pode-se dizer que as perversões foram “criadas” pela psiquiatria do século 19. O “novo” foi que essas nomenclaturas passaram a definir sujeitos marcados, em sua subjetividade, por suas atividades sexuais (Foucault, 1976/1985).
O sexual e a sexualidade
Partindo das “aberrações sexuais”, Freud (1905/1976j) faz o que podemos chamar de desconstrução, no sentido de Derrida, da “sexualidade normal”. Nas primeiras linhas do texto, mostra à moral, à religião, à opinião popular e à biologia (aos sexólogos) o quanto eles estão equivocados em relação a uma suposta “natureza” da sexualidade humana. Acreditar que a sexualidade deriva de uma pulsão/impulso3 natural (Naturtrieb), ausente na infância, que só se manifestaria na puberdade por uma atração natural de um sexo pelo outro, visando à reprodução, é uma “fábula poética” (p. 136). Entender a sexualidade nesses parâmetros constitui “um equívoco de graves consequências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições fundamentais da vida sexual” (p. 177).
A concepção de uma “pulsão natural” (Naturtrieb) é abandonada, e o debate centra-se nas pulsões, que nada têm de natural, e seus destinos (Triebe und Triebschicksale). O conceito de pulsão condensa o biológico e o psíquico. As pulsões traduzem a vida do corpo no psiquismo; são o motor da vida psíquica. No animal humano, os representantes ideativos dão voz às pulsões, transformando o sexual em psicossexual (Freud, 1915/2013).
Um dos pilares da teoria psicanalítica é o sexual. O conhecido texto Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, traduzido por Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, versa, de fato, sobre a teoria sexual (Sexualtheorie), e não sobre a teoria da sexualidade, Geschlecht, palavra que, em alemão, significa “sexo” e “gênero”. No segundo ensaio, Freud discorre sobre os impulsos parciais (Partialtrieben) que dirigem os caminhos do sexual infantil: eles desconhecem a reprodução, centrando-se na busca de prazer a qualquer preço e em qualquer parte do corpo, além dos genitais. As tentativas de satisfação pulsional são anárquicas, incessantes e amorais. O objeto é o que menos importa: tudo serve – embora nada satisfaça – para a diminuição da tensão, pois a pulsão é uma força constante.
O sexual é o inconsciente, o recalcado por excelência presente desde a origem da espécie humana. Ele é polimorfo, múltiplo e perverso. Uma moção pulsional que se perverteu, pois tomou o caminho errado.4 A pulsão é uma perversão do instinto. São impulsos anteriores à construção dos diques fixados pela hereditariedade, e organicamente condicionados – vergonha, asco, exigências estéticas. Atestam os caminhos do sexual infantil (Freud, 1905/1976J, 1987).
O sexual, que resiste a qualquer tentativa de normatização ou controle, é o grande enigma do sujeito. Todo grupamento humano, independentemente de sua organização social, é interpelado pelo sexual e cria, respaldado na hegemonia discursiva, expedientes para lidar com as demandas pulsionais: os discursos sobre a sexualidade. Esses artefatos culturais, tributários da moral sexual, são produtos dos processos secundários que jamais darão conta de regulamentar o primário, atestando que não existe tratamento político para o sexual (tributário do primário), embora haja tentativas de deliberar sobre as manifestações da sexualidade (produções do secundário). É nesse sentido que entendemos Foucault quando ele diz que “a história da sexualidade deve ser feita, antes de mais nada, do ponto de vista de uma história dos discursos” (1976/1985, p. 67).
Gênero: algumas reflexões
Foi na primeira metade do século 20, quando médicos recebiam recém-nascidos com má-formação na genitália externa, que o conceito de gênero passou a ser empregado, fora de conotações gramaticais. Essas crianças, que deveriam ser cirurgicamente “corrigidas” para sexo masculino ou feminino, foram inicialmente chamadas de hermafroditas e depois de intersexuais.
Sustentados pela clínica, John Money (1986) e Robert Stoller (1975, 1976) afirmaram que a chamada “identidade de gênero” não tinha nenhuma causalidade natural, hormonal ou genética, e era independente do sexo anatômico. Em rota de colisão com a afirmação de Freud (1924/1996a) segundo a qual a “anatomia é o destino”, Stoller entende que “a anatomia não é, de fato, o destino. O destino vem do que os homens fazem da anatomia” (1975, p. 150).
Quando os movimentos feministas e as teorias das ciências sociais incorporaram as discussões sobre gênero, ele adquiriu definitivamente o status de conceito. Na época, aceitava-se a ideia de que a universalidade da sexualidade era influenciada pela cultura. Tal posição, contudo, excluiria aqueles e aquelas que não se identificassem com as referências culturais de homem e/ou de mulher: os sujeitos não binários. No Brasil, o conceito de gênero é uma construção sociológica relativamente recente, que surgiu diante da necessidade de diferenciar o sexo biológico dos papéis sociais femininos e/ou masculinos (Banco Mundial, 2003).
Nas últimas décadas, os estudos de gênero, as teorias queer e as teorias críticas têm submetido o sistema hegemônico sexo/gênero a duras provas, sugerindo que as possibilidades de subjetivação são inúmeras. Para Butler, por não existirem “relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo”, os caminhos identificatórios e as construções de gênero são independentes da anatomia (1990/2003, p. 38).
À emblemática afirmação de Simone de Beauvoir (1949/2019) “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, Butler contrapõe uma observação desconcertante: “Não há nada em sua explicação [de S. de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (1990/2003, p. 27). O enunciado “torna-se mulher” foi reformulado: “O que o sujeito pode se tornar, sendo (também) mulher?” (Kehl, 1998, p. 5).
Sendo o sexo tão historicizável quanto o gênero, por responder a discursos de poder (fálico × castrado, presença × ausência), somos levados a repensar as modalidades de expressão da sexualidade e a reavaliar os atributos sociais do binarismo de gênero. Ainda que não se negue a diferença anatômica, o discurso que surge a partir daí terá sempre uma dimensão política. Caso contrário, construiríamos um discurso que anula a diferença, valorizando um sexo (o que possui, o que não é castrado) em detrimento do outro (o que não possui, o que é castrado), dando continuidade à desigualdade entre os sexos e entre os gêneros (Bertini, 2009).
A identidade de gênero é, sempre, uma performance constituída, através da repetição de atos, gestos, signos e outros elementos que reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos, como os observamos. O gênero seria um continuum entre dois extremos performáticos – o “todo masculino” e o “todo feminino” –, e cada sujeito deve situar-se, a partir de sua história, na parte do continuum com a qual ele se identifica, de forma durável ou provisória. Com isso, o transexualismo, visto como patologia, é deslocado para a transexualidade, que representa uma possibilidade de existência tão legítima quanto as outras (Porchat, 2014). A partir daí, certas categorias de gênero ganharam novas leituras, afetando diretamente o modelo heteronormativo e cisnormativo.5
Em um futuro não muito distante, a hibridação entre corpo e máquina – o transumano e/ou o corpo aumentado – anulará, definitivamente, a dicotomia sexo/gênero, fazendo com que a realidade virtual extinga tanto a diferença sexual quanto o binarismo (Lindenmeyer, 2017; Massacrier & Rassial, 2019).
Gênero e psicanálise
Acredita-se não haver uma teoria de gênero em Freud. Porém, em “Sobre as teorias sexuais das crianças” (1908/1976i), ele fala de uma forma de classificação anterior à percepção da diferença anatômica (Ceccarelli, 2017a). O texto nos convida a despojar-nos de nossa “existência corpórea” e imaginar-nos observando a Terra como “seres puramente pensantes”. Chamaria nossa atenção a existência de dois seres cujas diferenças se dão por sinais externos, isto é, sem levar em conta a diferença sexual. Parece que, em Freud, haveria uma classificação (segundo o gênero) antes da percepção da anatomia. O gênero viria primeiro, embora seja o sexo que o determine a partir da percepção anatômica.6 Ainda que a anatomia faça parte do destino humano, “esta não pode, em hipótese alguma, permanecer, para cada ser humano, um horizonte insuperável” (Roudinesco, 2021, p. 31).
Lacan, em uma passagem do Seminário 11 (1988), faz uma observação que sugere questões de gênero. Como sabemos, as identificações constitutivas do eu e as futuras escolhas de objeto são construídas a partir das relações do recém-nascido com o Outro. Contudo,
no psiquismo não há nada pelo que o sujeito se pudesse situar como ser de macho ou ser de fêmea ... o que se deve fazer, como homem ou como mulher, o ser humano tem sempre que aprender, peça por peça, do Outro. (p. 194)
Não podendo nos situarmos como ser de macho ou ser de fêmea, é no Outro, no discurso cultural, que inclui o desejo dos pais, que aprenderemos o que fazer como homem ou mulher – é a partir da interpretação que o candidato a sujeito faz do desejo do Outro que a identidade cis ou trans é construída. Nunca é demais lembrar que, quando trabalhamos com o inconsciente, “a relação entre sexo e gênero mostra-se necessariamente refratária a qualquer tipo de normatividade” (Ambra, 2016, p. 101).
As teorias de gênero revelam-se um auxiliar de peso para pensarmos os caminhos pulsionais e reavaliarmos as relações entre corpo, sexo, construções identitárias, novas conjugabilidades e discurso do poder. Nessa perspectiva, as fórmulas de sexuação propostas por Lacan representariam uma teoria sobre a diferença, mas não um universal de subjetivação (Tort, 2000).
Se tratarmos as subjetivações apenas com base em fórmulas de sexuação, ser homem e/ou ser mulher seriam as únicas construções possíveis. As que nelas não se encaixassem, como as transexualidades, ficariam extrassexo (horsexe), colocadas no campo das psicoses7 (Millot, 1983).
Definir o normal e o patológico não é tarefa fácil quando sabemos que um dos pontos de ruptura de Freud com a psiquiatria e a sexologia de sua época foi, justamente, mostrar que o normal não existe (Prata, 1999). Os estudos de etnopsicanálise (Barro & Bairrão, 2010; Devereux, 1978) mostram que a noção de normalidade e de patologia, de certo e de errado, de doença e de cura, é intimamente ligada ao sistema de valores (sociais, econômicos, históricos...) relativo ao grupamento humano que o constrói. Ignorar a história do sujeito e sua inserção social pode levar à normatização (Canguilhem, 1978; Lanteri-Laura, 1994; Lustosa, 2016). As construções identitárias da atualidade e os novos posicionamentos de gênero nos incitam a reavaliar os parâmetros que definem as dinâmicas psíquicas, cujo páthos – as paixões, as pulsões – escapa aos ditames tradicionais.
Sabemos que todo ser falante, independentemente de sua “identidade de gênero” (trans ou cis), terá sempre um sentimento de estranheza, pois o real do sexo é inatingível. Os caminhos das dinâmicas inconscientes (re)construídos na análise dizem respeito ao que chamo de berço psíquico: o lugar que a criança ocupa a partir da interpretação que ela faz do desejo do Outro, ou seja, de quem lhe deu vida psíquica e a acolheu – ou não – no mundo (Ceccarelli, 2002).
A independência da realidade anatômica e o caráter incerto da masculinidade e da feminilidade tornam difícil definir masculino e feminino. Tais noções, que não têm lastro numa suposta “natureza humana”, são produto de convenções culturais que vão além de predisposições e determinações instintuais e geneticamente herdadas (Freud, 1930/2016). Para Winnicott (1971), a questão do masculino (puro) e do feminino (puro) não guarda relações com a anatomia. O elemento feminino relaciona-se ao ser e o masculino ao fazer.
As questões de gênero e as construções identitárias devem ser incluídas no debate psicanalítico, para não cometermos equívocos similares, de consequências não menos graves, aos denunciados por Freud nos Três ensaios. Parafraseando o que ele diz, acreditar que as expressões de gênero e as construções identitárias tenham uma correspondência natural com a anatomia é uma fábula poética (Ceccarelli, 2022).
Construções identitárias
Por falta de identidade, somos condenados à identificação. Esse nosso “destino pulsional” marca, simultaneamente, nossa liberdade e nossas limitações. Mesmo não sendo um conceito psicanalítico, identidade é um termo usado com frequência na clínica. Contudo, as identidades só podem ser pensadas de forma dinâmica, visto que dependem dos processos identificatórios. A identidade é um sintoma, no sentido psicanalítico do termo, pois procura estabelecer uma relação de compromisso entre as moções pulsionais em busca de satisfação e os limites impostos à satisfação pelos processos civilizatórios. Desse conflito surge o eu, um “precipitado de identificações” (Freud, 1923/1976c).
Se o que se deve fazer como homem ou mulher precisa ser aprendido do Outro, “masculinidade” e “feminilidade” são pontos de chegada, não pontos de partida. E cada ponto de chegada é uma construção subjetiva e única, resultado de um percurso identificatório, tributário da dinâmica edípica e das escolhas de objeto, somadas à hereditariedade, aos elementos constitucionais, às influências acidentais e à intensidade de uma experiência particularmente traumática, isto é, as “séries complementares” (Freud, 1917/1976b). As construções identitárias – cis ou trans – traduzem as inúmeras possibilidades da dinâmica pulsional, marcando a particularidade da constituição do eu. Sendo os processos identificatórios tributários da organização simbólica da cultura na qual emergem, eles são marcados pela diversidade, produzindo infinitas modalidades de subjetivação capazes de “humanizar” o bebê humano. Trata-se de criação única de Eros, uma solução no sentido matemático do termo: um sistema vetorial com muitas variáveis – corpo, castração, desejo, gozo... –, frente às quais uma resultante, uma solução, será encontrada. Solucionar os conflitos – reais ou imaginários – presentes desde o início da vida traduz tentativas de escapar ao sofrimento psíquico: a particularidade de cada “solução sexual” deve levar em conta o equilíbrio singular da dinâmica pulsional do sujeito. Além de aspectos intrapsíquicos, fazem parte dos processos de subjetivação os ideais culturais presentes no nascimento do bebê (o desejo dos pais), ideais esses que, outrora, pertenciam ao mundo externo (Freud, 1914/2004).
Na escuta de sujeitos cis ou trans, há que levar em conta duas modalidades identificatórias, cuja distinção fará emergir duas problemáticas. De um lado, o sentimento imutável que se estabelece bem cedo e se relaciona com o modo de inserção do sujeito na função fálica – o que Stoller (1976) chama de núcleo da identidade sexual; tal sentimento se expressa por “Eu sou menino” ou “Eu sou menina”. De outro lado, o sentimento “Eu sou masculino” ou “Eu sou feminina”, resultado das identificações secundárias. Os movimentos psíquicos que levam ao reconhecimento da diferença de sexo são dependentes da situação edipiana e do complexo de castração. Para Freud, a polaridade órgão genital masculino/castrado “será substituída por masculino/feminino, e a diferença dos sexos terá por base a realidade material pênis/vagina” (1923/1976f, p. 184).
Devido aos caminhos pulsionais, um sujeito pode hesitar entre o desejo de penetrar ou de ser penetrado, sem, contudo, pôr em dúvida o fato de “se sentir” homem. Um homem trans (identidade de gênero) pode sentir-se atraído por homens (“escolha” sexual). O mesmo se aplica às mulheres trans. É como mulher (identidade de gênero) que a mulher trans sente atração por homens (“escolha” sexual). E é como homem que o homem trans sente atração por mulheres (Ceccarelli, 2013).
A referência aos intersexuais contribui para uma apreensão mais ampla dos elementos presentes nas construções identitárias e nas relações entre sexo e gênero.8 Estudos relativos aos destinos identitários nessas crianças mostram que as construções identitárias seguem o sexo de atribuição, e não o sexo anatômico. Em caso de conflito entre forças biológicas e psicológicas, as últimas ganham no que diz respeito às construções identitárias (Ansermet, 2005; Chiland, 1998; Kreisler, 1973).
As considerações a respeito das mudanças nas construções identitárias e das configurações de gênero podem ser mais bem compreendidas quando levamos em conta as relações e interações entre os processos primários e os secundários. A psicanálise trabalha com duas dimensões do psiquismo, ou seja, duas representações de realidade, no sentido quântico da palavra.
Para a física quântica, sabemos, não existe uma passagem linear, contínua e discreta do mundo quântico para o visível: a realidade é uma construção (Ceccarelli, 2009). Quanto mais adentramos no universo subatômico, mais somos confrontados com espaços vazios e com campos energéticos de pulsação elétrica, magnética, acústica e gravitacional. No universo quântico, os objetos sólidos são, no fundo, compostos de vazio.
As posições teóricas que procuram explicar como se dá a passagem do universo quântico para o cotidiano da realidade guardam semelhanças com a comunicação entre os processos primários e os secundários. Na psicanálise, a barra do recalque que separa essas duas realidades impede o acesso à matéria bruta do pulsional, isto é, aos processos primários que sustentam nossas construções.
As duas “realidades” têm leis próprias: os processos primários, guiados pelo princípio do prazer, são essencialmente inconscientes e marcados pelo recalque, além de serem imutáveis desde a origem da espécie humana. O primário é constituído por moções pulsionais sempre em busca de satisfação e constantemente limitado pelas imposições culturais (Freud, 1930/2016). Trata-se do primitivo do homem presente em nós (Freud, 1908/1976e).
Os processos secundários são marcados pela cartografia imaginária e por construções discursivas, que utilizamos para nos deslocarmos no mundo, e variam em consonância com os movimentos sócio-históricos. Graças à constante busca de satisfação, novas moções pulsionais encontram representações ideativas, sem, contudo, afetarem o primário. As pulsões, responsáveis por tais mobilidades, fazem parte da mitologia psicanalítica. Elas são “entidades míticas, magníficas em sua imprecisão” (Freud, 1933/1976a, p. 119).
Trabalhar a partir das duas dimensões psíquicas leva-nos a compreender as “novas construções identitárias” e as apresentações de gênero, assim como outros aspectos da atualidade que aparentemente são novos, mas que de fato não o são. Não se contam mais as vezes que ouvimos dizer que nos consultórios recebemos cada vez mais jovens “escravizados pelo universo virtual, sem possibilidade de encontro presencial na área afetiva”; que “os jovens têm se mostrado relutantes em aceitar o binarismo de gênero, as identidades sexuais tradicionais” etc.
Não pensamos assim. Com Freud, acreditamos que “os caminhos pulsionais estão fadados a dar uma aparência enganadora de serem forças tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas buscando alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos” (Freud, 1920/2006, p. 161, grifo meu).
Os mitos construídos no processo analítico (Freud, 1908-1909/1996b; Lacan, 1953/2008) permitem ao sujeito atribuir representações psíquicas a seus afetos, se situar no tempo e no espaço, e elaborar a sua verdade. O mito é uma palavra fundadora de identidade; sua perda pode provocar o colapso da função simbólica, pois entrava a circulação pulsional (Ceccarelli, 2019). Os mitos construídos por sujeitos trans lhes permitem “construir um passado”, processo fundamental para o resgate do lugar que ocupam no desejo do Outro (Aulagnier, 1989).
Reflexões provisórias
Se “a psicologia individual . é, ao mesmo tempo, também psicologia social” (Freud, 1921/1976g, p. 91), a psicanálise deve estar atenta às mudanças das representações (Vorstellung) dos processos secundários, e observar como tais mudanças afetam seus conceitos teórico-clínicos. A teoria psicanalítica sempre esteve à frente de seu tempo, e seus seguidores devem estar atentos para não se fecharem em um sistema dogmático.
Quando a psicanálise não acompanha as mudanças sociopolíticas, sua “autoridade social” é questionada (Fassin, 2003). É o que acontece, por exemplo, com alguns psicanalistas, opositores radicais das relações homoafetivas, que insistem em defender que as únicas configurações edipianas capazes de produzir subjetividades sadias são as baseadas no modelo da família tradicional (Roudinesco, 2015) – que insistem em não ver as mudanças sociais.
A busca por representações que confortem os impulsos pertencentes aos processos primários existe desde que o recalque fundou o inconsciente. O que mudou, ao longo do tempo, foram os suportes oferecidos pelo secundário por meio das representações (Vorstellung) culturais. Ao ouvirmos as construções identitárias e as apresentações de gênero, interessa-nos saber como os “estímulos oriundos do interior do corpo” (Freud, 1915/2013, p. 25) alcançaram a mente. Ou, mais ainda, como os universais da psicanálise se singularizam nos diferentes grupamentos humanos, tal como a etnopsicanálise mostra.
Alguns sujeitos têm a tendência a aferrar-se à parte mutável da realidade (processos secundários) e, mobilizados pelos afetos que as mudanças sociais produzem, se sentem narcisicamente ameaçados. Outros veem nos movimentos pulsionais algo negativo e mantêm um discurso normativo na esperança de que nada se altere – ou ainda um discurso que dá a impressão de que não há saída nem esperança, de que vivemos um momento de mudanças único e nada será como já foi. Ora, nos sentimos ameaçados agora por vivermos agora – por razões puramente narcísicas. Ademais, trocar uma coisa por outra requer um trabalho de luto para que novos investimentos objetais ocorram, em detrimento dos antigos. O sentimento de desamparo que tais posições evocam é, em certa medida, compreensível, pois,
ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto. (Freud, 1908/1976d, p. 151, grifo meu)
Para Freud (1915/2013), não há progresso psíquico, ainda que não se possa negar o avanço tecnológico. Os conflitos de gerações sempre existiram e continuarão a existir. Experiências pessoais, “conselhos” para obter satisfação e/ou evitar o sofrimento, perdas e lutos, relações afetivas, situações que evocam o desamparo constitutivo do ser humano, e tantas outras coisas que nos afligem, não podem ser transgeracionalmente transmitidos, o que faz a história humana ser um eterno recomeçar (Levy & Ceccarelli, 2020).
As duas dimensões psíquicas nos auxiliam, igualmente, a compreender por que, a despeito de tanta “revolução sexual”, o contato com o sexual continua problemático. Nos consultórios, os sintomas marcados pelo sexual, presentes desde sempre, continuam: frigidez, ejaculação precoce, disfunções diversas. As mudanças sociais levaram a uma desrepressão (processos secundários) da sexualidade imposta pela moral sexual. Contudo, a desrepressão da sexualidade não tornou o contato com o sexual mais simples, porque não foi acompanhada de um desrecalcamento da sexualidade – como, aliás, não poderia sê-lo. Temos aqui duas variáveis que afetam dimensões diferentes: de um lado, o recalcamento do sexual, movimento constitutivo do ser humano e condição própria para a existência da civilização; do outro, a repressão da sexualidade, tributária da moral sexual cultural (Freud, 1905/1976j).
A desrepressão da sexualidade possibilitou que “novas” subjetividades fossem mais “toleradas”, além de promover lutas políticas. Essa “tolerância”, cada vez mais presente na clínica e no tecido social, marca modalidades contemporâneas de alienação no desejo do Outro. Por vezes, essas subjetividades causam espanto: transgêneros, transexuais, bissexuais, sujeitos não binários, homem com vagina, mulher com pênis e outras tantas designações. Não por acaso, tais manifestações ocorrem particularmente no final da puberdade, quando a polimorfia da sexualidade infantil é revisitada. Contudo, elas sempre existiram, como bem o atesta a história das práticas sexuais (Gregersen, 1983).9 Porém, os processos repressivos de outrora impediam que elas se manifestassem, fazendo com que esses sujeitos se sentissem inquilinos no próprio corpo (Ceccarelli, 2013).
Reflexões não conclusivas
Estar em sintonia com “a subjetividade de sua época” (Lacan, 1953/2008, p. 322) requer um trabalho constante de (auto)análise. Por outro lado, não alcançar essa subjetividade pode transformar a psicanálise em uma visão de mundo, uma Weltanschauung (Freud, 1933/1976h), eliminando outras possíveis leituras do real, impedindo e protegendo o sujeito de rever suas certezas.
À psicanálise não cabe ditar os caminhos “normais” de subjetivação, sob pena de se transformar em um discurso fundamentalista. Toda construção identitária – cis ou trans – é patológica, pois estamos inelutavelmente “aprisionados/as nas modalidades patológicas das ficções [mitos] que construímos sobre nós mesmos” (Ambra, 2016, p. 117). Cada construção identitária reflete um caminho singular do páthos, como o entende a psicopatologia fundamental, cujo campo é o da psicanálise e que se organiza em torno daquilo que o sofrimento ensina (Berlinck, 2000).
Se o inconsciente não reconhece a contradição, além de não fazer distinção entre o masculino e o feminino, não podemos falar, em psicanálise, de cisnormatividade ou transnormatividade, e por extensão de “cura identitária”. Falar de cura trans é tão absurdo quanto falar de cura cis. Cada um vive e se aliena na cissexualidade ou na transexualidade, dentro da singularidade de seu percurso identificatório. O que podemos oferecer a esses sujeitos não difere do que podemos oferecer a outros: problematizar sua construção identitária, acolher a angústia daí advinda, que não raro é mais social do que subjetiva, e ajudá-lo/a a compreender seu sofrimento psíquico, transformando-o “em infelicidade comum” (Freud, 1893-1895/1969, p. 363).
A escuta clínica de sujeitos cuja identidade não reproduz o discurso hegemônico vai de encontro às referências identificatórias do analista, que na maioria das vezes estão imersas na heteronormatividade e na cisnormativida-de (Ambra, 2016). Por melhor que tenha sido a sua formação, o analista não está ao abrigo do retorno de moções pulsionais recalcadas ligadas à bissexualidade constitucional. Se há eu, há contratransferência (Lacan, 1986), fazendo com que a análise se torne impossível, pois a atenção flutuante é paralisada. Ademais, as identificações presentes na subjetividade do/a analista e os seus ideais constitutivos – enfim, seu sistema de valores – estão sempre à espreita (McDougall, 1985). Sentir-se ameaçado pelo retorno do recalcado pode transformar a escuta em uma nova ordem repressiva (Ceccarelli & Levy, 2012).
Nossa prática clínica (psicologia individual) deve estar sempre atenta às mudanças sociais (psicologia social) das últimas décadas relativas à escuta e ao acolhimento de sujeitos que não se enquadram na cisnormatividade. As releituras identitárias, as mudanças discursivas e as políticas públicas promoveram uma despatologização das identidades trans (Ceccarelli, 2017b).
Cada vez mais, acredito que as construções identitárias, as categorias de gênero e outras tantas manifestações do sexual – neurose, psicose, perversão, sonhos, obras de arte e doenças psicossomáticas – traduzem “técnicas de sobrevivência psíquica” (McDougall, 1989, p. 38) frente aos traumatismos universais e pessoais que a vida inevitavelmente provoca.