Uma atmosfera feroz
Em 13 de maio de 2021, toda a imprensa da Índia veiculou a singular e horripilante história de centenas de corpos flutuando no Ganges e nos rios de Bihar e Uttar Pradesh. Pesavam sobre governos e estados a quantidade de corpos e as causas dessas mortes resultantes da covid-19, revelando a incapacidade da nação de viver o luto diante da perda de incontáveis vidas humanas. Essas pessoas tiveram um final criminoso, deixando para trás incontáveis corações quebrantados e existências atormentadas de filhos, pais, amigos e amantes que perderam seus entes queridos. Uma total negação da possibilidade de morte digna aos falecidos, simultânea ao descaso em relação às necessidades dos familiares e amigos sobreviventes, em busca de paz e desfecho para suas perdas. Um completo e deplorável sucesso de um sistema que subjuga entes humanos, sua vida e sua morte.

Aqui e na página seguinte: valas informais às margens do rio Ganges, na Índia, para vítimas da covid-19.
Os tradicionais ritos de cremação hindus consistem na queima do corpo, porém todos os crematórios elétricos estavam sobrecarregados de cadáveres, que aguardavam pela cremação em longas esperas de mais de 24 horas, enquanto a lenha para cremação manual era vendida no mercado negro. Os indivíduos designados pela comunidade para atuarem como “cremadores” – normalmente denominados doms, casta considerada a mais baixa da comunidade –, buscando desesperadamente sobreviver em face de séculos de destituição, aproveitaram esse momento catastrófico para obter uma vantagem momentânea. Com frequência, a miséria contém uma angústia de sobrevivência tão violenta, que acaba reforçando a crença de que um pouco de dinheiro pode comprar onipotência e invulnerabilidade diante de uma secular opressão estrutural sociopolítica e econômica. Tais ações brutais de sobrevivência podem estimular confusão interna em nível individual, desencadeando processos dissociativos inconscientes, que desconsideram a adversidade do próximo. Sob essa apropriação do sobreviver esconde-se a inerente apreensão de um ente vulnerável em constante luta contra um sistema indiferente, o medo da aniquilação completa do indivíduo, o colapso interno de uma estrutura egoica frágil. Quando um vínculo comunitário paralisante, estabelecido desde o nascimento, envolve uma corporificação violenta e sistêmica da pobreza e da política, pode com frequência levar à trivialização de qualquer relação de compromisso intersubjetiva, tornando o corpo humano o campo de todas as batalhas pela sobrevivência individual – tornando qualquer ato, independentemente de sua violência, uma necessidade justificável para a existência individual. A fúria expressa em ações abomináveis passa a fazer parte da vida comum dos “pranteadores coletivos”. “Quando uma perda é associada a experiências de desamparo, passividade, vergonha e humilhação, o luto é acompanhado de outras tarefas psicológicas, como transformar o desamparo e a passividade em afirmação e atividade, e reverter a vergonha e a humilhação” (Volkan, 2007, p. 46, grifo nosso). Aqui, a perda começa com a aniquilação do próprio self.
Em outro nível, a indústria da saúde explorou a pandemia, transformando a morte em um negócio lucrativo – cilindros de oxigênio foram estocados para causar escassez no mercado da covid-19 e depois foram vendidos a preços exorbitantes no mercado negro. Na Índia, os elaborados ritos fúnebres hindus (conduzidos pela alta casta dos brâmanes/sacerdotes, consistindo na limpeza e vestimenta do corpo, e na aplicação da ghee3 para a cremação, sendo seguidos por semanas de luto, nas quais se veste e se come frugalmente, até o encerramento dessa fase em um banquete comunitário) que acompanham a morte poderiam acolher as nuances de um esforço inerente em direção à purgação de uma ordem sociocultural e estrutural corrompida? Uma ordem que sorrateiramente dita uma vida fundada na negação e na renúncia, disparando uma possível tentativa de reparação em nome da culpa que provoca? Talvez essa transmitida culpa cultural comunitária por uma ordem impiedosa tenha sido transformada em uma culpa transgeracional filial personalizada, que por muito tempo manteve as famílias presas ao status quo, mas que agora se choca de maneira violenta com uma incansável e implacável cultura do consumo, prontamente disponível para a autogratificação imediata do indivíduo. Essa transição cultural da importância dos mitos e ritos para uma busca voraz de gratificação instantânea através do consumo, ironicamente trivial e, portanto, urgentemente repetitiva, exerce uma atração magnética nos tempos atuais.
Crueldade necessária
A Índia é dilacerada pela antiga e violenta antítese de classes e castas, em que o dinheiro atua como símbolo de aquisição de uma ilusória vida de invulnerabilidade. Com frequência, o dinheiro representa a única forma de obter dignidade social. Apoiado no confiável fundamento da política da pobreza, o consumismo gera certo senso individual de prazer sofisticado e de completude que somente o dinheiro pode comprar, desencadeando assim a re-produção de uma violenta cultura de entretenimento para a distração da comunidade. Por conseguinte, encoraja a “prática de ignorar (desassociar) o sofrimento alheio, instaurando a crueldade como forma de viver o status quo, fazendo-a parecer (e por vezes realmente ser) necessária” (Borg, 2007, p. 181).
Ideologias políticas dogmáticas florescem em um reforço sistêmico e estrutural de tais divisões sociais, promovendo uma “alteridade” projetiva dos estados coletivos dissociados mais inaceitáveis. Assim, propaga-se estruturalmente a “alteridade” assassina através da divisão em classes e castas, da discriminação de gênero e do preconceito racial.
Na atual era de vigilância tecnológica, seres humanos estão cada vez mais alienados do contato e da continuidade humanos. Um elemento reducionista transforma a subjetividade humana em um objeto facilmente descartável. Um extraordinário cultivo da dessensibilização e da banalização prevalece nos tempos atuais, fazendo emergir uma réplica “maniqueísta” (Bohleber, 2003, p. 126) do mundo, realçando a linha divisória entre bem e mal, amigo e inimigo, separando o “outro” do “nós” ao extremo. A separação torna-se mais nítida e concreta quando
a defesa maníaca se opõe a um senso de responsabilidade social, uma vez que vai contra a culpa depressiva, que no modelo kleiniano conduz a uma preocupação reparatória em relação ao outro. Essa defesa é caracterizada pelo enraizamento em um senso de onipotência, na negação da realidade psíquica, em um impulso à ação contrário ao pensamento e na identificação projetiva maciça. (Altman, 2005, p. 330)
Será possível que a incomensurável perda de vidas humanas nos últimos dois anos na Índia provoque tamanha negação nacional de sua devida responsabilidade social, com base na onipotência de suas leis, acentuando ainda mais a divisão do povo entre ricos e pobres, alta e baixa casta, rural e urbano? A utilidade e a produtividade do corpo humano são os únicos critérios para determinar sua relevância nesta era consumista e mecanizada. Herbert Marcuse argumentou que o ego ideal coletivo contemporâneo inclui o crescimento de um extremismo popular, impulsionado pela força conjunta da tecnologia e de ideologias autoritárias. Segundo ele, “com a desvalorização do corpo, a vida do corpo não é mais a vida real, e a negação dessa vida é o começo, não o fim” (2011, p. 125), sugerindo assim um princípio de destituição e antítese da existência da pessoa comum, submersa na violência sub-reptícia e sedutora de um sistema derrisório, conflituoso, mas cativante.
A Índia, com seu histórico colonial e inúmeras invasões estrangeiras, tem sido um campo de batalha repleto de corpos mortos e terrenos explosivos, o que demandou repetidas demarcações territoriais de estados, cidades e vilarejos. Contínuos deslocamentos e desenraizamentos da comunidade difundiram uma desconfiança coletiva básica e uma ansiedade primordial que frequentemente se presentificaram no cotidiano em crenças supersticiosas. Em 1976, Leo Rangell escreveu sobre a ruptura do “chão” e sobre o apego à própria terra ou a seus arredores como um pré-requisito para sustentar o equilíbrio social e ambiental, o que se reflete no ente social do ser. Como a Índia é um país basicamente voltado à agricultura, a terra carrega ainda mais significado para a população simples, que dedica seu corpo/seu ser à nutrição do solo a fim de obter alimento e sustento. Quando essa base se desintegra, o self pode experimentar estar sendo aniquilado com ela, o que a população da Índia tem vivido reiteradamente no âmbito da divisão política da terra ao longo dos séculos. Ou seja, comunidades que enfrentaram traumas consecutivos, devido a guerras, invasões, política e pobreza, podem expressar maior vulnerabilidade à desconfiança e à segregação, com provável paranoia social persistente e desilusão interna. Comunidades que compartilham essa ansiedade primordial podem por sua vez produzir “regressão social” (Volkan, 2002), ampliando sua crença em poderes mágicos que contêm esses mesmos conflitos violentos. De modo curioso, sustentam simultaneamente uma cultura exaltada de devoção a deidades, próximas de sua ideia de deus, que se tornam populares através de doutrinas canónicas ortodoxas relacionadas a políticas violentas de direita. Qualquer um ou qualquer coisa que não se encaixe na doutrina canónica é tratado como “corpo estranho não assimilável”, que precisa ser sistematicamente erradicado. Dessa forma, alimenta-se um clima polarizado de certo e errado, bom e mau, “nós” e “outro”. A inoculação do medo fixa o sujeito na posição esquizoparanoide, impedindo qualquer transformação em direção ao estado depressivo.
Sujeitos sexuados
No artigo “The sex in their violence”, Todd McGowan refere-se ao conceito foucaultiano de biopoder. Explica esse conceito como aquilo que “transforma o terreno político de uma esfera pública de disputa e contestação em uma esfera biológica que se ocupa da vida e do corpo” (2019, pp. 47-48). Como diz Foucault, a violência do biopoder está em sua produção de uma “vida nua”, que é confrontada com seu produto vital, a tecnologia. Essa tecnologia estimula uma vida falsa, enganadora, através da criação de um poder ilusório de caráter mágico, que o indivíduo procura desesperadamente imitar e capturar. McGowan explica que o controle exercido pelo biopoder sobre a “vida humana nua” acontece pela introdução da morte (e do medo diário dela) – ou, em outras palavras, o que ele chama de sexuação – na vida cotidiana. “O biopoder esconde a natureza sexualizada de sua violência. Ele se direciona não a seres vivos, mas a sujeitos sexuados e a seus meios de obtenção de prazer” (p. 49).
Nas atividades do dia a dia, a vida parece ser tomada por uma violência clandestina, irresistível, fascinante e sedutora. Com a dança macabra e brutal de centenas de corpos mortos flutuando em seus rios, estaria o superego nacional da Índia, sua política e administração, sobrepondo à vida cotidiana uma necrocultura patente, tornando a morte e a morbidade elementos triviais da existência, cada vez mais ocupada com atividades de lazer e entretenimento através do apelo ao consumo? Governado pelo princípio do prazer e diante do entretenimento como personificação dominante da existência, o ego é encorajado a prescindir do princípio da realidade de maneira estrutural e sistêmica, o que sorrateiramente estabelece uma existência “sexuada” para a humanidade. A transformação de vidas humanas em “sujeitos sexuados” inicia-se na infância, com a propagação de um impulso sistêmico ao entretenimento de massa programado, até na esfera básica da educação. Inculca-se um entretenimento desprovido de qualquer enriquecimento catártico ou mesmo de evolução afetiva e cognitiva do self/do ego. O apagamento totalitário de qualquer exercício intelectual é encoberto pelas estranhas e miraculosas excitações de um mundo automatizado de entretenimento mágico.
A mulher rejeitada
A Índia sempre corroborou a filosofia oriental da prevalência da mente/alma sobre o corpo e a existência material. Podemos nos perguntar se tal predileção metafísica não seria também um provável constructo social de defesa sublimada da antiga privação estrutural e econômica construída sociopoliticamente. Ao longo dos anos, a Índia testemunhou uma sistêmica subjugação da subjetividade feminina, em paralelo ao seu sistema de castas. Tabus menstruais, que incluem a higiene periódica do corpo feminino “sujo”, reafirmaram o mito da abjeção das mulheres, instalando nelas o “medo da violação”. “A sujeira nunca é um evento único e isolado. Onde há sujeira, há um sistema. Ela é subproduto de uma sistemática ordenação e classificação da matéria, na medida em que ordenar envolve rejeitar elementos inapropriados” (Douglas, 1966/1984, p. 35). Acontece assim a construção metódica de uma ordem patriarcal brutal, que estabelece as mulheres como o “outro-pária” a ser eliminado, um ente físico que só tem valor enquanto “mecanismo reprodutivo” ou “objeto de entretenimento”, ficando tanto a maternidade quanto a sexualidade feminina recobertas por enunciados perversos e sexuados.
Torna-se o corpo/ente feminino
um “objeto transicional” entre duas famílias, unindo lares para que outros morem e se desenvolvam, abrindo mão de seu próprio senso de pertencimento? Torna-se o corpo da mulher o frágil local simbólico dessa construção do lar dos outros, um poço de onde se saciar? Nesse contexto, é seu corpo feito somente para a nutrição alheia – um provável elo com a transformação cultural, na Índia, da sexualidade física feminina em uma deificação da maternidade que provê o sustento? É através da maternidade que a mulher indiretamente busca seu direito à sexualidade? Onde ela pode encontrar nutrição para seu próprio self? O que acontece com seus desejos físicos, com seus prazeres? (Basak, no prelo)
Vinheta clínica 1
Bijaya cresceu em um vilarejo de Bangladesh, em uma família agregada.4 Em comparação com as outras, sua casa era pequena, com dois quartos utilizados para todos os propósitos (comer, receber visitas, dormir), uma cozinha e um longo corredor-varanda, onde ela e os irmãos estudavam e dormiam. Na casa não havia espaço para uma privada. Assim, as mulheres acordavam ao amanhecer para defecar no espaço aberto e tomar banho em um lago próximo. Bijaya fazia o mesmo para se preparar para a escola. Ela ficava muito envergonhada com isso. O nojo que sentia de si própria aumentou quando começou a menstruar. Limpar o corpo naquela fase tornou-se uma tarefa vergonhosa para ela. Nunca convidava amigos ou professores à sua casa por não haver ali uma privada. Essa situação se estendeu até o momento em que Bijaya estava no ensino médio, quando a família finalmente conseguiu construir um banheiro simples no átrio da casa. Nessa época ela estava prestes a deixar sua vila para ingressar na faculdade.
Bijaya terminou a pós-graduação na Índia e conseguiu um emprego de professora numa escola em Bengala. Ela morava em um hostel para mulheres que trabalhavam, e ocupava um quarto com um banheiro adjacente. Ficou muito feliz por enfim ter uma privada só para si em um banheiro fechado. Ela inclusive concordou de bom grado em pagar mais para ter o próprio banheiro. Isso representou uma grande conquista para ela – que decorava e limpava o banheiro com muito capricho -, talvez uma maneira simbólica de cuidar de suas “partes privadas”, que haviam criado tanto problema e vergonha para ela desde a infância. Bijaya apreciava seu momento privado em seu próprio banheiro. Mesmo que suas conquistas na vida até então tivessem sido louváveis, seu sentimento de inferioridade era enorme. Ela se sentia muito triste, inferior e não aceita. Segundo dizia, sua pele era muito escura, seu inglês não era bom o suficiente, seus gestos não eram refinados, era pobre. Tudo isso teve um impacto ainda maior nela após a mudança para a Índia, sua nova e segunda casa, construída por seus próprios méritos.
Um sonho recorrente enquanto morava na Índia:
Seu professor preferido na universidade estava visitando sua casa no vilarejo. Ela estava muito empolgada por ver um professor tão prestigiado visitando um vilarejo tão pequeno. Era uma grande honra para ela e sua família. Bijaya convidou vizinhos importantes à sua casa para conhecê-lo. Preparou chá para o professor com muito cuidado. Mas começou a tremer desesperadamente ao oferecer o chá para ele. Sentiu vergonha de sua mão escura. Ele perceberia como era suja. Também sabia que, assim que tomasse o chá, ele precisaria usar o banheiro. E assim saberia quão pobre ela era, alguém que nunca havia tido um banheiro em casa. Queria sumir.5
Nesse momento costumava acordar do sonho com forte ansiedade, como se a tremedeira de sua mão tomasse conta de todo o corpo.
Sua empolgação por receber em casa o professor favorito e sua dolorosa experiência de vergonha em relação ao próprio corpo, querendo enterrar-se, sumir, podem ter disparado a tremedeira (poderia ser um movimento rítmico do corpo em excitação sexual, e ao mesmo tempo a vergonha enterrada por anos encontrando uma saída somática). Acordar depois de ter desejado “enterrar-se” no sonho indicava talvez sua angústia em relação à vida, ter de acordar e enfrentá-la. Associações ulteriores com suas mãos “escuras”, “sujas”, incluíam sua agonia infantil em usar as mãos para limpar-se com folhas e água após defecar a céu aberto em sua vila. Refletiam sua ambivalência, seu sentimento de sujeira e sua terrível vergonha. O desejo inconsciente de buscar o professor com a mão, em que a xícara de chá tinha o papel de objeto transicional que conectava os dois, pode ter inflamado seu profundo “medo da violação” juntamente com sua excitação, causando forte ambivalência e ansiedade no sonho. Talvez a xícara de chá também represente uma ponte entre a vida rural e a urbana, em dois países diferentes – uma tentativa de resolver o conflito interno através de seu ciclo repetitivo.
“A negação do núcleo fundamental de um ser vivo, que é o seu self (incluindo o “corpo” e sua emanente sexualidade), naturalmente provoca significativo dano emocional, podendo deixar uma cicatriz no aparelho psíquico da mulher” (Basak, 2014). Cria-se uma profunda ferida narcísica, que promove dissociação entre o self e o corpo, e torna a autonomia uma aquisição muito difícil. Essa posição depressiva velada e culturalmente coercitiva, oferecida às mulheres hindus como consequência “natural” do fundamental desprezo e abandono de seu self primário por seu superego (pais e sociedade), deixa a mulher diante de um vazio sem fim, uma ferida narcísica impenetrável para o resto da vida.
O preto sinistro da depressão, que podemos legitimamente relacionar com o ódio observado na psicanálise dos depressivos, é somente um produto secundário, uma consequência em vez de uma causa, de uma ansiedade “branca”, que expressa uma perda experimentada no nível narcísico. (Green, 1986/2005, p. 146)
Na Índia, essa posição depressiva oferecida às mulheres, culturalmente incutida e socialmente aprovada, com frequência explica a depressão profunda, e não a posição depressiva de Klein, e pode por conseguinte levar a uma descatexia maciça do objeto materno primário – aquele que se mantém vivo fisicamente, mas está psiquicamente morto para a criança (Green, 1986/2005). A introjeção materna da violência externa, no interjogo com sua qualidade descatexizada, transforma-se em autoviolência interna individual, privadamente transmitida à criança através de sua passividade. É comum o cuidado funcionar como disfarce para a produção de um investimento ansioso que encobre o amor.
No contexto hindu, com frequência a aniquilação da subjetividade da mulher pode afetar de forma severa sua capacidade de mentalização, paralisando-a em sua vitalidade ou na experiência de prazer, tornando “o prazer de estar viva” um ato proibido e passível de punição. Nesse sentido, a culpa na mulher costuma agir como mecanismo fundante e coesivo para o self em suas relações primárias, culpa que não necessariamente conduz a tentativas reparatórias, mas que desencadeia hostilidade em relação ao self, levando à culpa persecutória. Esse complexo contorno psíquico é comunicado à criança, ocasionando desassociações afetivas provavelmente incoerentes em sua configuração intersubjetiva e intrapsíquica. O amor da criança pode ficar preso em seu compromisso com a mãe indisponível emocionalmente, tornando difícil o processo de individuação e autonomia, e afetando a capacidade do ego de viver o luto diante de perdas significativas. Como se um potente estado ambivalente que se contorce em vulnerabilidade e uma vindoura posição melancólica a partir da infância ficassem enredados com a culpa persecutória, como investimento psíquico no vazio criado pela simbólica “mãe morta”.
Vinheta clínica 2
Anita procurou a terapia com 32 anos. Estava casada havia sete anos e tinha uma filha de 5. Quando chegou à terapia, estava grávida de dois meses do segundo filho. Fazia 10 anos que trabalhava em uma organização social de direitos da criança e empoderamento feminino. Sua autoconsciência era grande. Então, de início, articulou claramente:
Minha família tem problemas, o que tem me tornado cada vez mais uma pessoa agressiva. Acho que tenho um problema de agressividade, como meu pai, que eu odeio. Ele nem existe para mim. Mas o que realmente tem me perturbado é minha mãe. Fico tão brava com ela ultimamente. Por vezes, não consigo suportá-la. Mas, se me perguntar, te digo que eu realmente amo minha mãe. [Enquanto fala, seus olhos ficam marejados.]
É evidente que seu senso de pertencimento familiar diz respeito à família de origem, apesar de ter a própria família e filhos. Ela odiava o pai desde que descobriu (com 12, 13 anos) que ele havia molestado sexualmente sua prima (filha da tia materna, de quem era muito próxima). Sua dúvida imediata era se seu pai também a havia molestado. Não tinha lembrança disso, mas não conseguia descartar por completo a possibilidade. Ela não sabia por quê, mas sempre se sentiu desconfortável com ele, desde a infância. Essa ambiguidade a perturbava profundamente, desorganizava seus processos cognitivo-afetivos. Não era só a agressividade dele que a assustava e a fazia evitá-lo; também evitava qualquer contato físico com ele. Por exemplo, lembrava que, quando se sentava na traseira de sua bicicleta a caminho da escola, conscientemente mantinha-se firme para não precisar se apoiar nele. Não gostava de como o pai olhava para as garotas e as mães. Sentia que ele era um ganda-log (homem mau). Ao longo dos anos escolares, nunca convidava as amigas para sua casa, com medo de que o pai se insinuasse a elas. Olhava para os pais das amigas e desejava que seu pai fosse como os delas, alguém com quem pudesse se sentir segura, de quem tivesse orgulho. Mas ela tinha vergonha do pai. Nunca pôde dizer essas coisas à mãe. Internamente, sentia raiva dela, como se a mãe não se desse conta de nada e fosse uma aliada do pai. Talvez o silêncio mútuo em relação ao assunto fosse também um ponto de contato interno e inconsciente, de identificação e de raiva de Anita em relação à mãe.
Por vezes, Anita percebia sentir desconfiança e ódio em relação ao próprio marido, da mesma forma que em relação ao pai. Como se um tivesse que pagar a conta deixada pelo outro. Quando via o marido e a filha brincando juntos, sentia-se incomodada, desconfiando dele ou sentindo ciúmes da filha. Talvez um estímulo inconsciente de seu desejo de interação entre pai e filha. Ou estavam em seu inconsciente insinuações sexuais inaceitáveis, estimuladas pela ideia da transgressão sexual do pai, com as quais ela não conseguia entrar em contato? Talvez isso tenha acirrado ainda mais o ódio que sentia pelos pais, a própria raiva, que foi introjetada e revivida em sua própria dinâmica familiar. Teriam esses estímulos sexuais inconscientes aumentado sua culpa e a tornado superprotetora em relação à mãe? Mas ela não queria que a própria família fosse uma réplica da perversão e ambivalência com a qual cresceu, e por isso buscou a terapia.
Anita empregava maneiras bem-humoradas e criativas para dissociar-se de sua dor e humilhação em relação à família, em atuações que eram um padrão nas sessões. Por exemplo, ela dizia: “Aqui, senhora, conheça meu pai – um empresário de profissão e um pedófilo por paixão”. E então ria exageradamente, talvez em um esforço maníaco para defender-se do chocante paralelo. Em outra ocasião, enquanto falava da crueldade da mãe para com ela e da devoção de esposa que esta tinha pelo marido, ela disse: “Você já viu alguma vez uma mãe que é um pedófilo-pu/an (sacerdote), que adora meu pai? Talvez ela não queira abrir mão de sua prestigiosa posição de sacerdotisa!”. (Ao se referir à “prestigiosa posição”, Anita aludia com ironia à realidade extremamente humilhante em que a mãe vivia, mal percebendo a própria crueldade dirigida à mãe.)
Com frequência, Anita se perguntava se era por questões financeiras que a mãe não tinha alternativa a não ser ficar com o pai. Assim, em grande parte da vida, tentou ganhar muito dinheiro e poupar o máximo para um dia “salvar” a mãe. Infelizmente, a menina Anita, aquela que de fato precisava ser salva, ficou perdida na negação e na indiferença da mãe, e em sua própria fantasia, onde se tornou a salvadora da mãe. Uma fantasia sustentada pela in-trojeção da mãe, inconscientemente transformando os próprios sentimentos dolorosos em um contra-ataque agressivo ao objeto comum a ambas, o pai, o penetrante objeto fálico em torno do qual ela tinha as próprias fantasias reprimidas, enquanto a imago da mãe indiferente continuou a residir de forma silenciosamente intrusiva em seu universo intrapsíquico, funcionando como ligação com a mãe. Como diz Chodorow, “o objeto-materno-tornado-sujeito” é um sujeito negado: “Esse sujeito negado, castrado, torna-se, como resultado de processos identificatórios, parte do self da menina mesmo quando a mãe-como-objeto mantém-se interpessoal e intrapsiquicamente um objeto de ambivalente amor e ódio” (1974, p. 16). A esperança era de que Anita, de livre e espontânea vontade, quisesse se comprometer com a terapia para compreender sua dor, seu amor e sua raiva em relação à mãe, e ao mesmo tempo desvendar o que de fato aconteceu com ela e o pai, tudo aquilo que há anos machucava a ela e sua família.
A Índia pós-independência e um violento imaginário sobre a mulher
A era colonial na Índia pode ter encontrado um sentido coletivo para a vida através da ligação com a tangível realidade da pátria-mãe. O espaço da “pátria-mãe”, seu corpo simbólico, teve profunda significação psíquica para aquela geração. A construção de um glorioso espírito nacional pode ter funcionado como defesa maníaca coletiva, que servia bem ao tempo, contra uma provável e desestabilizadora ambivalência na órbita filial, a presença da “mãe morta” na vida privada. Com a conquista da independência da Índia, o motivo de se manterem coletivamente comprometidos com a pátria-mãe se perdeu para aquela geração. Na era pós-independência, investiu-se com similar paixão na popularização de uma cultura impetuosa de devoção a ídolos de divindades, em substituição à alma abstrata anterior e seu fundamento espiritual na filosofia religiosa. Uma crescente exaltação religiosa, externalizada e politizada, ecoava uma violenta raça de “devotos sexuados”, que substituiu o apaixonado exército de cadetes da era nacionalista.
Receando a morte do self, o indivíduo pode com frequência buscar maneiras externalizadas de obter vivacidade psíquica – seja por meio de devoção violenta, hipersexualidade ou atividades excitantes. Através do alinhamento sistematizado do louvor religioso à virilidade patriarcal, o compromisso coletivo da Índia pós-independência se estabeleceu com a deusa-mãe, instigando uma separação ainda maior entre o corpo real da mulher e a imagem cultural projetada da deusa-mãe idealizada. Uma frenética e compulsiva necessidade de imaginar para compensar o vácuo do corpo real da mulher. Assim, o corpo real de carne e osso da mulher, sua feminilidade, sua sexualidade, sua subjetividade, tudo isso tornou-se o “outro por excelência” a ser atacado – uma falácia/phalácia, que convenientemente substituiu o “antigo inimigo estrangeiro colonial” por essa nova e emergente mulher da Índia. Era necessário erradicá-la como um corpo estranho ou “purificá-la” e modificá-la de forma que se assemelhasse à deusa adorada. A galopante e brutal violência contra a mulher na Índia, a mulher independente, as lésbicas, as mulheres trans, tanto no contexto rural quanto no contexto urbano, descortina a dicotomia entre uma terrível e voraz idealização da deusa-mãe e um profundo desprezo pela mulher de carne e osso. Desse modo, através do desprezo pela mulher real, por seu corpo morto, irrompeu o novo e violento imaginário sobre a mulher no âmbito cultural-religioso da Índia, aplaudido por ideologias fálicas e pela política de direita.