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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.1 São Paulo  2023  Epub 14-Out-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n1.14 

Artigo

A destempo1

A destiempo

At the wrong time

Tardivement

Jorge Bruce2 

2Membro da Sociedade Peruana de Psicanálise (SPP). Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP). Mestre (DEA) pela Universidade de Paris. Professor da PUCP. Colunista do jornal La República. Autor de vários livros sobre psicanálise e sociedade, entre eles Nos habíamos choleado tanto: psicoanálisis y racismo


Resumo

Segundo o autor, houve a necessidade de enfrentar um período conturbado para que se iniciasse uma reflexão sobre o instrumento de trabalho de diferentes perspectivas. Nesse contexto, um aspecto específico será abordado: por décadas, na América Latina, o método de trabalho foi utilizado como se pudesse ser facilmente importado, sem considerar as peculiaridades da região. Para exemplificar essa questão, serão apresentados exemplos técnicos, clínicos e teóricos.

Palavras-chave cinema; psicanálise; dogma; fronteiras; literatura

Resumen

Según el autor, hubo la necesidad de afrontar un período problemático para empezar una reflexion sobre el instrumento de trabajo desde diferentes perspectivas. En este contexto, se abordará un aspecto específico: durante décadas, en Latinoamérica, se utilizó el método de trabajo como si se pudiera importar fácilmente, sin que se consideraran las peculiaridades de la region. Para ejemplificar este tema, se presentarán ejemplos técnicos, clínicos y teóricos.

Palabras clave cine; psicoanálisis; dogma; fronteras; literatura

Abstract

According to the author, there was a need to face a troubled period in order to start a reflection on the working instrument from different perspectives. In this context, a specific aspect will be addressed: for decades, in Latin America, the working method was used as if it could be easily imported, without considering the peculiarities of the region. To exemplify this issue, technical, clinical, and theoretical examples will be presented.

Keywords cinema; psychoanalysis; dogma; borders; literature

Résumé

Selon l’auteur, il fallait affronter une période troublée pour entamer une réflexion sur l’instrument de travail sous différents angles. Dans ce contexte, un aspect spécifique sera abordé : pendant des décennies, en Amérique latine, la méthode de travail a été utilisée comme si elle pouvait être facilement importée, sans tenir compte des particularités de la région. Pour illustrer cette problématique se-ront présentés des exemples techniques, cliniques et théoriques.

Mots-clés cinéma; psychanalyse; dogme; frontières; littérature

Já estou pronta para escrever de novo. Como um soldado em posição de tiro, o dedo indicador no gatilho. A escrita aparece antes de escrever, como uma missão, um antídoto, como morfina. O chamado estilo não é outra coisa senão evitar que o gatilho dispare a destempo.

ARIANA HARWICZ

Parte 1

O filósofo – embora ele insista que é apenas um professor – espanhol Fernando Savater (1985) traçou um interessante paralelo entre a história do cinema e a da psicanálise, cujas trajetórias andam de mãos dadas, pois nascem na mesma época. Em 1895, os irmãos Lumière fazem as primeiras exibições públicas de seu invento, no mesmo ano em que Freud e Breuer publicam seus Estudos sobre a histeria. Ao ler esse autor, pensei que a contemporaneidade não é o único paralelismo. Em ambas as trajetórias, um grupo de aventureiros e exploradores do fim da noite ou do coração das trevas foi cedendo lugar a aplicados especialistas, destros no uso da técnica e apegados aos limites estabelecidos nos manuais de boas práticas cinematográficas ou analíticas. Esse culto do dogma versus a episteme carrega certa familiaridade [aires de familia] – título do grande ensaio do mexicano Carlos Monsiváis (2002) sobre as culturas latino-americanas – com o fanatismo e a rentabilidade.

O que foi citado no primeiro parágrafo não é excepcional. Parece, antes, ser a sina das grandes descobertas da humanidade. Daí ser essencial combater esta atrofia intrínseca tanto aos organismos quanto às organizações, que pode levar não só ao envelhecimento da escuta e do olhar, mas também, como foi dito, ao amuralhamento fanático e à monetização do tempo com vistas a recuperar o investimento efetuado, em geral considerável. Outro paradoxo desses tempos convulsionados é que a múltipla crise mundial dos últimos anos nos proporciona uma rara oportunidade para nos indagarmos a respeito. Mencionamos as muralhas, o que evoca uma multiplicidade de imagens. Vamos ficar com duas delas: fronteiras e bárbaros.

As fronteiras criam, entre muitas outras consequências, um gênero literário, que, como se diz de modo insuperável em francês, me tient à cæur. Existe um extenso corpus sobre a literatura da fronteira. É célebre a Trilogia da fronteira (1999), de Cormac McCarthy; Dino Buzzati se aventurou em O deserto dos tártaros (1940/2012); J. M. Coetzee esteve À espera dos bárbaros (1980/2010); e meu favorito, Zama (1956/2017), do autor nascido em Mendoza, Antonio di Benedetto, se perde na terra de ninguém entre a Argentina e o Paraguai. As fronteiras nos proporcionam uma sensação de segurança ou então nos revoltam e atemorizam, dependendo do lado em que nos encontremos e de qual seja nossa identidade.

Minha dissertação de mestrado (DEA [diplome détudes approfondies]) na Universidade de Paris se baseou em um seminário de Didier Anzieu que frequentei e que está publicado em seu livro Le corps de læuvre (1981). Fiz uma análise meticulosa dos contos de Julio Ramón Ribeyro (JRR), um escritor peruano e um dos maiores contistas em língua espanhola. Anzieu, que foi meu orientador, gostou muito dos contos de jrr, que haviam sido traduzidos pelas principais editoras francesas. Talvez porque ilustrassem com precisão as ideias do analista francês. Cito essa espécie de crossover de universos (um escritor peruano, um analista francês, falaremos disso mais adiante) para contextualizar a anedota que vou lhes narrar sucintamente agora.

Em certa ocasião, quando ambos vivíamos em Paris, convenci JRR, não sem dificuldades, a acudir ao teatro Les Bouffes du Nord (Julio não ia ao teatro fazia muito tempo, logo entendi por quê), onde Peter Brook, o diretor de teatro inglês domiciliado na França e que faleceu em 2022 aos 96 anos, costumava apresentar suas magistrais montagens. Ao sair da peça, enquanto caminhávamos pela rua para tomar o metrô, escutou-se a sirene inconfundível de uma viatura da polícia francesa. De súbito, Julio escapuliu para a sombra de uma ponte do metrô elevado da estação La Chapelle.

“O que aconteceu, Julio? Por que está se escondendo?”

“É que não tenho papéis”, me respondeu. “Estou ilegal”, gaguejou, com um visível constrangimento.

Fiquei atônito. Ribeyro vivia na cidade fazia décadas, tinha sido embaixador do Peru na Unesco e era, como dissemos, um grande escritor traduzido por editoras como Gallimard ou Flammarion. No entanto, o medo e a vergonha que assomaram em seu rosto eram os de qualquer imigrante ilegal do mundo, como vemos diariamente hoje em dia e certamente não só na Europa ou nos Estados Unidos (esse é um ponto-chave para o que pretendo demonstrar aqui). Um métèque. Julio faleceu em Lima, sua cidade, à qual tinha retornado para passar os últimos anos de sua vida fumando e escrevendo. O tabaco fez com que voltasse o câncer que rondava as bordas de seu eu-pele havia muito tempo. Se não fumava, não escrevia. Se voltava a fumar, conseguia escrever, mas era uma morte certa. Esta foi sua opção, que narrou em seu estilo despojado e sem romantismo nenhum no livro Só para fumantes(1987).

Mencionei em outra ocasião que, em seu clássico texto sobre a estrangeiridade e a mesmidade, Julia Kristeva (1988) reflete sobre essa condição no capítulo inicial, “Tocata e fuga para o estrangeiro”. No final, entende-se que seu estrangeiro é o imigrante ilegal dos países pobres – em geral proveniente de antigas colônias europeias e com não pouca frequência muçulmano –, que chega através de qualquer meio ao Primeiro Mundo em busca de sustento ou sobrevivência. Assoma a sombra do que Edward Said (2002, 2003) denomina orientalismo. Uma visão europeizante do exótico, valiosa mas não universal.

De entrada, nos impacta sua singularidade: seus olhos, seus lábios, esses pômulos, essa pele que não é como as outras distinguem-no e recordam que ali há alguém. ... Sente certa admiração por aqueles que o acolheram, já que em geral os considera superiores a ele, seja material, política ou socialmente. (Kristeva, 1988, pp. 12 e 16)

Em Ñamérica (2021), um livro recente do escritor argentino Martín Caparros, lê-se o seguinte:

O exotismo é feito também de relatos – livros, filmes, contos – que o estrangeiro recebeu alguma vez e que, ao olhar, aplica sobre a superfície impenetrável do diferente – que se oferece como espetáculo incompreensível ante seus olhos. O exotismo é um exercício de adequação sem êxito possível.

Nas sociedades latino-americanas, vivemos do outro lado do espelho.

Para nós, a palavra estrangeiro confere em muitas ocasiões, a contrario sensu, noções de prestígio e privilégio. No Peru se diz, por exemplo, “casou com suíço(a)”, o que se subentende como uma situação afortunada, uma bolsa de estudos ou um bilhete premiado. Talvez seja por isso que se suprime o artigo indefinido, para fixar o significante, firmar o ponto de basta. O estrangeiro não é o boliviano, o chileno ou o equatoriano, mas o europeu ou o norte-americano (excetuando o mexicano). Alguém invejável, desejável, cujos bens ou passaporte são cobiçados, pois significam, parafraseando Kristeva, a fuga para o estrangeiro (previa toccata). A perspectiva se inverte, os valores também.3 Nestes tempos, assistimos a uma maior complexidade dessa problemática, pois o doloroso exílio venezuelano fez do Peru o principal destino dos imigrantes provenientes daquele país, em sua grande maioria vivendo em condições de pobreza, geralmente extrema.

Redigi um obituário pela morte de jrr no jornal em que escrevo uma coluna semanal. Eu o intitulei “A elegância do desespero”, tomando emprestado o título do retrato que Emil Cioran faz de Samuel Beckett, dois autores próximos da escrita e do pensamento – foi também um grande ensaísta – do escritor peruano indocumentado em Paris. Esse afã desesperado de pertencimento, nem sempre elegante, é o ponto que gostaria de abordar agora.

Octavio Paz afirmava que os latino-americanos somos o Extremo Ocidente. Essa condição fronteiriça gerou respostas impregnadas de uma, aparentemente, indestrutível ambivalência. O autor colombiano Carlos Granés, um dos pensadores mais sólidos e talentosos da atualidade, escreveu um livro fantástico, cujo título diz muito: Delirio americano: una historia cultural y política de América Latina(2022). Num afresco de uma erudição impressionante, traça a intrincada relação de artistas e políticos latinoamericanos, atravessados pela tensa relação com os grandes centros de pensamento e poder da Europa e dos Estados Unidos. De César Vallejo a Fidel Castro, de José Martí a Juan Domingo Perón, de toda a coorte de ditadores4 a criadores como Caetano Veloso, Roberto Bolaño ou Doris Salcedo, desfilam as figuras que balizaram nossa existência e identidade.

Em sua extraordinária narração de um mundo marcado pelo populismo, seja de esquerda ou de direita, não figuram os psicanalistas. É significativo que Granés seja filho de uma psicanalista, assim como Caparrós. Enquanto o lia, no entanto, minha mente ia nos inserindo nesse delírio. Sentia que o quebra-cabeça estava incompleto e urgia em mim um afã imperioso, quem sabe de índole narcisista, de agregar as peças faltantes. Assim como nossos grandes escritores ou artistas plásticos, assim como nossa multicolorida classe política, não ficamos imunes a essas correntes que nos trouxeram até aqui, à fabulosa Cartagena das Índias. O nome Cartagena é uma derivação de Cartago Nova, nome que, após as Guerras Púnicas, os romanos deram à cidade de Qart Hadasht, fundada pelos cartagineses. Contudo, o dado mais relevante para esta exposição é que foi o principal porto de tráfico de escravos trazidos da África.

Não é à toa que o movimento vanguardista brasileiro, encabeçado por Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, publica em 1928 o “Manifesto Antropófago”. A antropofagia proposta por esses artistas e poetas resolve a tensão entre nacionalismo e cosmopolitismo – uma constante na história da cultura latino-americana -, incorporando o outro no próprio corpo. Com grande acerto, meu amigo e colega argentino Mariano Horenstein nomeou a revista da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal), que ele concebeu e fundou, de Calibán.5

Os analistas que eu tinha em mente enquanto lia o ensaio de Granés não eram apenas exploradores do inconsciente, o que, por si só, já é uma tarefa bastante árdua. A esse desafio se soma o de percorrer o caminho traçado pelas vanguardas artísticas latino-americanas, tanto as da primeira metade do século 20 como as do Boom, que souberam se apropriar das técnicas dos grandes escritores europeus e norte-americanos, adotar essas ferramentas, transformá-las e construir algo radicalmente original. Pensava, por exemplo, nos analistas do rio da Prata, que, para mim, foram pioneiros e cujas pegadas parecem estar se desvanecendo nas margens desse rio. Baudelaire diz isso com insuperável concisão em As flores do mal (1857/2005), na última linha do poema “A viagem”:

Entremos no ignoto para encontrar o novo!

[Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!]

O segredo dessa operação canibalística – demoníaca, como a chama Vargas Llosa em História de um deicídio, dedicada à obra de seu então amigo García Márquez – é narrar, com técnicas importadas e transformadas, relatos próprios de nossa história e nossas regiões. É isto que gostaria de encontrar em nossa prática e teorização da psicanálise latino-americana: relatos, técnicas, casos, análise daquilo que marca nossa condição fronteiriça, mutante, ocasionalmente bárbara, instável por definição.

A Associação Psicanalítica Internacional (IPA) tem feito, nos últimos anos, notáveis esforços para não permanecer aquém de mudanças paradigmáticas na cultura. Temos comitês para o racismo, os grupos LGTBQIA+; revisamos nossos critérios de admissão às sociedades de formação de analistas, a fim de acabar com um século de discriminação; outorgamos prêmios a trabalhos outrora não admitidos em nossos cânones. O saudoso Lee Jaffe, quando presidente da Associação Psicanalítica Americana (APSaA), pediu perdão na abertura de um congresso daquela associação (2019) por ter tratado a homossexualidade como uma doença, contribuindo dessa maneira para a discriminação e causando efeitos traumáticos nos grupos LGTBQIA+. Completavam-se 50 anos do massacre de Stonewall.

A agência de notícias Reuters afirmou que aquela pode ter sido a primeira organização de saúde mental nos EUA a apresentar desculpas públicas dessa natureza. Apesar de os psiquiatras terem deixado de classificar a homossexualidade como doença mental em 1973 (devido aos protestos vinculados à brutal intervenção policial ante a revolta de Stonewall), e os psicanalistas norte-americanos o terem feito 20 anos depois, ninguém tinha pedido perdão publicamente pelos danos causados não só aos homossexuais, mas a todos os integrantes da comunidade LGTBQIA+. Foucault, o teórico da vigilância, da punição e do biopoder, teria apreciado a ironia de a polícia de Nova York ter pedido perdão um mês antes dos psicanalistas.

Sustento que a América Latina, por sua defasagem histórica em relação às outrora potências coloniais, é um lugar “privilegiado” para lidar diretamente com populações vítimas de todo tipo de discriminações e maus-tratos, apesar de não serem elas que acodem a nossos consultórios, situados nas zonas abastadas, nas bolhas urbanas simbólica e, às vezes, literalmente amuralhadas. Em função da devastadora pandemia de covid-19 e suas repercussões de toda índole na qualidade de vida, em particular das populações mais vulneráveis, muitas instituições psicanalíticas e colegas de toda a região realizaram louváveis esforços para atender as pesadas necessidades que essa catástrofe humanitária evidenciou. Existem iniciativas admiráveis, como Psicanálise a Céu Aberto, da Fepal – impulsionada por minha amiga Magda Khouri, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) –, e Extramuros, da Associação Psicanalítica do Uruguai (APU). Minha sociedade, a Sociedade Peruana de Psicanálise (SPP), recebeu um prêmio da ipa, outorgado no congresso de Londres a tais iniciativas, por liderar a organização Psicólogos Contigo.

Esta crise planetária de múltiplas facetas poderia corresponder a um ditado atribuído aos budistas: “O que acontece, acontece no tempo certo”. Oxalá estejamos, os psicanalistas, tal como o fizeram muito antes intelectuais e artistas, à altura do desafio de canibalizar a teoria e a prática vindas do hemisfério norte, de sua vertente ocidental, e colocá-las a serviço não só de esforços heroicos para ajudar populações vulneráveis ou abandonadas, mas para questionar nosso instrumento de trabalho e fazer os ajustes necessários. Mais ainda, para questionar nossas identificações e fronteiras. Para sermos capazes de entrar em contato com imensos grupos humanos, estropiados e desvalorizados, cuja existência apagamos mediante alucinações negativas grupais, ou até negamos pura e simplesmente. Entrar em contato não de maneira esporádica ou caritativa – refiro-me a um processo de reconhecimento e identificação com esses objetos renegados, desprezados, invisibilizados.

A pandemia nos afetou em todas as regiões de nossa Terra, mas não o fez da mesma maneira. Meu país, o Peru, teve a maior quantidade de mortos do mundo em termos percentuais. Mais de 200 mil pessoas faleceram em decorrência da covid-19. Essa tragédia de proporções bíblicas deveu-se a uma conjunção de fatores relacionados ao desmonte do serviço público: escassez de leitos de uτι, de oxigênio, de profissionais da saúde etc. No entanto, o Peru atravessava um ciclo de anos de bonança econômica, graças a fatores como o preço dos metais ou o bom desempenho da indústria agroexportadora. Não obstante, sucessivos governos ao longo do século 21 – todos democraticamente eleitos, o que é uma raridade nessas latitudes – deixaram de investir no sistema de saúde pública, destinado às populações com menores recursos econômicos. Essa omissão não é casual. Desde a conquista, passando pela colônia e após 200 anos de independência republicana, o racismo, o classismo e os mecanismos concomitantes de negação, discriminação e inclusive identificação com o agressor por parte dos despossuídos determinaram esse estado de coisas, que uma vez mais desembocou numa variante genocida, pois a pandemia matou sobretudo os mais vulneráveis em termos não só físicos, mas também econômicos.

Digo “uma vez mais” porque, durante o conflito armado interno, tanto a guerrilha ultraviolenta do Sendero Luminoso quanto as Forças Armadas assassinaram fundamentalmente camponeses falantes do quéchua, habitantes das zonas mais pobres dos Andes. É bom lembrar que, em muitos países latino-americanos, o “estrangeiro” é um compatriota pertencente a uma maioria marginalizada e desvalorizada. Nós, psicanalistas, conhecemos e nos vinculamos a essas pessoas porque muito frequentemente desempenham tarefas domésticas em nossos lares, consultórios ou sociedades. Vemos elas cotidianamente, mas é raro que as atendamos em consulta, salvo de maneira intencional, em experiências valiosas como as citadas, fora dos limites do consultório. Mas fazemos isso de maneira pontual, com frequência a expensas de nosso tempo e nossos honorários. Não nos consideramos parte de uma mesma coletividade e, portanto, não adaptamos nossos instrumentos de trabalho, a teoria e a técnica, a essas complexas estratificações.

No essencial, trabalhamos a maior parte de nossas horas como se vivêssemos em Londres, Paris ou São Francisco. Escrevemos e publicamos trabalhos com essa mesma marca. Interpretamos nessa mesma linha. Vivemos, como Julio Ramón Ribeyro, em Paris, mas indocumentados. Meu compatriota, colega, amigo e mentor Moisés Lemlij descreveu isso assim:

A prática da psicanálise é – obviamente – influenciada pelo contexto sociocultural em que se dá sua aplicação concreta. Uma sociedade tão perturbada como a nossa, que exige a compreensão de seu lado obscuro, força os analistas a saírem do consultório, transformando-os em seres mistos, polivalentes, que devem ser versáteis. (2022, p. 154)6

Contudo, no mesmo texto acrescenta um pouco mais adiante que esse ponto de vista está sujeito a debate. Alguns pensam que nosso ofício deve se limitar ao trabalho clínico e à discussão de temas a ele vinculados, ao passo que outros pensam que temos uma responsabilidade a assumir ante a sociedade. Ambos os grupos, alega, esgrimem excelentes argumentos.

Embora, pelo já exposto, minha postura nessa discussão esteja clara, estou propondo mais outra volta de parafuso. Não se trata apenas de pôr nosso treinamento e arsenal teórico-clínico à disposição de sociedades cujas iníquas desigualdades e fragmentações rasgam o tecido social e violentam seus vínculos. André Green (2004) afirmava que o analista não analisa o texto: é o texto – literário – que nos analisa. Do mesmo modo, com a mesma dinâmica, a sociedade em que vivemos nos exige um árduo, contínuo e complexo trabalho de descolonização mental. Isso, é claro, sem jogar o bebê junto com a água do banho. Para ser mais preciso, cito o escritor espanhol Javier Cercas, respondendo por Skype a uma pergunta da combativa escritora peruana Gabriela Wiener: “Os malvados espanhóis que conquistaram a América são os seus antepassados, não os meus”.

Com efeito, somos nós, os latino-americanos, que descendemos tanto de Cortés quanto de Pizarro, tanto de Montezuma quanto de Atahualpa. Quando falo de descolonizar nossa mente, refiro-me ao fato de que a responsabilidade é nossa. O desafio de construir uma psicanálise crioula (Bruce, 2015), em que sejamos capazes de emular o manifesto antropofágico da vanguarda brasileira, é nosso. Aprender com os grandes mestres da psicanálise, sem deixar de lado a urgência de afinar nosso instrumento em função das notas que ressoam ou chiam nas ruas de nossas cidades. Assisti a demasiados congressos em nossa região em que, em vez de me sentir em Córdoba ou na Cidade do México ao escutar os trabalhos, amiúde muito bem construídos, sentia-me em Montpellier ou em Londres. O mesmo ocorre quando lemos as – escassas – publicações de colegas de nossa região em revistas internacionais: é impossível saber se provêm da Argentina, do Brasil ou dos Estados Unidos, ou talvez da França. Não tenho a chave para sair dessa esparrela. São muitas as minhas inquietações, incertezas e vontades de abrir essa conversa entre todos nós. Finalizo essa parte de minha apresentação propondo que, embora tenha me baseado na experiência latino-americana, esse debate bem poderia se estender aos colegas e sociedades de todas as regiões da ipa, cada qual com sua história e peculiaridades.

Parte 2

Wilhelm Reich, talvez um dos proscritos mais geniais e controvertidos entre os pioneiros de nossa disciplina – foi expulso do Partido Comunista por ser psicanalista e da IPA por ser comunista (Rycroft, 1973) –, afirmava que os psicanalistas, quando apresentavam seus casos em congressos como este, costumavam recorrer a exemplos clínicos de personagens bem-sucedidos das elites. Assim, para ilustrar a sublimação da pulsão de morte, apresentavam o caso de um neurocirurgião brilhante. Para exemplificar alguma derivação da pulsão anal, nada melhor do que a história de um paciente que resultava ser um artista extremamente famoso ou talentoso. Mas nunca se tratava de um açougueiro ou um carroceiro, respectivamente.7 Levarei em conta sua advertência para os materiais que vou lhes apresentar agora.

Vou tentar ilustrar esse ponto com um caso que me coube supervisionar em um congresso e com um exemplo clínico de minha prática.

Faz alguns anos, a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS), no Brasil, me convidou para dar uma conferência em seu congresso anual na bela cidade de Gramado. Escolhi o tema do racismo. Aproximadamente metade da população do grande vizinho que não pertence à Ñamérica (em português não existe a letra ñ) pertence à etnia que nossos amigos denominam pretos, negros ou mulatos (afrodescendentes). Ao observar desde o estrado o lotado salão de conferências (era a plenária de encerramento do congresso), não vi nenhum e comentei esse fato, incluindo essa percepção não apagada na minha intervenção.

Quando chegou o momento das perguntas, Cláudio Eizirik recordou que, 50 anos antes, Jean-Paul Sartre viera de visita ao Rio de Janeiro. Na conferência abarrotada de gente que Sartre deu, a primeira coisa que disse, nos contou Cláudio, foi: “E onde diabos estão os negros?”. Meio século depois, a história se repete, como tragédia, mas não como farsa.

Não devemos nos desesperar. Alguns anos depois, a APRS voltou a me honrar com um convite. O motivo desse convite era a graduação do primeiro psiquiatra afrodescendente da região, Lucas Oliveira Mendes. Pediam que eu supervisionasse um material clínico de dois pacientes afrodescendentes, um dos quais era psicótico. O material faz parte do trabalho de Lucas intitulado A identidade afrodescendente no contexto analítico: estudo de dois casos clínicos.

A sessão transcorre no quarto de um hospital. O psiquiatra está acompanhado de um enfermeiro negro e de uma enfermeira branca, pois o paciente apresenta sinais de grande agitação psicomotora. Em algum momento do intercâmbio, o paciente olha para Lucas com essa desconfiança paranoide que todos conhecemos e lhe diz com deboche teatral: “Pode devolver o jaleco para a doutora. Vocês não precisam mais fazer esta cena ridícula de vocês para me enganar. Eu já entendi tudo. Você pode ir lá para o seu lugar com seu amiguinho” (referindo-se ao outro técnico da enfermaria).

Como diriam os políticos, o paciente enuncia “sua” verdade. Mas, diferentemente deles, o paciente, que Lucas chama de Exu, não mente. Pelo contrário, enuncia uma potente verdade social: como é que um psicoterapeuta negro vai atendê-lo? É interessante observar que a paciente do outro caso apresentado por Lucas, a quem dá o nome Orixá de Nanã, representa a posição oposta: só confia em Lucas precisamente porque é negro. Com fineza, nosso colega desmonta ambas as atitudes transferenciais, sem por isso desconhecer o contexto psicossocial de onde elas emergem, impregnado de significados racistas.

Durante boa parte de nossa história como psicanalistas, funcionamos como se essa situação não existisse no âmbito privado de nossos consultórios. Éramos capazes de reconhecer a existência do problema, mas não de ver que éramos parte dele. A mesma situação que evoquei no caso do Brasil se apresenta no Peru e, sem dúvida, na maioria das – senão em todas as – nossas instituições psicanalíticas latino-americanas. Talvez também no resto do mundo. Entre a alucinação negativa e a negação, aparentamos existir à margem da herança colonial.

Para tanto, nos resguardamos nos recintos amuralhados de nossos consultórios, institutos e sociedades. Nossas armas de proteção foram os próprios conceitos com que tratamos nossos pacientes, sem perceber que, por mais que pretendêssemos ignorar sua existência, o racismo e o classismo sempre estavam presentes. É paradoxal – e seguramente não é casual – que seja no meio dessa atroz pandemia e do subsequente confinamento que estejamos refletindo sobre esses confins, se me permitem a aliteração, nos quais nos sentíamos tão seguros. Embora a pandemia tenha perdido virulência, os fantasmas continuaram erodindo a solidez das muralhas.

O exemplo clínico é o de Marco, que entrou em contato comigo quando era um jovem de 28 anos, proveniente de um dos distritos mais pobres e violentos de meu país, na periferia de uma cidade do interior. O nome do lugar era algo como El Milagro, um desses eufemismos cruéis para encobrir a desesperança da sobrevivência em locais desprovidos de serviços públicos elementares (água, esgoto, energia elétrica, segurança, conectividade etc.), ao mesmo tempo que o nome – La Victoria, El Porvenir... – funciona como um significante da negação envolta em uma ironia involuntária e cruel. Marco passava longas horas num transporte interestadual para chegar a Lima e ao bairro privilegiado de meu consultório.

Graças a um talento e uma persistência admiráveis, Marco conseguiu não só sair daquele lugar – assentamentos humanos é o nome pelo qual são conhecidos no Peru, sinônimo das villas miseria, favelas ou callampas de outros países da região –, mas também fazer um mestrado em uma universidade prestigiosa da capital. Hoje trabalha num organismo internacional, mas o sucesso e a ascensão social concomitante não apagaram as cicatrizes de uma infância transcorrida em um mundo de carências e violência física e moral inconcebíveis – ao que convém acrescentar sua aparência étnica mestiça, num mundo dominado pelas elites brancas.

Embora seu futuro profissional seja auspicioso – foi convidado a ocupar altos cargos públicos em mais de uma ocasião –, isso não foi suficiente para que se despojasse de um rancor tenaz a respeito de seu lugar de origem e de seus habitantes, bem como de uma desconfiança insidiosa e pertinaz com relação às pessoas com que costuma interagir agora. Uma das coisas que o revoltam é quando algum personagem famoso, pertencente aos setores privilegiados, alega em público ter tido uma infância difícil: “Pretendem arrebatar de nós até a marginalidade”, me disse. Trabalhamos e avançamos muito nesse sentido, mas às vezes me pergunto se não topamos com o rochedo, com esse resto irrepresentável a que nenhuma interpretação, nenhum processo de vinculação transferencial, tem acesso.

Quando me descreve as duríssimas condições de vida que continuam imperando em El Milagro (sua casa ficava ao lado de um aterro que até hoje faz as vezes de campo de futebol, lixão e cemitério), não há dúvida de que Marco goza. A propósito de alguma das descrições apocalípticas das maneiras de agir e se expressar desses personagens primitivos e vulgares – de um de seus grupos de WhatsApp participam colegas de escola que estão presos -, eu quis colocar à prova a hipótese antes mencionada do irrepresentável. Fiz-lhe a seguinte pergunta: “Se você tivesse o poder mágico de arrumar El Milagro e transformá-lo em um lugar civilizado, povoado de pessoas cultas e respeitosas da lei e dos direitos alheios, você o faria?”.

Marco não hesitou nem por um instante. Soltou uma gargalhada e me respondeu: “Nunca na vida, doutor!”. Se fizesse algo assim, parecia me dizer, com os olhos brilhando, perderia todo o prazer de relatar, assim como o poder de exibir seu triunfo e manifestar a imensa superioridade que lhe conferia. Não me oculta que, para ele, fazer análise comigo é uma busca de saúde mental e de bem-estar, mas também faz parte desse pacote de conquistas que o afastam do submundo. Uma de suas frases recorrentes é: “Os pobres são maus, doutor”. Creio que também tem consciência do privilégio que me concede de interagir com ele. Tudo o que nos separa – etnia, classe social, posição socioeconômica – é precisamente aquilo que pode nos permitir recuperar o espírito aventureiro, explorador, criativo da psicanálise que Freud nos legou com a tarefa explícita de desenvolvê-la e, dessa maneira, refundá-la. Desde que, como nos convida Baudelaire, façamos a viagem passando pelo ignoto até chegar ao novo. Até quando? A resposta quem deu foi Florentino Ariza, o personagem de O amor nos tempos do cólera (1985), de García Márquez. Ao ser indagado até quando podemos continuar neste ir e vir do caralho, respondeu: a vida toda.

1O autor detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do 53º Congresso Internacional de Psicanálise, da Associação Psicanalítica Internacional (ipa), sob o título Mente na linha de fogo, a ser realizado em Cartagena, Colômbia, de 26 a 29 de julho de 2023, com registro disponível no site www.ipa.world/cartagena.

3Em Cusco, a antiga capital do Império Inca, são chamados de bricheros aqueles que conseguem se juntar maritalmente a um desses estrangeiros dos países ricos. Curiosa volta do parafuso: os descendentes dos incas agora andam à caça dos descendentes dos conquistadores.

4Que, por sua vez, é um gênero literário latino-americano. Escritores como Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa ou Junot Díaz lhe dedicaram romances memoráveis. Escrevi um artigo a esse respeito na revista Penser/Rêver, que era dirigida por Michel Gribinski (Bruce, 2012).

5NT: Calibán, anagrama de Canibal, nome inspirado em personagem da tragédia de Shakespeare A tempestade, era um selvagem incapaz de falar corretamente a língua “oficial”

6O texto em questão foi publicado originalmente em inglês, em 1992, no boletim informativo da IPA International Psychoanalysis. Acaba de ser publicada uma coletânea de textos de Lemlij em inglês, de onde foi tirada a citação.

7Em muitos países latino-americanos, os carroceiros são pessoas que percorrem os bairros, em particular os mais abastados (onde costumam se encontrar as sedes das instituições psicanalíticas), remexendo nos sacos de lixo a fim de selecionar objetos de plástico, metal, recipientes diversos etc., e vendê-los por algumas moedas a empresas especializadas em reciclagem industrial.

Tradução de Claudia Berliner

Referências

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Recebido: 29 de Setembro de 2022; Aceito: 06 de Outubro de 2022

Jorge Bruce jbrucex6@hotmail.com

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