Um jogo de espelhos
Quando Maíra me convidou para escrever uma resenha sobre seu livro A mulher em segundo lugar, fiquei sabendo que foi um projeto de pandemia. Em meio à tragédia, não deixa de ser uma maravilha ter recursos para transformar um cotidiano árido e angustiante numa aventura apaixonante. E, na medida em que a autora conversa com o leitor e compartilha com ele o passo a passo do seu processo de escrita, imagino que tenha sido também uma maneira simbólica de sair do isolamento das quatro paredes da casa.
Eu já sabia que Maíra era uma leitora competente, mas gostar de ler nem sempre implica saber escrever. O livro que tenho em mãos é uma grata surpresa, pois seu texto parece também o de alguém que sempre escreveu. Isso porque ela consegue fazer uma trança bem-sucedida entre vários planos criativos: a vida e a obra da pintora Berthe Morisot, os pontos de identificação com a sua própria, e as questões que pautam até hoje as reivindicações dessa “minoria” composta por nós, mulheres. O livro nos toca porque nos vemos em Maíra, que se vê em Berthe, num jogo de espelhos em que vidas femininas se refletem e se iluminam reciprocamente.
A mulher em segundo lugar é um livro despretensioso, e talvez por isso mesmo certeiro na competência para atrair e manter a atenção do leitor. Pelo menos a minha, já que, como a autora, me interesso pela subjetividade das pessoas. Pois Maíra deixa claro que não pretende fazer mais uma biografia, e sim tentar imaginar, com base nas muitas leituras que fez, o universo subjetivo dessa mulher. O que a motiva é conhecer a pessoa. É entender como, apesar de todos os obstáculos impostos às mulheres, ainda mais na época em que viveu, Berthe conseguiu a proeza de ser uma pintora profissional reconhecida por seus pares, e também esposa e mãe apaixonada por sua filha Julie – tudo isso sem confrontar nem romper com as convenções da época.
É aqui que vemos com clareza o ponto de identificação entre Maíra, Berthe e tantas de nós: a capacidade de tolerar o conflito entre a profissional, a mãe, a esposa e a pessoa, sem eliminar nenhum dos polos em tensão. Vemos também o que significa descobrir que à mulher estava destinado o papel de coadjuvante na história do marido. Até pouco tempo atrás, quando uma mulher tentava enfrentar os obstáculos para desenvolver plenamente o seu potencial, a própria psicanálise – a nosografia psicanalítica elaborada por homens – a “xingava” de histérica...
Integrando o movimento impressionista, Berthe é considerada a “primeira pintora profissional, respeitada por seus colegas e pelo público, ... e depois dela muitas outras mulheres começaram a se expressar artisticamente” (p. 42). Como será que encontrou as brechas para produzir numa vida tão limitada e cerceada pelo machismo, com o qual as próprias mulheres se identificam e naturalizam?
Confinada durante a pandemia, Maíra se pergunta como seria ter que viver eternamente confinada dentro dos limites do lar. Berthe conseguiu montar um ateliê na casa dos pais e depois na própria. E encontrou os temas para a sua pintura no próprio cotidiano de uma mulher: a casa, os filhos, as mulheres em suas ocupações diárias. Nem pensar em pintar uma paisagem ao ar livre, e muito menos cenas da cidade na qual morava!
À medida que fui conhecendo um pouco mais sobre Berthe e seu contexto, a proximidade entre nós foi aumentando. ... Se amanhã eu conhecesse Berthe Morisot em pessoa, por algum truque narrativo nos sentaríamos no jardim de sua casa, com uma xícara de chá nas mãos, e teríamos muita intimidade. (p. 31)
Maíra se pergunta se Berthe pintava quando a filha dormia e quando o almoço já havia sido servido, ou se se dava ao direito de trabalhar no “horário comercial”, como seus pares que tinham o dia todo para produzir.
O fato é que Berthe resistiu a se casar o quanto pôde para não perder sua liberdade. “Até seus 32 anos, Berthe permaneceu solteira. ... Em 1873 escreveu: ... Estou vendo claramente que minha situação é insustentável de todos os pontos de vista” (p. 55). Ao perceber que não poderia escapar do casamento, escolheu o irmão de Edouard Manet, Eugène Manet, quando se convenceu de que ele reconhecia seu talento e apoiaria seu trabalho. “Berthe encontrou em seu marido uma pessoa que, justamente por ser discreto e avesso aos holofotes da fama, permitia que ela tivesse luz própria e continuasse brilhando” (p. 56).
Há um capítulo interessante dedicado à importância da amizade feminina. Berthe menciona duas grandes amigas, ambas artistas e da mesma classe social – sujeitas, portanto, às mesmas restrições. Uma é Mary Cassatt, pintora americana que, ao contrário dela, achava – e isso em 1870-1880! – “que as mulheres não precisam ser casadas ou mães para se sentirem realizadas” (p. 27). A outra é “Marcello”, na verdade Adèle DAffry. “Mulher poderosa, ousou ser artista, sozinha, e aventurou-se em um terreno masculino por excelência: a escultura” (p. 30).
Maíra apresenta uma curiosa contribuição da psicanálise à compreensão da subjetividade dessas mulheres, que apesar de tudo conseguiam (conseguem?) um lugar ao sol: o conceito de grandiosidade adaptativa, proposto por Peter Wolson em 1995. De acordo com esse autor, o/a artista tem uma convicção inabalável da importância daquilo que tem a dizer, e por isso enfrenta não só seus medos, mas também as demais dificuldades práticas desse ofício. A grandiosidade adaptativa é uma megalomania positiva. O contraponto, segundo Wolson, é a megalomania não adaptativa – aquela que cria os delírios de grandeza que pululavam nos hospícios de antigamente. Ou seja, Berthe só podia ser louca, mas, por sorte, uma louca que deu certo! Há certamente outras maneiras de abordar a urgência em nos produzir através daquilo que produzimos, a urgência em nos tornar sujeitos naquilo em que somos assujeitados/as.
Tudo isso me fez pensar em Melanie Klein. Como será que se sentia ao perceber que estava produzindo ideias tão revolucionárias? E como se sentia quando tinha que defendê-las perante uma plateia majoritariamente masculina e de médicos? Será que tinha medo de não conquistar o respeito de seus pares por ser mulher, jovem e não médica? E será que sua paixão pela psicanálise lhe custou o preço de dificuldades com a maternidade e com o casamento?
Uma carta de Berthe à irmã mostra a lucidez da artista com relação ao lugar da mulher: “Pena que Bibi [uma sobrinha] não seja menino ... pela simples razão de que todos, homens e mulheres, amamos o sexo masculino” (p. 31). Lendo isso, não pude deixar de me colocar algumas questões incômodas: isso vale também para nós, psicanalistas? Homens e mulheres, continuamos privilegiando e respeitando mais os colegas homens? Nossas transferências em relação ao “suposto saber” ainda se dá mais facilmente com eles? Homens e mulheres, esperamos que as mulheres sejam mais “flexíveis” em seus honorários, enquanto achamos natural pagar mais para um analista homem? Nós, mulheres, estudamos e escrevemos quando “sobra tempo”? Apesar de sermos tão numerosas, continuamos em segundo lugar?