Um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes.
VALTER HUGO MÃE, A desumanização
Os mitos têm uma relação muito próxima com o inconsciente, na medida em que manifestam uma lógica circular, em diferentes matizes, trazendo em seu bojo a dialética do que é universal e, também, singular. Acreditamos que essas características da linguagem mítica, que se correlacionam com a função de revelar paradoxos e terrores humanos, contribuíram significativamente para que Freud recorresse a ela enquanto modelo para descrever fenômenos mentais, como apresenta Migliavacca:
Costuma-se dizer – e com razão – que Freud é o pai da psicanálise. Um pai não gera a vida sozinho, é sempre acompanhado de uma mãe. Com todos os interlocutores que teve em sua vida, no entanto, Freud engendrou a psicanálise em um corpo materno original, a tragédia grega. Ele intuitivamente buscou em seu cerne, e naquela que é perfeita, um fruto único que lhe serviu para dar à humanidade e à cultura contemporânea uma nova visão do homem e do psiquismo, o próprio homem psíquico no homem trágico. Nesse sentido, a mãe da psicanálise é a tragédia grega. (2004, p. 853)
Os mitos, par fértil da psicanálise, têm várias versões e muitas variações. Todas essas narrativas, com ênfases diversas, mobilizaram Freud a utilizar os mitos gregos como arquétipos para constituir, entre outras, a teoria do narcisismo e do complexo de Édipo sob perspectivas indeléveis. No narcisismo (Freud, 1914/2010), além de mostrá-lo como etapa importante do desenvolvimento psicossexual e como configuração patológica, também foi possível compreender a dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte (Falcão, 2014). Assim como o complexo de Édipo (Freud, 1924/2011), o narcisismo ocupa um lugar central na trama da constituição da subjetividade e fundamenta a sexualidade genital.
Ambos os conceitos freudianos reeditam, dos mitos, a presença irredutível do objeto na constituição do psiquismo, o que nos convoca, com as contribuições de Bion, a observar suas qualidades psíquicas, mediante a reverie na construção dos vínculos e a capacidade de pensar (Houzel, 1991/1999).
Nas Metamorfoses, de Ovídio, Narciso era filho da ninfa Liríope, que fora violada pelo deus fluvial Cefiso. A criança nasceu com uma beleza estonteante, e os pais ficaram assustados com tal atributo, pois poderia ser encarado como uma afronta aos deuses. A fim de saber se o filho viveria muito tempo, Liríope resolveu consultar um oráculo, Tirésias, que lhe respondeu que a vida dele estaria preservada “se ele jamais se conhece[sse]”. Na adolescência, o jovem Narciso, “naquela esbelta forma, era tão frio e orgulhoso, que não houve jovem ou donzela que lhe tocasse o coração”. A trama se desenrola até o rapaz se apaixonar, perdidamente, pela sua imagem refletida em um lago, e morrer ao tentar alcançá-la. Para a bela flor que nasce no local de sua morte é dado o nome de narciso (Ubinha & Cassorla, 2003, p. 70).
Perguntamos: qual é a condição emocional de uma mulher ao gerar um filho fruto de um estupro? Que investimento libidinal essa mãe poderia fazer na criança? A consulta ao oráculo sobre a vida e a morte do filho pode indicar sua ambivalência afetiva em relação a ele? A crença de afronta aos deuses estava relacionada a algum tipo de culpa? O que poderia significar o filho se conhecer? Conhecer sua história para se autoconhecer? Qual é a relação desses fatos com o isolamento de Narciso, seu desprezo a todos os pretendentes e seu suicídio?
Em Édipo rei, tragédia grega escrita por Sófocles, Laio, rei de Tebas, tinha sido avisado pelo oráculo sobre seu destino trágico: ser morto pelo próprio filho. Com o nascimento de seu primogênito com Jocasta, Laio pede que um dos servos abandone o bebê num local deserto, colocando-lhe pregos nos pés e amarrando-o em uma árvore para que morra. Entretanto, ele foi encontrado por um pastor e acabou sobrevivendo, sendo adotado por Pólibo, rei de Corinto, que o considerou seu próprio filho. Já adulto, Édipo decide abandonar Corinto e ir a Tebas consultar o oráculo, que lhe fala sobre sua maldição: matar o pai e se casar com a mãe. Desconsolado com a revelação, segue em direção à cidade e acaba matando Laio, em uma discussão que tiveram numa encruzilhada, sem saber de quem se tratava. Em seguida, encontra a Esfinge na porta da cidade de Tebas, que aterrorizava grande parte do povo com seus enigmas, devorando quem não os decifrasse. No entanto, Édipo responde à pergunta, a Esfinge se mata, e ele é eleito o novo rei de Tebas. Recebe a mão da rainha Jocasta, agora viúva. Os dois se casam e têm quatro filhos. Mais tarde, uma peste assola Tebas, e o casal resolve consultar um oráculo, que revela serem eles mãe e filho. Ela se suicida, e Édipo se pune, furando os próprios olhos (Jabouille, 1980).
Interrogamos: certezas inquestionáveis, filhos indesejados, maus-tratos e abandono de vulnerável, tentativa de filicídio, parricídio, incesto, suicídio e automutilação, encenados nesse mito, podem nos indicar, além dos atos em si, desejos e fantasias inconscientes, regidos pela pulsão de morte, reveladores de conluio, crueldade e perversidade?
As tragédias evocadas nesses mitos guardam correlação íntima com as tramas familiares na contemporaneidade. Nessa perspectiva, a confrontação do analista, dentro e fora da sala de análise, com atos autoritários, intolerantes, abusivos, negligentes e violentos contra crianças, bem como com a permissividade, a superproteção e a precocidade, demanda que o campo de investigação das relações entre pais e filhos esteja alicerçado por estudos psicanalíticos que ampliem os aportes teóricos e técnicos para uma melhor observação e manejo dessas manifestações, que se apresentam de forma velada e confusa, caracterizada pelo não dito, não visto, não ouvido, não pensado.
Campos de investigação na trama familiar
Nessas condições dramáticas, o analista se depara, na clínica psicanalítica da infância, com o sofrimento psíquico em uma zona comum intrafamiliar, que transita entre o desamparo e a onipotência, fazendo com que os pais reeditem suas angústias primitivas e, consequentemente, não desenvolvam ou percam a capacidade de exercer a função materna e paterna, frente às necessidades específicas do filho. Isso nos conduz a lançar feixes de luz no entrelaçamento entre as ações do trauma (Bokanowski, 2005; Roussillon, 2012) e o caráter híbrido das fantasias inconscientes6 geradoras de crenças subjetivas (Britton, 1994/2003).
Bokanowski (2005), a partir do trabalho de Freud e Ferenczi sobre o trauma, reflete sobre como o psiquismo opera a ação do traumático, colaborando com a separação conceitual de três termos: traumatismo, traumático e trauma, que correspondem muito precisamente às três “viradas” da teoria freudiana (1895-1897, 1920 e 1938), em momentos transformadores da metapsicologia.
A palavra traumatismo correlaciona a representação do acontecimento traumático à estruturação das fantasias originárias: de sedução, de castração e da cena primária, sendo, portanto, “o núcleo central organizador dos objetos internos, das fantasias inconscientes e do processo de simbolização” (Bokanowski, 2005, p. 30). Entretanto, contém igualmente uma dimensão desorganizadora, na medida em que o reencontro entre a fantasia inconsciente e a realidade externa (cena traumática) pode ser brutal.
Roussillon (2012) também contribui com uma diferenciação terminológica sobre o trauma, usando o conceito de traumatismo secundário para se referir à conjuntura traumática advinda do modelo da neurose: “A situação subjetiva foi vivida, representada e depois secundariamente recalcada por causa do conflito” (p. 272).
Seguindo os termos propostos por Bokanowski (2005), o traumático encontra-se imerso no campo entre as “neuroses de guerra”, as patologias consecutivas e as catástrofes sociais ou naturais, ocorridas na trajetória de vida do sujeito ou de seus descendentes. Há uma luta contra o “terror” que se repete, a respeito do qual o psiquismo guarda sempre um vestígio não elaborado.
Já o trauma relaciona-se a uma lógica mais arcaica, caracterizada pela não inscrição psíquica da situação, que compromete os investimentos narcísicos e, por consequência, a constituição do ego, pois o objeto não responde de maneira adequada às necessidades do sujeito, e inclusive as desqualifica afetivamente. Assim, a criança não introjeta um bom objeto e se vê aprisionada a um estado aterrorizante com elementos persecutórios. Os mecanismos de recalcamento entram em colapso, ocorrendo projeções e evacuações para o exterior de maneira repetitiva e, portanto, traumática (Bokanowski, 2005).
Roussillon (2012), através da noção de traumatismo primário, discute essa dinâmica precoce que se instala com o fracasso das primeiras relações objetais. Acontece, portanto, a mobilização de um cortejo de mecanismos de defesa primitivos da ordem do irrepresentado, sendo o principal deles a clivagem, e uma possível compressão da subjetividade. Em um segundo momento, essa clivagem no eu traz o retorno do traumatismo primário, que não pode ser posto em palavras (Roussillon, 2019).
Observando os fenômenos clínicos interligados à dimensão do trauma, apontados por Bokanowski e Roussillon, também destacamos que as fantasias inconscientes, que dão vitalidade à ordem somatopsíquica, se encontram, nessas condições, silenciadas por elementos não representados, emergindo crenças subjetivas (Britton, 1994/2003). As crenças conferem status de realidade, suscitando emoções e percepções que promovem distorções do pensamento transformado em atos. Britton observa:
Crença é como uma ligação a um objeto, uma ligação a uma ideia ou a uma fantasia, e uma ligação terrivelmente poderosa e muito difícil de ser rompida, de ser abandonada. Porque há um sentimento de perda, um grande sentimento de perda. (Associação dos Membros Filiados, 2014, p. 240)
Na sala de análise, para além dos conteúdos narrados pela família, as dinâmicas relacionais primitivas entre pais e filhos, decorrentes de fraturas na subjetivação aliadas a traumas e crenças subjetivas, são observadas em atos expressos no brincar, nos movimentos corporais, na entonação de voz, nos silêncios, nas alterações de humor, nos isolamentos, entre outros. Tais atos, enquanto insurgências inconscientes, têm relação com a precariedade na simbolização primária, e apresentam-se em forma de descargas, que revelam a incapacidade para a atividade do pensamento.
Afirmo desde 1983 (retomado em 1991) que a simbolização e os processos de transformação psíquica que ela pressupõe repousam sobre a representação-coisa de um objeto meio maleável, derivado do encontro com um ambiente materno suficientemente adaptável e transformável para se ajustar às necessidades psíquicas do recém-nascido. Quando o ambiente primeiro se mostra rígido, pouco adaptável, tendendo a submeter o bebê a seus imperativos próprios em vez de se adaptar a suas necessidades, portanto, quando a relação primeira tende a inverter os dados necessários, a simbolização primária fica dificultada. (Roussillon, 2015, p. 44)
O trabalho clínico de calibragem
Há níveis de indiferenciação entre as famílias, que vão desde estados mais simbióticos, que afetam o sentimento de identidade de si, até questões ligadas à fantasia edipiana e sexual (Berger, 1989).
Anne Alvarez (2012) investiga algumas proposições técnicas sobre os diferentes manejos analíticos para os diversos estados de mente, o que ela denomina de três níveis do trabalho analítico. O primeiro nível seria explicativo, em referência ao método interpretativo de Freud e Klein. O segundo seria descritivo, correspondente à continência de Bion e à sustentação de Winnicott. E há um terceiro nível, o intensificado, mais primitivo, tanto em termos de quadros psicopatológicos quanto de técnica. Esse nível corresponde a uma intervenção intensificada, com uma postura mais ativa do analista, em decorrência de uma maior urgência emocional.
Compreendemos que, como na análise individual, o manejo da relação com o grupo familiar, desde as entrevistas com os pais, passa por uma avaliação de calibragem, para que se compreenda o nível de trabalho com o qual o analista está lidando. As famílias que necessitam de um trabalho intensificado apresentam estados simbióticos, que envolvem questões narcísicas e identitárias dos pais e dos filhos, em que as cenas da vida familiar são regidas por atos, em torno do campo de suas crenças subjetivas e traumas, muito mais que por percepções e experiências emocionais.
Após o período de entrevistas, a proposta de um projeto analítico, antes da sessão com a criança que motivou a procura pela análise, pode incluir o trabalho de intervenção conjunta pais-filhos (Mélega & Gimenez, 2008). Esta é uma aliada técnica importante para esse nível de trabalho, na medida em que considera o sofrimento, dentro de um espaço de continência lúdica, com vias ao desenvolvimento da capacidade narrativa e de comunicação intragrupal, evidenciando os paradoxos atuais da família, na busca de possíveis e novas representações, para que, posteriormente, possa-se indicar a análise individual para um ou mais membros da família.
Uma ferramenta importante nesse processo é considerar o que se experimenta, paracontratransferencialmente,7 via identificação projetiva (Quagliatto et al., 2017). O analista implicado se afetará com o que está sendo projetado nele pela família, reverberando-o em seu repertório onírico.
Quando a sirene toca
O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro.
MANOEL DE BARROS, Poesia completa
A função de uma sirene é sinalizar um perigo e até mesmo uma catástrofe. Foi após alertas contínuos de extrema preocupação com a criança, por parte de pessoas próximas aos pais, que eles procuraram análise para a filha, de 4 anos e meio. O primeiro contato telefônico indicava uma situação de emergência, pelo comportamento agressivo da criança. No entanto, quando a analista se dispôs a recebê-los, pediram que a entrevista fosse adiada por algumas semanas. A urgência é prorrogada, e a analista fica com a pré-ocupação dos sinais de perigo, indicando que, transferencialmente, ocuparia um lugar similar ao entorno familiar, de ser terceiriza-dor da angústia.
Na entrevista, o casal relata que teve grande dificuldade para engravidar e que a filha era vista como um milagre. Quando bebê, Anna era muito agitada durante a amamentação e o sono. No período pandêmico, para não ser contaminada pela covid-19, os pais deixaram-na, por quase dois anos, aos cuidados de pessoas da família, em um local considerado mais seguro por eles, visitando-a ocasionalmente.
No retorno de Anna para casa, o que parecia uma agitação transformou-se em agressões físicas para com os pais e para consigo mesma: automutilações, pânico do escuro, terrores noturnos, gritos e choros alarmantes diante de situações de frustração. A sua condição de brincar estava, exclusiva e repetidamente, ligada a conteúdos da internet de personagens-monstros, que emitiam sons ensurdecedores com suas sirenes, para perseguirem ou atacarem os humanos.
Os pais não faziam qualquer correlação entre a ausência deles, durante um longo período da vida da filha pequena, e as possíveis angústias de aniquilamento e persecutoriedade, em face das possíveis vivências de desamparo e abandono. A dor dessa situação abrupta e traumática de separação familiar não tocou o alarme da percepção desse casal, que se apresentava “surdo”, em decorrência das próprias perdas e terrores, revividas na pandemia.
Aspectos fantasmáticos filicidas, de que se a filha ficasse por perto estaria em perigo, culminaram em uma construção de crenças subjetivas de proteção idealizada, tanto do mundo pandêmico quanto da situação emocional dos pais. O que antes era tomado como um milagre tornava-se como um inferno na mente da criança. Sua destruição pujante e ruidosa comunicava seu desamparo, ao tentar resolver por si mesma seu terror, indicando uma pseudoindependência e, paradoxalmente, revelando o seu desespero para ser ouvida e vista, como uma memória de ausência.
A sirene ensurdecedora, pela urgência de cuidados e pelos ataques verbais e não verbais emitidos pela criança e seus pais, na experiência emocional com a analista, foi compreendida com a função de deixá-la atordoada, impotente e impossibilitada de ouvir, conter, discriminar e pensar sobre o campo comum de sofrimento psíquico familiar. Os comportamentos de Anna motivavam os pais a sentir muito ódio, fazendo-os devolver de modo bruto e retaliador o quanto se sentiam destruídos e impotentes, gerando um ciclo vicioso de violência, frente aos aspectos não pensados, não simbolizados e não representados.
O retorno do clivado (Roussillon, 2019) revela o campo comum de intersecção do trauma, em que ocorre a não introjeção de um objeto continente e a crença idealizada de proteção, algo observado nessa família, desvelando aquilo que não se pôde colocar em palavras devido a experiências agonísticas.
Na primeira sessão, Anna se senta e percebe barulhos dentro da sala (ruído do ar-condicionado) e fora (um prédio em construção e uma oficina mecânica em funcionamento). Ela questiona o que são esses sons, com a feição extremamente assustada. A analista, ao perceber o estado de terror da criança, começa a discriminar cada barulho, dizendo que iriam juntas entender e pensar sobre cada um deles.
Segundo Silva,
crianças em condições de vulnerabilidade e com privações muito precoces precisam viver na análise situações de estados ideais e de asseguramento potente, para depois conseguir lidar com os próprios impulsos destrutivos, ser menos impelidas a projetá-los, poder integrar aspectos bons e maus do próprio self e do objeto e vir a transformar sua destrutividade numa agressividade favorável à vida. (2017, p. 75)
A explicação concreta e descritiva da analista imperou, em virtude da percepção de falhas na simbolização primária, considerando que aspectos da sensorialidade a fazem expressar seu estado de terror. A analista, como meio maleável (Roussillon, 2019), transforma a concretude do horror em representações-coisa (construção, oficina mecânica, ar-condicionado) que proporcionem continência à sensação de invasão e desamparo.
Certo dia, Anna chega à análise sozinha e agitada, andando de um lado para o outro, sem olhar diretamente para a analista, o que leva esta a intuir que algo havia acontecido. Ao questioná-la, conta que os pais estavam discutindo no carro durante o caminho, pois a mãe possivelmente esqueceu de trancar a porta da casa e, por isso, um ladrão poderia invadi-la. A analista, percebendo a angústia da criança, tenta investigar se a hipótese do ladrão era de seus pais ou sua, e fica claro que a menina havia imaginado essa cena. Nessas condições, resgatamos as ideias de Roussillon (2015), baseadas no conceito de significantes formais de Anzieu (1987), de selecionar aspectos do material clínico que revelam a experiência de encontro com o objeto, que para essa criança, nesse momento, exprime a presença de algo que a aterroriza e invade. A partir desse significante formal, a analista pôde criar o trabalho de “roteirização”, narrando e compartilhando, de outra forma, a experiência emocional.
Inquieta, Anna fala incessantemente, e de modo desorganizado e detalhado, sobre todos os pertences valiosos que havia na casa: bonecos com sirene, aparelhos audiovisuais e automóvel. A analista, indo ao encontro de seu fluxo associativo, pergunta sobre o portão da casa, os muros e os equipamentos de segurança. A menina responde que viu o portão fechado após saírem, que os muros são altos e que na casa há alarme. Os recursos que podem proteger a casa são apontados pela analista com modulações de voz e expressões fisionômicas e corporais, como quem desenha no ar as palavras ditas: “O muro que contorna, o alarme que sinaliza, os vizinhos que observam... Como a sua mente, que agora pode também te proteger do medo, ao conseguir lembrar e pensar melhor como tudo aconteceu e como é sua casa”. A menina se senta na poltrona junto da analista e rapidamente se levanta, assustada, dizendo: “Aqui não é meu lugar”. A analista compreende, nessa aproximação, que a demonstração de afeto ainda é sentida como invasão.
Ao salvaguardar o amparo da “casa” – o significante formal dito pela criança –, que representa, projetivamente, o importante e afetivo local do qual ela foi retirada e que ela pode ter desejado invadir e roubar, diante das sensações de vazio e agonia, foi sendo roteirizada, com a reverie da analista, uma busca de representação dessa experiência emocional (Roussillon, 2015). Ao reconstruir a cena com os recursos de segurança da casa, contextualizando a experiência, o que antes era uma ameaça iminente à “casa mental” ganhou o início de um contorno, com a rememoração dos recursos protetivos em uma narrativa significante, para tentar ressignificar sua história de vínculos.
Transformando sons em melodia
É preciso afinar a escuta da crueldade da pulsão de morte para zelar da pulsão de vida.
AURORA ROMANO MÜSSALI
No centro da clínica psicanalítica contemporânea de crianças e no trabalho com estados mentais arcaicos, é indubitável incluir os pais para investigar a zona comum intrafamiliar, composta de traumas e crenças subjetivas, abarcando-se também uma acurada atenção à exposição da criança a possíveis perigos à sua integridade física e psíquica, como mortes, abandonos, sacrifícios, abusos, maus-tratos e outras manifestações violentas, que muitas vezes pertencem à ordem do silenciado e do brutal, assemelhando-se às narrativas míticas.
A partir da intuição do analista e da observação minuciosa do que se apresenta em atos, para além das palavras, pode-se conduzir a composição de um quadro em que a indiferenciação entre os membros da família faz com que um ciclo de repetição aconteça, inclusive podendo encobrir as manifestações de sofrimento da criança. Nesse sentido, o uso do modelo de um observador psicanalítico qualificado (Bick, 1964/2002) ocupa lugar de destaque no método, não mantendo o analista em uma atitude de “pura neutralidade”. Como pondera Caron, “o observador desempenha uma efetiva participação não verbalizada, não agente, mas vivenciada, ou seja, o observador inclui-se no processo acompanhado” (1995, p. 283).
Com o avanço dos estudos de situações de trauma precoce e quadros-limite, Alvarez (1985) propõe o desenvolvimento de uma neutralidade pensante, fornecida pelas emoções, pela sensibilidade e pelas percepções do analista. Também, a acuidade sensorial precisa estar em extrema afinação para discriminar quando o alarme interno toca, seja como indicador de perigos, seja como sinalizador de cuidados. Está em jogo uma comunicação inconsciente na sala de análise, como um som inaudível, que precisa ser captado pela intuição.
O vértice psicanalítico, para Bion, é o desconhecido, aquilo que ainda não se desenvolveu, o inconsciente (O). Mas ele pode desenvolver-se a ponto de ser captado pela intuição do analista. Este deve saber esperar até que uma intuição súbita dê coerência a uma massa de fenômenos aparentemente desconexos. O processo pelo qual a intuição reúne, em forma significativa, estes dados, antes dispersos, é a evolução, análoga ao fato selecionado de Poincaré. (Piccini, 1985/2016, p. 164)
O oráculo, nos mitos gregos de Édipo e Narciso, respondia àquele que o procurava como quem apresenta um destino traçado em forma de enigmas, mas essas respostas suscitavam um estado de confusão e antecipação terrorífica. Já o analista necessita comunicar o que percebe aos pais e à criança de uma forma continente, ou seja, em uma frequência sonora audível e suportável para a família, a cada momento do trabalho psicanalítico, além de levantar questões para o grupo na tentativa de ampliar possibilidades e novos destinos. Só assim se pode evitar a perpetuação de repetições inconscientes que culminem em situações dramáticas.
O analista capaz de se escutar e de escutar a criança e seu entorno, mantendo seu estado de presença viva nas sessões, pode encontrar, entre os escombros da mente, nos ruídos do trauma e na dor genuína, a possibilidade real de cuidado, captando notas soltas, com a esperança de formar algum tipo de melodia. Como poeticamente nos inspira Bion: “Algumas pessoas me asseguram, sabem ler partituras; quando dizem isso, querem dizer que podem ouvir os sons. Incrível, não é? Esse é o tipo de coisa com que temos que lidar – fatos incríveis” (1979/2017, p. 33).