Fronteiras
O constructo denominado fronteira refere-se à concepção imaginária de uma linha demarcatória, cuja dimensão pode ser finita e ao mesmo tempo infinita, na qual circulam os mais variados processos. Entre eles, destacamos os sociais, os psíquicos e os orgânicos. É no campo das metáforas e da ambivalência que se inscreve a ideia de fronteira, uma vez que predispõe a presença e a inseparabilidade entre fenômenos contíguos, mas opostos, como expansão e contenção, temporal e atemporal, estabilidade e oscilação, inter-relação e clausura, consciente e inconsciente, emocional e corporal.
O conceito de fronteira surge na psicanálise desde os primeiros estudos de Freud. Em “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1996c), o autor inicia a construção de um modelo do psiquismo embasado na geografia da mente, com seus limites e suas fronteiras. Nesse texto, Freud define e nomeia campos e atuações funcionais da mente, mas também conjumina o somático e o psíquico, suas relações e demandas. Para dar conta dessa construção, o psicanalista postula uma linha fronteiriça a que chama barreira de contato, cuja função será demarcar o limite entre o externo e o interno, mas também filtrar as excitações, garantindo a segurança do aparelho psíquico.
Moduladora por princípio, a barreira de contato trabalhará em uníssono com as para-excitações, graduando a quantidade de excitações provenientes do mundo externo. Contudo, Freud adverte que, se a excitação for superior à capacidade suportiva da para-excitação, ela poderá provocar uma ruptura no psiquismo, destruindo-o ou marcando-o de maneira traumática.
A noção de fronteira vai se ampliando à medida que o conhecimento do aparelho psíquico progride. Tanto a primeira como a segunda tópica trazem as marcas dessa evolução conceitual. Sejam fronteiras entre as pulsões, entre o somático e o psíquico, entre o interpsíquico e o intrapsíquico, ou entre as instâncias, para Freud nenhum limite seria nítido ou estaria restrito entre os lados que demarcam as fronteiras. Portanto, elas seriam porosas e portadoras de plasticidade, mas também de uma membrana delimitante, como Freud reforça em O ego e o id (1923/1996a), ao reconhecer a mobilidade das fronteiras entre consciente, pré-consciente e inconsciente, assim como entre os conteúdos do id e do ego. Ele esclarece:
Reconhecemos ... também que uma parte do ego pode ser Ics., indubitavelmente é Ics. E esse Ics. que pertence ao ego não é latente como o Pcs., pois se fosse não poderia ser ativado sem tornar-se Cs., e o processo de torná-lo consciente não encontraria tão grande dificuldade ... um estado de consciência é caracteristicamente muito transitório; uma ideia que é consciente agora não o é mais um momento depois, embora assim possa tornar-se novamente, em certas condições que são facilmente ocasionadas. (pp. 28-31)
As ideias de Freud sobre o tema se ampliam até os seus últimos trabalhos, sendo revividas e expandidas por Klein, Winnicott, Balint, Fairbairn, entre outros. Entretanto, é no campo clínico que a condição de mobilidade das fronteiras se converte em elemento fundamental para o desenrolar dos processos mentais e emocionais.
Entre os pioneiros dessa forma de ver a questão do limite/fronteira, estão Kernberg nos Estados Unidos, Fonagy na Inglaterra, e Green na França. No entanto, é por meio dos estudos metapsicológicos de André Green (1990) que a ideia de fronteira alcança o campo analítico com mais intensidade e clareza. O autor conceitua os quadros dissociativos como fronteiriços. Em sua escrita, põe em discussão a importância das transformações psíquicas entre analista e analisando e os limites da analisabilidade.
O autor defende que, nos quadros limítrofes, as zonas de elaboração interpsíquicas e intrapsíquicas – ou seja, os limites entre o eu e o objeto – estão borradas e confusas. Há uma desvitalização dos sentimentos e um esvaziamento psíquico. Esse desinvestimento vai deixar marcas das mais sutis às mais profundas, verdadeiros buracos nas relações objetais. Como diz Green, núcleos frios, onde prevalecem a sensação e a dor da mãe morta.
O psicanalista observa que a origem desses quadros está nas primeiras relações infantis, nas falhas de reverie, na descontinuidade da relação mãe-bebê e no terror do desamparo. Ele afirma:
A transformação na vida psíquica, no momento do luto súbito da mãe que desinveste brutalmente seu filho, é vivida como uma catástrofe. Por um lado, porque sem nenhum aviso prévio o amor foi repentinamente perdido. O trauma narcisista que esta mudança representa ... constitui uma desilusão antecipada e que provoca, além da perda do amor, uma perda de sentido, pois o bebê não dispõe de nenhuma explicação para dar conta do que aconteceu. (1988, p. 248)
É de algumas dessas situações psíquicas que tratarei neste trabalho. Analisarei alguns agentes de ruptura das fronteiras psíquicas na infância e as dificuldades desses analisandos no campo analítico. Além disso, cotejarei a importância da formação do psiquismo na infância, a violência transgeracional, a capacidade destrutiva da pulsão de morte e o uso de defesas psicossomáticas. No entanto, o foco central será dirigido ao processo de restauração do aparelho psíquico realizado pela dupla analítica, de acordo com o que nos oferece a psicanálise.
A infância: um estádio estruturante
As palavras criança e infância têm origem milenar.3 Embora esses vocábulos, desde a Antiguidade, se referissem ao ser humano no início de seu desenvolvimento, podemos dizer que até o século 15 não havia uma concepção definida do que é a infância e do papel da criança nela. Somente na Idade Moderna a criança começa a ser notada e cotejada, rompendo-se as fronteiras do obscurantismo. A partir daí, inaugura-se uma nova ordem de pesquisas e trabalhos sobre o pueril nas áreas da ciência, da filosofia, da pedagogia, da psicologia e da organização social. Mediante tantas descobertas científicas, a infância, período antes menosprezado, começa a ser encarada como estádio estruturante na vida futura do indivíduo e da própria humanidade (Ariès, 1973/2006).
Entretanto, é somente no início do século 20, com o advento da psicanálise, que Freud vem a desvendar os mistérios da vida psíquica infantil e da sua importância na vida adulta. Mediante uma gama de revelações sobre o funcionamento psíquico infantil, feitas por psicanalistas como Klein, Anna Freud, Winnicott, Bowlby, Segal, Mahler, Bick, Meltzer e Fraiberg, a atenção para com o desenvolvimento emocional da criança se amplia, envolvendo não somente o início de vida psíquica infantil, mas o entorno familiar e sua herança psíquica geracional. Autores como Lebovici (1988), Kancyper (1994), Eiguer (1995) e Kaës (1993/2001) começam a observar clinicamente a existência de trocas interativas precoces, conscientes e inconscientes, não apenas entre a mãe e o bebê, mas também entre os familiares e o bebê.
A partir desses achados, Kaës (1993/2001) distingue duas formas de transmissão psíquica geracional: a transmissão intersubjetiva, que aponta para afetos e relações objetais estruturantes e transformadores, sem com isso perderem suas particularidades e sua familiaridade; e a transmissão transpsíqui-ca, que não respeita os limites ou espaços subjetivos, com o império das exigências narcísicas familiares e o teor pulsional mortífero. Significativamente diferentes, a transmissão intersubjetiva traz em seu perfil o caráter criativo, enquanto a transmissão transpsíquica traz o caráter patologizante.
Anos mais tarde, Trachtenberg (2005/2013) refina as descobertas de Kaës e amplia as investigações referentes à maneira como os conteúdos seriam transferidos de um psiquismo ao outro, atravessando gerações e estruturando patologias. A pesquisadora aprofunda-se no tema e assegura que a destrutividade da herança transgeracional se alastra de forma inconsciente e invasiva. Tal qual um corpo estranho, penetra no psiquismo infantil, comprometendo a estrutura somatopsíquica da criança, gerando cisões importantes. A partir daí, emoções, pensamentos e relações vinculares se amalgamam em um escopo ambíguo, no qual o estranho e o familiar estão reunidos de modo contíguo. Como resultado dessa contaminação, a autora afirma que o ego infantil, ainda com pouca organização e em processo de integração, é atacado por algo familiar e brusco, insólito e opressor, um monstro sem rosto, o que nos reporta à surpreendente conjunção constante Unheimliche-Heimliche.
“O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”, afirma Freud (1919/1996b, p. 238). Partindo desse referencial, é possível justapor o estranho – das Unheimliche – ao transgeracional de Lebovici, Kaës, Eiguer e Trachtenberg. De maneira uníssona a Freud, esses autores confirmam a presença de um conteúdo inconsciente e paralisante que produz repulsa e aflição, mas que ao mesmo tempo alude ao doméstico.
Segundo Freud, o estranho nos remete ao familiar recôndito, que retorna sob a forma de algo secreto e insidioso, e nos transporta ao mortífero assim como aos segredos fantasmáticos familiares que se alienaram por meio do processo de repressão. A violência dessas sensações e imagens se condensa em uma figura nefasta e perigosa. Silente, ela carrega a estrutura funcional da pulsão de morte e o desmantelamento simbólico. De acordo com Bleger (1977), esses conteúdos ambíguos podem atingir níveis muito regredidos e primitivos da personalidade, desenterrando instrumentos psíquicos arcaicos de autoproteção egoica.
Mediante tal condição psíquica, como lidar com o “conhecido que não é reconhecido” (Bleger, 1977, p. 389)? Como se proteger do oculto dentro do familiar? Um oculto que carrega em seu ventre o peso de um destino de dor, insatisfação e sofrimento; que esmaga o ego trazendo como estandarte a representação de coisa, isto é, o não simbolizado.
Investigações psicanalíticas demonstram que o ego tem mecanismos defensivos para manter seu equilíbrio. Porém, dependendo da pungência da demanda, suas defesas se patologizam e se voltam contra ele, instalando-se transtornos emocionais e/ou orgânicos.
Defesas para suportar a dor
Entre as várias defesas psíquicas utilizadas para lidar com o assustador, destacamos as patologias psicossomáticas. Para Marty, M’Uzan e David (1967), a carga ligada aos afetos e emoções, pouco ou nada elaborada, conduz à direção somática. Entre as singularidades desse funcionamento, os autores destacam a escassez de liberdade fantasmática, de vida onírica, o empobrecimento de trocas interpessoais associado a uma esclerose de expressão verbal, e a impossibilidade de representação de palavra (Marty, 1998a). “O inconsciente engessado fica impossibilitado de representação, havendo a instalação do funcionamento operatório e o alojamento da patologia psicossomática” (Smadja, 2005/2014, p. 82).
Em sua maioria, as manifestações psicopatológicas corporais têm como gatilho um acontecimento traumático que desperta angústias avassaladoras, há muito reprimidas e que o ego não teve condições de conter e simbolizar. Mediante essa condição psíquica, a ferida narcísica reabre, provocando sofrimento e medo. Sem condição de metabolizar tais angústias fantasmáticas e terroríficas, como forma defensiva, o ego as evacua sob a forma de dor corporal. Entretanto, a dor psíquica que maltrata o corpo, além de ser uma defesa, é uma comunicação, uma vez que “expressa uma necessidade, um desejo, uma necessidade relacional de reencontro com o objeto perdido” (Marty, 1998b, pp. 154-155).
Contudo, qual é a abrangência da patologia psicossomática na criança? Qual é o nível de fragmentação psíquica que esse mecanismo defensivo pode causar na mente infantil?
O imbricamento somatopsíquico dá-se desde os primeiros tempos de vida. É por meio das relações primevas entre mãe e bebê que vai se edificando o psiquismo.
A comunicação silenciosa entre mãe-bebê é algo de uma sutileza, complexidade e pulsionalidade que ultrapassa as barreiras da razão. Iniciada, de acordo com as últimas pesquisas, no período intrauterino, ela marca de forma significativa a construção de vínculos intrapessoais e interpessoais, que irão permitir a estruturação e a sobrevivência psíquica do bebê. (Zalcberg & Neto, 2018, p. 138)
É no infantil precoce que ficarão gravadas as matrizes do funcionamento psíquico, isto é, seus afetos, suas relações objetais, seus conflitos, sua organização pulsional, seus parâmetros simbólicos e suas manobras defensivas, processos que serão resgatados, metabolizados e transformados pelo ambiente durante toda a vida. No entanto, se esse aparelho psíquico for abalado por alguma invasão de conteúdo psíquico tóxico, de base ambiental, orgânica ou transgeracional, de intensidade acima do que ele consiga suportar, poderá haver um esgarçamento de fronteiras psíquicas, de naturezas as mais diversas, como forma de defesa.
Quando tal interferência catastrófica acontece na infância, os efeitos desse esgarçamento podem incluir os mais diferentes tipos de reação, como angústias avassaladoras, bloqueio no processo de simbolização, estancamento no desenvolvimento psíquico (no caso dos estados autísticos, por exemplo), além de doenças corporais de base psicogênica.
Como diz Meltzer (1992/2015), a vida no claustro é marcada pela solidão absoluta em um mundo de objetos bizarros, onde o terror sem nome impera, e as fantasias intrusivas claustrofóbicas assolam a mente. De origem pré-genital, o claustro é uma região da realidade psíquica em que não há identificação projetiva comunicativa, e o sadismo e o masoquismo interagem em uma relação de submissão e violência. O prisioneiro desse sistema tem como meta sobreviver ao mundo fantasmático no qual a morte é iminente. “Falta a alegria de viver, a felicidade que vem da experiência do desenvolvimento da esperança. Que vem do contato direto com a beleza do mundo” (p. 93).
Uma criança e seu corpo podem viver da condição de sofrimento, da influência paralisante de conteúdos transgeracionais que carregam consigo o estranho familiar, e do aprisionamento do self ao claustro de fantasias anais. A vivência clínica relatada a seguir trata disso. No setting psicanalítico, encontramos uma criança de 10 anos, em que a desorganização psicossomática se alojou como forma de proteção contra a mentalização da dor. Vou falar de Pedro, um menino cabisbaixo, que sentia dores abdominais, que dificilmente sorria e que não brincava.
História de um menino
Pedro tem 10 anos. Sua mãe me procura por indicação do pediatra, que de acordo com ela não encontra mais uma terapêutica para diminuir as dores abdominais e as crises de diarreia da criança. O menino apresenta esses sintomas há cerca de sete anos. Inicialmente, as crises eram mais espaçadas e leves, aparecendo após alguma situação de estresse. Contudo, com o tempo, elas foram ficando mais frequentes e sem um fato desencadeador aparente.
Durante as entrevistas com a mãe – o pai se recusa a acompanhá-la –, ela afirma: Para meu marido, o menino é um cagão, não tem jeito, nunca vai ser nada, ao contrário do filho de 5 anos, que ele venera. Meu marido é muito grosseiro com Pedro. Não sai com ele, pois diz que ele cheira mal. Pedro sofre com isso. Às vezes, até chora!
Ao ouvir esse relato, penso no efeito de uma organização psíquica atravessada por imagos parentais ambíguas no âmago da triangulação edípica. Uma figura paterna marcada por crueldade e repugnância. Uma voz paterna punitiva e violenta, muito diferente da voz uterina e carinhosa da mãe.
Ao contrário do pai, a mãe de Pedro fala do filho com orgulho. Ela o descreve como um menino muito inteligente, que só tira notas altas, mas não tem amigos e não brinca na rua nem na escola. Está sempre quietinho, como se fosse uma “tartaruga dentro do casco”. Segundo ela, Pedro era uma criança alegre e feliz, ria e brincava bastante. Por volta dos 3 anos, começou a sentir dor de barriga.
Primeiro, fui dando chazinho, mas nada melhorava; aí as coisas foram se complicando e começou a diarreia. Ele foi deixando de ser a criança alegre e ficando cada vez mais triste e sozinho, sempre com medo de não dar tempo de chegar ao banheiro, de soltar um flato e os outros rirem dele.
Analisando essas palavras, me pergunto o que teria feito o menino enclausurar-se num mundo sombrio e solitário, no qual não havia espaço para o desenvolvimento afetivo emocional. Qual seria o sentido desse desconforto, dessa dor corporal – uma dor para a qual aparentemente não existia uma causa, uma hipótese diagnóstica ou uma medicação?
Penso que havia uma ferida narcísica que purgava de forma anal, uma patologia psicossomática, uma desordem orgânica, “cuja gênese e evolução evidenciam uma participação psicológica predominante” (Kreisler, 1999, p. 24).
Pedro, um menino silencioso
Iniciamos nossa jornada. Pedro é um menino alto, magro, observador e silencioso. De forma sistemática, suas sessões seguem um mesmo roteiro durante todo o primeiro semestre de atendimento. Ele entra na sala, se aproxima da casa de madeira, mas não a toca, escolhe um jogo ou um brinquedo na prateleira ou em sua caixa lúdica, senta-se e brinca sozinho. Seus brinquedos preferidos são quebra-cabeças, material gráfico, mas principalmente o Lego, com o qual constrói objetos e edificações surpreendentes. Não fala, apenas olha para o brinquedo e o manuseia, sem me incluir no processo. De forma contratransferencial, seu funcionamento psíquico me invade, burlando minhas fronteiras psíquicas. Sinto-me desconfortável, afásica, só e profundamente triste. Apesar de me sentir mergulhada nesses sentimentos e sensações incômodas, respeito seu silêncio usando minha capacidade negativa, como sugere Bion (1962/1994),4 para suportar o estado de mente angustiante de Pedro.
À medida que as sessões analíticas transcorrem, levanto a hipótese de meu analisando ter feito uma cisão psíquica significativa. Como resultado, havia uma mente encriptada na qual o narcisismo de morte imperava. Ritualismo e equações simbólicas pareciam torturar Pedro. Acredito que havia se formado uma tela composta de elementos β (tela beta), ou seja, de sensações impensáveis, que de maneira corrosiva fragilizava a barreira de contato protetora do aparelho psíquico. Mediante tal funcionamento, a faculdade de pensar de Pedro era tolhida de estabelecer conexões e vínculos de amor, ódio e conhecimento (L, H, K) (Bion, 1962/1991, 1962/1994).
Alguns meses se passam e, durante esse tempo, nossa comunicação se amplia sutilmente. Algo me chama a atenção: em meio a períodos de provas escolares, datas comemorativas ou situações de exposição, Pedro traz a mãe para dentro da sala de análise. Uma cápsula impenetrável é construída pela dupla mãe e filho, na qual impera uma relação dual e simbiótica, em que não há lugar para um terceiro.
Mahler (1977) esclarece que a relação simbiótica é esperada nos primeiros meses de vida. Seu objetivo é manter o equilíbrio funcional somatopsíquico do bebê por meio de uma fusão onipotente alucinatória com a mãe. No entanto, aos poucos, esse estágio tão necessário vai passando por um processo de mudança. Lentamente, vai acontecendo uma diferenciação física e psíquica entre mãe e bebê, momento em que se dá a entrada da figura do pai. Em continuidade, há o reconhecimento das diferenças por parte do bebê e, com isso, a aquisição da individualidade, de um self. Segundo a autora, o fracasso no processo de individuação faz a criança regredir para a fase simbiótica. Que malogro psíquico ou vivência catastrófica levaria aquela dupla mãe-bebê/menino-bebê a um movimento melancólico, regressivo, em que a manutenção delirante de indiferenciação entre o eu e o objeto imperava?
Contudo, à medida que o processo analítico caminha, a mãe vai sendo deixada na sala de espera. Percebo que, de alguma forma, ambos, mãe e filho, vão se apropriando de seu espaço físico dentro e fora do ambiente analítico. Em nossas reuniões mensais, a mãe relata que as crises de diarreia estão se tornando mais esporádicas, e em paralelo vai me apresentando dados de sua vida pessoal. Fala de seu irmão gêmeo morto ao nascer, de seu casamento difícil, da dor que sente quando o marido agride o filho com palavras e da distância afetiva que sentia da parte da própria mãe.
As sessões continuam. Apesar de Pedro ainda se manter silencioso, está mais interativo e comunicativo. Gosta do Lego, mas já se arrisca a brincar com outros jogos. Seu escolhido agora é o xadrez. Pela primeira vez, me convida a jogar. Durante o jogo, percebo que joga muito bem, sendo difícil para mim acompanhar suas jogadas. Entre perdas e ganhos, vamos jogando e comentando sobre o jogo e sobre a função de cada peça. Poucas palavras, mas que fazem muito sentido para a dupla analítica. Falamos de guerras silenciosas.
PEDRO: Não posso perder a rainha, ela é muito importante. Ela protege o rei.
ANALISTA: Como assim?
PEDRO: Ele é tão gordo que não se mexe; só anda de um em um. Mas ela protege todo mundo. Sempre que uma peça está em risco, lá vai ela. O bispo anda em cruz, o cavalo salta e a torre só anda reto. [Pausa.] Coitados dos peões, sempre estão na frente, são os primeiros a morrer na guerra!
A explicação de Pedro me surpreende, por sua inteligência e sagacidade, mas penso que de alguma maneira ele se sentia autorizado a discorrer e a pensar sobre as relações parentais e as ligações afetivas que permeavam essas inter-relações. Pedro estava na latência, e era hora de começar a desprender-se da dependência familiar e de perder os laços com os objetos infantis para poder entrar no mundo adulto.
Nas ponderações de meu analisando, havia sinais de uma relação edípica a ser elaborada. A violência paterna o levava a buscar na mãe auxílio e salvação, dificultando a resolução edípica. Pedro vivia uma ameaça de castração realística, com ataques verbais do pai à sua potência e à sua capacidade, o que o impedia de se identificar com a figura paterna, de introjetar uma autoridade justa e benéfica.
Pedro se identificava com aquelas peças de xadrez. Seu self evacuava o excesso intolerável de seu sofrimento psíquico naqueles objetos como forma de comunicação, mas também como forma de sobrevivência psíquica. Seus comentários sobre as peças “comidas” no jogo de xadrez sempre tinham um toque melancólico, principalmente quando se referiam aos peões: “Coitados. Eles não têm defesa. Alguém devia cuidar deles. ... Nossa! Eles não deviam morrer! ... São tão pequenos!”. Diante de sua fala, digo que talvez eles sejam mais fortes do que ele imagina, o que deixa Pedro pensativo.
Passados quase dois anos, começa uma nova fase em nossas sessões. O medo parecia ter dado lugar à curiosidade e à coragem. Tinha se operado uma expansão psíquica. Na escola, Pedro já sai para o lanche na hora do recreio, chegando a conversar um pouco com alguns colegas. A mãe, mesmo a contragosto do pai, incentiva-o a convidar algum amigo para brincar, o que, embora com pouca frequência, acontece. Pedro começa a transitar com mais segurança pelos seus afetos. Se antes era dificílimo para ele enfrentar emocionalmente a separação, a dor e a frustração, agora consegue, de forma mais autônoma, assumir seus desejos e identidade. Penso que está havendo um processo de restauração egoica.
Enquanto isso, as entrevistas com a mãe de Pedro continuam. Em cada uma, ela se deixa conhecer um pouco mais. Há um setting também para ela, para acolhê-la. Ela relata a perda do irmão gêmeo ao nascer e o quanto desejaria tê-lo conhecido. Muitas vezes, nas entrelinhas dessas conversas, eu percebia a dor que isso havia causado nela, mas nunca tinha conversado abertamente sobre isso. Como afirmava, “era um túmulo lacrado”. Em meio a essas revelações, percebo que havia um núcleo profundo de tristeza dentro daquela mulher, que, embora tivesse minorado com a melhora do filho, ainda a torturava.
Meu analisando havia caminhado muito. Sua identidade, agora mais delineada, lhe permitia esboçar gostos e desgostos. Já tinha brincado com vários brinquedos da sala, mas havia um que ele somente rodeava, olhava, mas com o qual nunca interagia: a casa de madeira, a casa de boneca. Penso que algo estranho e familiar se alojava em camadas profundas da psique de Pedro, causando temor, “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (Freud, 1919/1996b, p. 238).
Muitos meses haviam se passado desde o início do processo quando, em uma sessão, Pedro ultrapassa a barreira da angústia e do medo, se levanta e vai até a casa de madeira. Abre a casa e, dando certa distância, a observa atentamente, abrindo-se uma comunicação de tessitura fina, mas extremamente profunda. Ele diz: “Ela está cheia de gente... Mas sempre falta alguém... Eu não queria que faltasse ninguém, mas elas vão embora. Eu não queria que elas estivessem lá, mas não queria que isso acontecesse”.
Pedro começa a chorar baixinho. Um choro miúdo, substituído por soluços e, por fim, por um silêncio mortífero. Mesmo mobilizada, me mantenho em silêncio. Sento ao lado dele de maneira solidária. Uma sensação de dor e sofrimento invade o setting analítico. Algo tinha vindo à tona, uma lembrança, um derivado mnêmico carregado de emoção. Naquele momento, o passado e o presente haviam se encontrado na efemeridade do tempo analítico. O trauma se reapresentava no campo, porém agora Pedro não estava só: analista e analisando, por meio do tempo transferencial, estavam juntos.
A partir daí, em suas sessões, Pedro paulatinamente passa a interagir com a casa e com os seus integrantes, ora com violência, ora de forma afetiva. Sua espontaneidade me dá sinais de que ele começa a sair de seu universo mortífero para retomar o processo psíquico evolutivo simbólico. Se antes sua dor psíquica era coisificada e evacuada no corpo, agora Pedro estava encontrando recursos para discriminar o desconhecido familiar, para nomear seus medos, seus monstros, ou ainda para conceber “o ambíguo que há infalivelmente em todo o conhecido” (Bleger, 1977, p. 389).
Depois de algumas semanas, a mãe de Pedro me pede uma sessão. Ela está impactada com algumas perguntas que o filho fez a ela. “Ele lembrou da época que eu chorava e me perguntou por que eu chorava, se estava triste com ele. Aí eu contei sobre o bebê que morreu. Nunca mais eu tinha tocado nesse assunto”, afirma a mãe de Pedro. Durante as entrevistas iniciais, ela não havia mencionado que teve um bebê no intervalo entre os dois filhos. Era prematuro e chegou a ir para casa, mas não resistiu e faleceu. Emocionada, ela verbaliza:
Foi tanta tristeza que eu queria ter morrido junto com ele, mas tinha Pedro para criar. Toda vez que ele me via chorando, vinha me consolar. Nunca contei a ele por que chorava, mas acho que de alguma forma ele captou. Foi como uma nuvem negra que passou, mas acho que para ele e para mim nunca passou!
Como observa Eiguer (1997), a influência do adulto sobre a criança é inevitável, pois os pais, mesmo que não o pretendam, vão irromper suas representações psíquicas na criança. O patrimônio familiar, grupal ou de um povo pode constituir um elemento estruturante ou mortífero. Veiculados através da relação interpsíquica mãe-bebê/infans, por meio de identificações inconscientes, projetivas ou introjetivas, esses conteúdos são projetados no espaço mental do infans, paralisando-o, como nas transmissões transgeracionais, ou abrindo um espaço sonhante, como nas transmissões intergeracionais.
Diante da fala mencionada, penso “nas ressonâncias de um trauma não elaborado em uma dada geração que aparecerão em gerações seguintes como enigma ou algo impensado” (Trachtenberg, 2017, p. 81). Legados transgeracionais que não puderam ser representados e que se alojam em construções subterrâneas escavadas no subsolo da mente, nas quais ficarão aprisionados fantasmas, lutos, vergonhas, violência e dor. A mãe de Pedro fora marcada pela dor, pelo luto e pela culpa do irmão natimorto. Carregava consigo um fantasma silencioso, adormecido, que foi despertado pela morte de seu bebê. A sobreposição de traumas foi excessiva para ela, que inconscientemente a projetou no filho, ainda pequeno, invadindo a mente dele com sua história colapsada.
A partir das confidências feitas a mim pela mãe de Pedro, surge a imagem de um menino que viveu a patologia do vazio por toda a sua infância. Como diz Green, uma mente que sofreu “um desinvestimento maciço, radical e temporário que deixa marcas no inconsciente sob formas de buracos psíquicos, que serão preenchidos por reinvestimentos, expressões de destrutividade” (1988, p. 244).
De forma inconsciente, Pedro havia recebido um legado enigmático, que causava um terror estranhamente familiar. Mas não havia lugar para esse luto ser digerido, para ser mentalizado, senão no próprio corpo, que como um carrasco o lembrava da perda sofrida. Um processo destrutivo ganhou força: sua angústia apertava seu ventre. Ele evacuava no corpo e pelo corpo a angústia da culpa.
Por meio das sessões psicanalíticas, o objeto morto encontrou espaço para ser pranteado. Havia uma ferida narcísica que lentamente estava sendo cuidada, dando condições à libido, antes desperdiçada em ataques ao soma, de ser utilizada como expressão de vida.
Nosso trabalho continuava, mas por motivos alheios à vontade dos envolvidos precisou ser interrompido. As despedidas mobilizam o trio mãe-analista-criança. Psiquicamente, Pedro estava mais preparado para lidar com elementos identificatórios letárgicos e alienantes, que por sua estranheza eram esquecidos e por sua familiaridade eram temidos. Pedro não precisava evacuar seu terror sem face através de uma diarreia intermitente e de descargas agressivas em forma de colite. Ele já havia se apropriado dos vínculos L, H, K, ou seja, do simbólico, do sentimento, da palavra.
Considerações finais
A mente tem como condição sine qua non a presença de fronteiras. Sejam fronteiras somatopsíquicas, intrapsíquicas ou interpsíquicas, é por meio dessas linhas móveis que a psique vai se organizando e permitindo que o self se constitua. A flexibilidade e a resiliência desses limites que demarcam as estruturas psíquicas dão à mente a possibilidade de desenvolvimento e transformação, permitindo a evolução do mais primitivo e inicial ao mais abstrato e evoluído.
Contudo, se uma fortaleza obstrutiva de defesas enrijecer as fronteiras psíquicas, estabelecendo a condição de não sonho, a mente e todo o seu processo evolutivo ficarão obstaculizados, perdendo sua plasticidade e sua capacidade de vincular-se em L, H, K, assim como a possibilidade de transformação em O.
A transmissão psíquica transgeracional é um legado intrusivo, obstrutivo e estrangeiro, que, tal qual um objeto estranho na mente infantil, é um elemento fundante de dor. Esses traumatismos precisarão ser mentalizados para serem elaborados, a fim de dar vitalidade às fronteiras somatopsíquicas e alívio a esse sofrimento, cicatrizando feridas abertas há várias gerações.
Abraham e Torok explanam:
Todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser vertidas serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em conserva. O luto indivisível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta. ... Criou-se, assim, todo um mundo ... inconsciente, que leva uma vida separada e oculta. (1995, p. 249)
Desde o início, a psicanálise se propôs a decifrar o encriptado, decodificar o não simbolizado, fosse ele representação de coisas ou de afetos. Por meio do discurso transferencial, o processo psicanalítico tem como objetivo dar voz ao sofrimento. De maneira ambiciosa e afetiva, o analista abre um canal, um campo para angústias, medos, culpas, fantasmas de gênese pré-natal e pósnatal insurgirem em busca de contorno, corpo e ressignificação.
De acordo com Kristeva, o processo psicanalítico é uma “história de fé e de amor”, uma vez que “o espaço analítico é um dos únicos lugares em que o sujeito do discurso tem o direito de falar de feridas, de buscar novas possibilidades de acolher e ser acolhido” (2010, p. 12).
Em uma tentativa de explicitar ainda mais o aspecto destrutivo do legado transgeracional, que traz o estranho familiar em seu bojo, e de suas projeções somatopsíquicas, apresento a trajetória psicanalítica de Pedro, um “herdeiro compulsório” desse tipo de herança – uma criança que, mediante o impensável, tem como defesa o adoecimento corporal. Como explica Kreisler, “a criança muitas vezes se exprime por meio do corpo mediante a falta de poder encontrar em si os meios mentais suficientes, razão invocada para dizer que ‘não existe nada mais somático do que a criança’” (1978, p. 107).
Usando como marco de referência a teoria psicanalítica infantil, foi possível, de forma cautelosa, restaurar a subjetividade fragmentada e a organização psicossomática de Pedro, o menino triste. Através da linguagem do afeto e da relação transferencial, demos vazão aos estados afetivos nos seus diversos vértices, desconstruindo a barreira e voltando a dar flexibilidade às fronteiras. Desse modo, representação e afeto puderam emergir de maneira dinâmica, trazendo em seu bojo a força das pulsões tanto de vida como de morte. O corpo não precisou ser mais martirizado, porque Pedro descobriu a palavra, o verbo, e como observa Kristeva, “o verbo pode, ao contrário, tocar a cada instante a carne” (2010, p. 16), agora para o bem.