Em Memórias do subsolo (1864/2022), Dostoiévski oferece uma reflexão inspiradora acerca das interferências da memória nas moldagens retro e prospectivas de nosso psiquismo. Tentemos apreender, inicialmente, aquilo que ele entendia como a subjetividade do subsolo, dando voz ao personagem narrador, quando fala de sua introspecção:
Em casa, em primeiro lugar lia cada vez mais. Tinha vontade de que sensações exteriores abafassem tudo que fervilhava incessantemente dentro de mim: e minha única possibilidade de sensações exteriores era a leitura. Claro que ela ajudava muito: emocionava, deleitava, atormentava. Apesar de tudo, tinha vontade de me movimentar e, de repente, mergulhava no escuro, no subterrâneo, no abjeto: não na perversão, mas na perversãozinha. Minhas paixõezinhas eram agudas, ardentes devido ao caráter sempre doentio de minha irritação. Os arrebatamentos eram histéricos, com lágrimas de convulsões. Além da leitura, não tinha para onde ir, ainda por cima, acumulava-se a angústia: surgiu uma sede histérica de contradição, de contraste, e eu me joguei na perversão à noite, em segredo, temeroso, sujo, com uma vergonha que não me deixava nos instantes mais repugnantes, quando chegava à maldição. Já então, eu trazia o subsolo na alma. Tinha um medo terrível de que alguém me visse, encontrasse, reconhecesse. Naquela época, eu frequentava vários lugares bastante tenebrosos. (p. 53)
Logo de saída, o Homem do Subsolo (hs) nos impacta por aquilo que Bion chamaria de anseio confessional (urge to confess), brindando-nos com uma descrição desabrida de seu solipsismo patológico: “Sou um homem doente… Sou um homem perverso. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, pelo menos o suficiente para respeitar a medicina” (p. 7). Com essa aparente autoironia que zomba da cientificidade da medicina, ele já desafia sua plateia virtual a avaliar a sinceridade das suas afirmações.
Já faz muito tempo que vivo desse jeito: uns vinte anos. Antes eu trabalhava, agora não mais: eu era um funcionário público perverso, era rude, e encontrava satisfação nisso. Já que eu não recebia propina, essa era minha recompensa. Mas os senhores sabem em que consistia o ponto principal da minha raiva: era eu reconhecer na mesma hora da descarga da bile, envergonhado, que não apenas não era um homem mau, mas alguém que ficava apenas assustando os pardais à toa e me divertindo com isso. (pp. 8-9)
Que estranho tipo esse que se diverte com paradoxos, fazendo questão de compartilhar suas idiossincrasias com uma plateia de “seletos senhores” para, logo a seguir, confessar-se mentiroso!
Menti agora há pouco ao dizer que era um funcionário perverso: menti de raiva. Aprontava umas traquinagens, mas nunca consegui fazer o mal. Sabia que elementos opostos fervilhavam dentro de mim pedindo para sair, só que eu nunca permiti de propósito! (p. 9)
Seria verdade, ou já estaríamos aqui diante de seu pecado mortal, a falta de uma alteridade na qual ele pudesse desovar os seus demônios interiores? Na sequência, ele continua se socorrendo dessa plateia virtual, sem consciência de que é uma fabricação alucinada de seu desespero: “Por acaso os senhores acham que agora estou me arrependendo, que estou a lhes pedir perdão por algo? Asseguro-lhes que, para mim, tanto faz o que os senhores acham” (p. 9).
Depois de atuar essa lorota, aí sim ele consegue produzir um sopro de autenticidade:
Eu não apenas não conseguia ser mau: nem mau, nem bom, nem canalha, nem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando-me com o consolo raivoso e sem serventia alguma de que um homem inteligente não pode se tornar nada de sério, e que só o estúpido vira alguma coisa. (p. 9)
O fato é que hs se sentia encarcerado no subsolo, já que caíra numa armadilha engendrada pela promiscuidade de forças emocionais contraditórias, responsáveis pela criação de uma configuração insolúvel: como conciliar seus impulsos perversos com os prazeres espúrios daí advindos, sem a ajuda de um Outro? A consciência desse impasse que corroía sua dignidade só se aliviou com a ajuda inesperada de Liza, como veremos mais adiante.
Duas observações, a respeito da consciência e da memória, completariam seu perfil:
Contudo, estou certo de que o homem jamais se recusará ao verdadeiro sofrimento, ou seja, à destruição e ao caos. Afinal, o sofrimento é a única causa da consciência. Nas lembranças de qualquer pessoa, há coisas que ela não revela a todos, apenas aos amigos. Há outras que não revela nem aos amigos, apenas a si mesma e, ainda assim, em segredo. Mas há, finalmente, aquelas que a pessoa tem medo de revelar até a si mesma, coisas que toda pessoa honrada acumula bastante. Chega a ser assim: quanto mais honrada a pessoa, mais coisas dessas ela possui. Pelo menos, eu mesmo só decidi há pouco tempo recordar algumas de minhas antigas aventuras, que até então havia sempre contornado, até com algum desassossego. Agora que não apenas recordo, como até resolvi anotá-las, desejo colocar à prova: é possível ser completamente franco consigo mesmo e não ter medo da verdade por inteiro? Observo a propósito: Heine afirma que autobiografias verídicas são quase impossíveis, e que a pessoa com certeza mente a seu próprio respeito. (pp. 44-45)
Aos 24 anos, este “homem do subsolo” sabia-se esquisito, medíocre, acovardado, invejoso e ressentido com uma pobreza cujos tentáculos o sufocavam tanto física quanto moralmente. Sem dinheiro e sem qualquer dignidade se aventurou a visitar uma roda de amigos que programavam um jantar de despedida para um deles que os abandonaria. O resultado foi desastroso. Na condição de penetra indesejado, foi se envolvendo numa espiral de humilhações e falsas disputas que culminaram na proposta fanfarrona de duelar com um daqueles desafetos. Nessa altura, talvez numa tentativa desesperada de mitigar seu sofrimento, ele já se embebedara e, após uns momentos de confusão, percebeu que todos tinham fugido dele.
Embebido também de um espírito vingativo, aboletou-se numa carruagem e instigou alucinadamente o cocheiro a dirigir-se a um prostíbulo na esperança de encontrar os pândegos que o abandonaram como a um cão sarnento. Vã ilusão: o lugar estava vazio, e ele, estarrecido e desgovernado. Eis que,
de repente, ao meu lado, avistei dois olhos abertos, que me examinavam com curiosidade e obstinação. O olhar era de uma indiferença fria, lúgubre, como algo completamente alheio; dava uma impressão de pena. Um pensamento estranho nasceu em meu cérebro, percorrendo todo o meu corpo com uma sensação desagradável, parecida com a entrada em um subsolo úmido e bolorento. Parecia um tanto artificial que justamente só agora aqueles dois olhos tivessem inventado de me examinar. Lembro-me ainda de que, ao longo de duas horas, eu não dissera uma palavra àquela criatura, não considerando absolutamente necessário fazê-lo. Só que agora, de repente, vinha surgindo com força a ideia disparatada, repugnante como uma aranha, da perversão, que, sem amor, rude e desavergonhada, começa justo onde o verdadeiro amor é coroado. Ficamos nos encarando desse jeito por muito tempo, mas ela não baixava os olhos diante dos meus, nem alterava o olhar, de modo que, por fim, fiquei mal.
– Qual o seu nome? – perguntei, com voz entrecortada, para encerrar logo aquilo.
– Liza – ela respondeu, quase cochichando, mas de cara feia e afastando o olhar. (p. 94)
Nesse momento, não há como não lembrarmos do aforismo que diz “Os olhos são a janela da alma”, adaptando-o, nesse contexto, como “Os olhos são a porta de entrada para o subsolo”. Perplexo com esse “estranho encontro” (expressão consagrada na poesia de Wilfred Owen), nosso personagem, após fazer uma rápida investigação sobre a presença dessa garota num prostíbulo, enceta um discurso parento-moralista a respeito do futuro tenebroso que a aguarda, causando-lhe vergonha e desalento. Prestes a sucumbir a esse bombardeio corretivo, Liza confessa ser vítima do infortúnio de ter sido vendida pelos pais como escrava sexual, estando sua alma tão escravizada quanto seu corpo.
Malgrado essa pungente confissão, hs não conseguia estancar a catarse desenfreada de suas frustrações, apesar de reconhecer o seguinte: “Senti que ela revirou minha alma e partiu meu coração, mas eu continuava atraído por aquele jogo. No fundo, sabia que estava falando de modo tenso, laborioso, quase recitando uma receita livresca” (p. 109).
Temos aqui uma crítica à argumentação by the book substituindo a sensibilidade do espírito humanista, algo que poderíamos correlacionar com aquilo que Bion chamou de tropismo assassino. Foi preciso que o Outro se esfacelasse para que o protagonista se desse conta de sua crueldade:
Só que agora, atingido o efeito, fiquei de repente atemorizado. Não, eu jamais, jamais fora testemunha de tanto desespero! Ela estava deitada de bruços enfiando a cara no travesseiro com força e agarrando-o com ambas as mãos. Seu peito se dilacerava. Os soluços oprimidos no peito pressionavam, dilaceravam e de repente prorrompiam em berros e gritos. Mordia o travesseiro, mordeu a mão até sangrar, ou paralisava de esforço, prendendo a respiração e apertando os dentes. (p. 109)
O aforismo “Verdade sem amor é crueldade, e amor sem verdade é ilusão”, atribuído ora a Kant, ora a Bacon, mas repercutido por Bion, cai aqui como uma luva. Dando-se conta de sua insensibilidade, já livre dos vapores etílicos, ele consegue acalmá-la, recebendo dela uma carta enviada por um estudante com uma declaração de amor sincera e verdadeira, enquanto seu rosto se iluminava com uma solenidade ingênua e quase infantil. Talvez tocado por esse gesto, ele se despede fornecendo seu endereço de forma quase mecânica.
Mas caindo em si ao encontrar-se em sua moradia pulguenta e desmazelada, passou a sentir-se acossado por uma irritação pelo convite imprevidente, torcendo para que Liza não o aceitasse, tornando-se uma testemunha viva de sua decadência. Entremente, sua consciência se mostrava inquieta e culpada:
Porém, quanto mais a noite avançava e o crepúsculo se adensava, mais mudavam e se embaralhavam minhas impressões e, com elas, as ideias. Algo não morria no meu interior, no fundo do coração e da consciência não queria morrer e se exprimia por meio de uma angústia cruciante. Algo se erguia, se erguia, sem cessar dolorosamente, e não queria sossegar. Voltei para casa totalmente transtornado, como se levasse algum crime na alma. (p. 114)
No entanto, o momento tão temido acabou acontecendo: Liza apareceu em sua casa, concretizando as suas piores premonições. Sentindo-se acuado e testemunhando impotente o desmoronamento de sua empáfia magistral, ele envereda por uma falsa justificativa, tentando convencê-la de que suas lições de moral, naquela noite sinistra, eram todas hipócritas, visando tão somente ressaltar sua perdição sem qualquer intuito sincero de regenerá-la. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro:
Eu estava tão habituado a pensar e imaginar tudo como nos livros, e ver tudo no mundo como havia fabricado nos sonhos, que não entendi imediatamente aquela estranha circunstância. Aconteceu o seguinte: Liza, ofendida e esmagada por mim, entendeu muito mais do que eu imaginava. De tudo aquilo, compreendera o que a mulher compreende antes de tudo, se seu amor é franco: que eu era infeliz. Nos meus sonhos do subsolo, eu também não imaginava o amor como outra coisa senão uma luta que sempre começa com o ódio e termina com a submissão moral, e depois não conseguia mais imaginar o que fazer com o objeto submetido. (p. 129)
Na tragédia urdida por Dostoiévski, podemos apreender uma das inúmeras facetas do conceito bioniano de mudança catastrófica, na medida em que o eu do protagonista, mergulhado na atmosfera ética do subsolo, desenvolveu um sistema imediato de desmonte dos produtos do autoengano. Quando, em Uma memória do futuro (1991), Bion nos apresenta um cardápio das diferentes transformações engendradas pelas mudanças catastróficas, distribuindo topograficamente os destinos das rupturas, ele nos fornece um poderoso instrumento para compreender as complexas interações entre o eu e o Outro. De fato, Bion nos convida a indagar se as mudanças catastróficas não seriam break-up, break-down, break-in, break-out, ou break-through, ou seja, uma irrupção, um colapso, uma implosão, uma explosão, ou uma penetração.
A metáfora de explorar a prostituta como continente a fim de albergar seu eu impotente, para ser amparado por um Outro sustentado pela pureza do amor, remete-nos à interação metapsicológica entre o break-through (em sua função de “abrir caminho através de”) e o break-in (na sua vertente de “avançar ou domesticar” impulsos primitivos). Nessa tragédia há uma inversão de papéis: o eu insolente e pedagogo acaba trocando de posição com a garota ingênua, que se fortalece com o colapso do Outro, terminando por remetê-lo de volta a seu subsolo, só que agora amparado por uma essência real e não mais ideal.
Ao hs, Beckett (1970/2004) contrapôs o Homem ao Relento (hr), aquele que foi expulso do seu quarto com a morte do pai e, descansando ao relento num banco, é assediado por uma aparição alienígena, de nome Lulu. Como ela se sentou a seu lado sem lhe dirigir a palavra por toda a noite, retirando-se ao amanhecer, ele “pressentiu tratar-se de uma alma que se aborrece rápido e nunca termina nada, que é de todas, talvez, a menos importuna”.
Aliviado por não precisar abandonar o seu solipsismo, ele logo se frustra ao percebê-la retornando a cada dia sem qualquer cerimônia – e pior: ao notar que ele não teria para onde escapar, mesmo que quisesse. “O erro da gente é dirigir a palavra às pessoas”, pensou ele, mas logo viu que estava enganado; o erro da gente é ter uma carcaça recheada de pulsões.
O que me interessava, a mim, rei sem súditos, aquilo de que a disposição da minha carcaça era apenas o mais remoto e fútil dos reflexos, era a supinação cerebral, o embotamento da ideia do eu e da ideia desse pequeno resíduo de futilidades peçonhentas que chamamos de não eu, e mesmo de mundo, por preguiça. Mas aos vinte e cinco anos ele ainda está sujeito à ereção, o homem moderno, fisicamente também, de vez em quando, é o quinhão de cada um, nem eu estava imune, se é que aquilo pode ser chamado de ereção. Ela percebeu, naturalmente, as mulheres farejam um falo no ar a mais de dez quilômetros e se perguntam, Como é que aquele ali me descobriu? Não somos mais nós mesmos, nessas condições, e é penoso não ser mais você mesmo, ainda mais penoso do que sê-lo, apesar do que dizem.
Sua conclusão é cheia de melancolia:
O que se chama amor é o exílio, com um cartão-postal da terra natal de vez em quando, foi esse o meu sentimento naquela noite. Quando ela terminou, e meu próprio eu, o domesticado, foi reconstituído com auxílio de uma breve inconsciência, encontrei-me só.
A partir de quando percebemos que o corpo é uma terra natal, que nos acompanha sempre como um viajante clandestino? Gostando ou não, temos que reconhecer que esse viajante é um “ser todo-dolente”:
Eu conhecia mal as mulheres, naquela época, ainda as conheço mal, aliás. Os homens também. Os animais também. O que conheço menos mal são minhas cores. Penso nelas todas, todos os dias, é rápido, o pensamento vai tão depressa, mas elas não vêm todas do pensamento. Aliás, conheço mal também minhas dores. Isso deve ser porque não sou apenas dor. Ser apenas dor, como simplificaria as coisas! Ser todo-dolente! Mas isso seria concorrência e desleal. E àqueles que forem gentis o bastante para me escutar contarei na mesma ocasião, de acordo com um sistema cujo autor não me recordo, os instantes em que, sem estar drogado, nem bêbado, nem em êxtase, não se sente nada.
É assim que ficamos conhecendo um novo personagem, “a anestesia”, a filha rebelde da dor.
Assoberbado por esses dilemas, hr resolve refugiar-se num estábulo abandonado, onde, imaginando-se a salvo de qualquer testemunha, confessa a si próprio que estava apaixonado. A paixão, na visão de Bion uma das dimensões do objeto psicanalítico, requer pelo menos o encontro de duas mentes, mas o estímulo sensorial, para operar, não necessita mais que uma única mente. O mesmo é válido para o reconhecimento da paixão, ainda que consumada numa atmosfera degradada, cheia de excrementos animais. Em resumo, o relento interior não se dissolve com a deserção da luta, nem com a condição de foragido: identificados com os excreta e com a impotência, os personagens beckettianos fogem do contato com um Outro, devido ao risco de se distraírem e se tornarem involuntariamente procriativos. Pois foi o que aconteceu.
Mais desnorteado do que culpado, ele retorna ao banco (em busca de Lulu?) e, para sua surpresa, não só a reencontra, mas é convidado a morar com ela num quarto que estava vago. Ali, ensaia um convívio descompromissado, mas acaba descobrindo que ela era prostituta e, para piorar,
um dia ela teve o atrevimento de anunciar que estava grávida, e ainda por cima de quatro ou cinco meses, de minhas obras. Ficou de perfil e mostrou a barriga. Olhe, disse ela, curvando-se sobre os seios, a aréola já está escurecendo. Reuni minhas últimas forças e disse, Aborte, aborte, assim ela não escurecerá mais.
A presença indesejada (?) de um filho configurou a mudança catastrófica tão temida de precisar de um Outro e, assim, formar um par procriativo para produzir um filho, ou seja, uma ideia nova, que não poderia ser deixada ao relento, que precisaria ser acolhida e nutrida por um eu parental altruísta.
A partir daquele dia as coisas foram de mal a pior naquela casa, para mim, cada vez pior, pois ela vinha o tempo todo me assassinar com nosso filho. Dava-me náuseas deixar uma casa sem que me pusessem para fora. Finalmente, me ausentei e fiquei do lado de fora ouvindo os gritos saídos de dentro. Não sabia ao certo onde estava, procurei no céu a constelação das Ursas, que meu pai tinha me mostrado. Durante anos acreditei que aqueles gritos iam parar, agora não acredito mais. Teriam sido necessários outros amores, talvez. Mas o amor não se encomenda.
Perdido no espaço humano, o hr busca orientar-se no espaço cósmico, fixando-se nas Ursas, que em algumas mitologias representam o centro do microcosmo humano, ou mesmo a residência do regente do destino.
Em seu artigo sobre a cesura, Bion (1977) ressalta a importância de abordarmos os estados sujeitos às mudanças catastróficas, no desenvolvimento do psiquismo (nascimento, adolescência, casamento, parentalidade), usando uma ferramenta que espelha a essência do objeto estudado, ou seja, a transitoriedade. Como fazer, por exemplo, para “penetrar” o obstáculo representado pela cesura do nascimento? Seria possível transpor essa cesura, saindo do pensamento consciente pós-natal e retornando ao estágio pré-natal, onde ainda não se formaram pensamentos ou ideias? Em termos pictóricos, seria penetrar no interior da mulher tanto de dentro para fora, como ao dar à luz, quanto de fora para dentro, como na penetração sexual.
Bion sugere que o essencial é investigar a cesura, o vínculo, a sinapse, a (contra-trans)ferência, o humor transitivo-intransitivo. É o que tentarei fazer, considerando o vínculo possível entre hs e hr.
A primeira transição que aparece é aquela entre o recolhimento e a exposição. hs foi se munindo de subterfúgios para fugir da sociabilidade essencial aos humanos, chegando ao cúmulo de substituir o contato com os seres vivos pelas informações livrescas ou pelos personagens dos seus sonhos. Já hr, ao se perceber um sem-teto, houve por bem entregar-se à agorafilia, expor-se ao desamparo, publicamente, contando talvez com uma ajuda caridosa ou empática do mundo. Quem garante, no entanto, que no meio do caminho suas trajetórias não se cruzassem, que suas histórias não se entrelaçassem, que seus destinos não se irmanassem?
O destino, sempre à espreita, promoveu esse encontro durante suas buscas inconscientes pelo amor verdadeiro, vicejando naquele solo onde ele é mais necessário, o solo da prostituição, em que a esterilidade sofredora merece o respeito do poeta:
Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobres de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor,
Não sois Loelia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilinguidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé.
Eis-nos, então, diante da transição entre o amor degradado e o amor verdadeiro, ressaltando-se que, nesse último, a geração de filhos complexifica o vínculo ao envolver as partes com responsabilidades éticas e morais. Esse cenário oferece-nos a oportunidade de investigar a cesura entre a moralidade e a amoralidade, entre o egoísmo e o desprendimento, entre a coragem e a covardia.
Que força misteriosa expulsou hs da sua toca? Uma explicação psicanalítica padrão seria culpa; no entanto, não poderia ser parte de um “anseio confessional”, que o teria lançado em busca de um continente para acolher seu reconhecimento de uma natureza torpe e mesquinha?
Tinha vergonha: cheguei ao ponto de sentir um prazer secreto, anormal, canalha, ao regressar para meu canto e admitir com rigor que voltara a cometer uma torpeza e, lá no fundo, em segredo, eu me ruía e remoía. Eu, por exemplo, tenho um amor-próprio terrível. Sou desconfiado e suscetível como um corcunda ou um anão, mas, na verdade, ocorreram-me momentos em que, se tivessem me dado uma bofetada, talvez eu tivesse ficado até feliz. (Dostoiévski, 1864/2022, p. 13)
Essa postura não teria contribuído para ele desculpar-se com Liza, confessando-lhe que suas admoestações não passaram de um espelhamento hipócrita de sua perdição? Sem ela, esse lado ético teria conseguido despertar? E o que dizer da reação espontânea de Liza?
Levantou-se de repente da cadeira, em um impulso irresistível, e, precipitando-se toda para mim, mas ainda tímida e sem ousar sair do lugar, estendeu-me os braços… Daí meu coração revirou. Então ela se atirou de repente na minha direção, enlaçou meu pescoço e se pôs a chorar. (pp. 129-130)
Estamos, aqui, diante da mudança catastrófica que selou o destino de hs, desde que consideremos suas vertentes transformadoras de break-up e break-through, ou seja, a irrupção do anseio e do amor pelo Outro: de agora em diante, Dostoiévski liberta seu personagem da “vida livresca”, deixando-o com “a vida como ela é”.
No caso de hr, a cesura se constitui entre adaptar-se a um continente burguês, na companhia de mulher e filhos, ou apostar em acreditar num acolhimento cósmico oferecido pela constelação das Ursas. Aqui igualmente, Beckett não nos oferece uma conclusão, deixando entrever, no entanto, que seu personagem também depende de uma decisão solitária, como o de Dostoiévski.
Quando observamos ambos os casos, percebemos que a intransitividade está encravada no masculino, enquanto a transitividade escorre fluida pelo feminino. Nota-se que Liza, num certo sentido, queria sair de seu subsolo, mas aguardou com paciência que o inesperado visitante registrasse a sua presença e, posteriormente, foi visitá-lo, não obstante a crueldade com que fora tratada. Lulu, por seu turno, aboletou-se no banco como uma espécie de companheira casual predisposta a fazer amizades.
Ambas, de maneiras diferentes, chocaram por sua espontaneidade desinteressada e, depois, por uma insistência operativa difícil de ser ignorada. Como resultado, foram penetrando com suavidade na intimidade desses homens perdidos, de modo a irem se tornando invisivelmente imprescindíveis: uma, para amaciar a arrogância e a prepotência; a outra, para resgatar aquela alma que chafurdava na esterilidade do limbo, oferecendo-lhe a perspectiva de uma procriação altruísta.
Por último, é preciso mencionar uma transitividade de grande importância clínica, aquela que administra a cesura entre o sentimento/pensamento e a ação, ou seja, a operacionalidade do ato interpretativo. Bion insiste que a decisão para agir implica uma introspecção solitária fundamental, a ponto de considerar esse conjunto um “elemento de psicanálise”.
Ao defrontar-se com Liza, hs ficou mesmerizado pela vigilância escópica que ela lhe dedicava, deixando que o sentimento delicioso de “ser percebido” se avolumasse (Esse est percipi, como dizia Berkeley), até que não resistiu partir para a ação e indagou-lhe o nome, fornecendo seu endereço num gesto claramente impensado. Em contrapartida, ciente de sua infelicidade, ela sensibilizou-se com esse apelo inconsciente, presenteando-o com seu perdão e oferecendo-se como objeto amoroso, causador da mudança catastrófica: “Daí meu coração revirou”. A partir desse instante, seu subsolo ficou mergulhado na “vida como ela é”, lançando-o no conflito atroz de não saber como encaminhar aquela situação. Transtornado por uma confusão de sentimentos, e acossado pelas memórias de seus insultos cruéis, ele coloca-lhe na mão uma nota de cinco rublos enquanto ela sai.
Ato contínuo, acossado por remorsos, sua (i)moralidade fervilhou:
Não será melhor se ela carregar o insulto para sempre? O insulto é uma purificação, a consciência mais cáustica e dolorida! Amanhã mesmo eu teria poluído sua alma e fatigado seu coração. O insulto, porém, agora jamais morrerá, e por mais asquerosa que seja a imundície que a espera, o insulto há de elevá-la e purificá-la… seja pelo ódio… ou pelo perdão. (p. 134)
Estaria o perdão transitando pela via comum aberta entre aquelas duas almas?
No caso do personagem de Beckett, a cesura entre sentimento/pensamento e ação reveste-se de tinturas existenciais emanadas no neologismo que, para ele, sintetizava a aventura humana: wombtomb, ou seja, que a vida não passa de um salto entre o útero e o túmulo. Por isso, sua narrativa é proposta ao reverso: começa no cemitério com a morte do pai e termina com a “morte” do narrador devido ao indesejável nascimento de um filho. Aliás, fiel às ironias da vida, o narrador deixa estabelecido seu futuro epitáfio, não abrindo mão de transitar pela cesura vida/morte, agindo a partir de seu sentimento: “Aqui jaz quem daqui tanto escapou/ Que, por fim, não escapa mais”.
Nesse caso, o humor transitivo-intransitivo espraia-se pelo ciclo vital. A impressão que se tem é que tanto hr quanto Lulu estão na vida como freelancers, uma espécie de ciganos existenciais, que vão tomando carona nas oportunidades que surgem. Se para ele, ao ver-se apaixonado, tanto faz tratar-se de um amor priápico ou platônico, acha engraçado escrever o nome da amada na bosta de vaca e acaba se divertindo por ela ser vesga. Seria justo, nesse contexto, categorizar a configuração como uma mudança catastrófica alienada, ou quem sabe estaríamos diante de uma visão de mundo mais descontraída e sincera, propiciadora de uma mudança corajosamente transformadora.













