Religião e estados religiosos da mente
P.A.: Certamente. Não tenho dificuldade em aceitar que exista tal possibilidade, mas até o ponto que minha limitada capacidade permite-me alcançar a verdade, eu não experimentei a realidade da qual você fala.
W. R. BION
P.A.: Não tenho dúvida do “fato” de religião como uma parte, talvez uma parte inalienável, do caráter humano.
W. R. BION
Qualquer religião específica muda conforme a moda prevalente, mas a coisa fundamental, a religião em si, não. É uma força fundamental…
W. R. BION
Devotos1 da religião amiúde não parecem desenvolver qualquer aumento na capacidade mental.
W. R. BION
Talvez possa depender, também, se a personalidade do analista permite que o paciente o coloque no lugar de seu ego ideal, o que envolve a tentação para o analista de interpretar o papel de profeta, salvador, ou redentor do paciente.
SIGMUND FREUD
Em que reside o valor peculiar das ideias religiosas?
SIGMUND FREUD
O desamparo do homem permanece e juntamente com este o seu anseio por seu pai e os deuses.
SIGMUND FREUD
Em Uma memória do futuro (1991), Bion apresenta o diálogo de p.a. (Psycho-Analyst) com Sacerdote. Nesse diálogo, ele diz que a diferença do primeiro para o segundo é que, enquanto cientista, não poderia excluir, a priori, a existência de Deus, embora nunca tivesse encontrado uma realização para essa preconcepção. O Sacerdote, contudo, não poderia admitir em suas premissas a não existência de Deus. A diferença entre o posicionamento de p.a. e o do Sacerdote seria de um permanente estado de dúvida e abertura para o que a experiência pudesse revelar. Não obstante, considera que a religião seria algo intrínseco à nossa natureza. Qual a diferença entre religião e estados religiosos da mente?
Freud considerava a religião uma necessidade para lidar com o desamparo, e a criação de um Deus ou deuses como substitutos para a figura paterna, uma forma de conter os estados mentais dolorosos e a atuação de impulsos que pudessem pôr em risco o indivíduo e a civilização.
Há alguns anos, ouvi de um colega que sempre se reconheceu ateu (e ainda se considera assim) que, quando seu filho desapareceu num lugar público, imediatamente pôs-se a rezar, por não suportar a angústia associada à possível perda do filho.
Luiz Tenório de Oliveira Lima costumava citar o livro Jean Barois (1913/2003), de Roger Martin du Gard, prêmio Nobel de 1937, que narra a história de um cientista que, religioso na juventude, depois adotou a ciência como única fonte de certeza e verdade (o que, a meu ver, também implica um estado religioso) para, na fraqueza da velhice, retornar ao catolicismo. Antecipando sua recaída na religião pela possível decrepitude da idade avançada, escrevera, 30 anos antes da morte, um testamento no qual renegava todo retorno à Igreja católica. No romance, sua esposa devota e o padre encarregado do enterro fazem rapidamente desaparecer o documento.
Observo também, em supervisões e atendimentos, a obrigatoriedade que muitos colegas sentem de atender pessoas com quem se percebem muito indispostos e, amiúde, sem ver nelas recursos psíquicos para aproveitar o trabalho, porque seria uma espécie de pecado não lhes prestar auxílio, por mais que os pacientes sejam hostis, incapazes de reconhecimento ou proveito e, não raramente, uma potencial ameaça à própria integridade ou à vida do profissional. Parece haver um estado religioso que os obriga ao sacrifício e à insistência, na espera de um milagre. Haveria ainda uma dimensão religiosa em que, como os santos, teriam de se sacrificar para salvar almas perdidas e, igualmente como eles, subjacente a essa abnegação e humildade, uma superioridade de estar acima das necessidades humanas, em que a própria sobrevivência, subsistência e necessidade de manter algum conforto na vida seriam coisas menores dos seres humanos comuns, e não daqueles destinados à canonização. Na mesma direção, a psicanálise seria vista como uma panaceia milagrosa, capaz de transformar seus praticantes em seres superiores e proféticos.
Convergindo com Karl Popper em Conjecturas e refutações (1963/1982), considero que a atividade científica não se ocupa de provar a verdade de teorias, mas de buscar onde está a insuficiência delas e sua possível refutação pela experimentação para que o conhecimento se expanda. Bion também ressalta que toda boa ideia tende rapidamente a ser calcificada e logo se desenvolve um fechamento para novas ideias e pensamentos. Gaston Bachelard, em La formation de l’esprit scientifique, diz: “Todo saber científico deve ser permanente reconstruído” (1938/1999, p. 8).
Em todas as instituições científicas, parece ser regra a tendência ao surgimento de grupos “religiosos” de partisans desta ou daquela teoria em voga, os quais começam a se digladiar em guerras fundamentalistas. O establishment é importante e fundamental para a manutenção e o desenvolvimento de uma ciência. A tendência de apenas implodi-lo, como se fosse uma barreira para a renovação, costuma ser deletéria, como eventualmente se vê em certas instituições universitárias em que, em nome de uma suposta liberdade, pessoas não habilitadas ou qualificadas decidem sobre os rumos a serem tomados sem considerar que a hierarquia2 também possa implicar um conhecimento diferenciado. De maneira paradoxal, em um conflito que parece insolúvel, o establishment também pode ser a morte da própria ideia que tenta preservar.
Espero que as ideias aqui semeadas sirvam de estímulo para os potenciais autores que se vejam instigados por esse tema. Nem de longe, porém, penso que abarquem toda a extensão de ideias que o tema possa fomentar.
Os artigos devem ser enviados até o dia 15 de julho de 2023. Aguardamos que muitas contribuições sejam submetidas.
Editor