Quem é ateu como eu e viu milagres como eu, Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
CAETANO VELOSO, “Milagres do povo”
Se eu sou algo incompreensível,
Meu Deus é mais
GILBERTO GIL, “Esotérico”
Adentrando quartos desconhecidos
O estímulo vindo da rbp para escrever sobre religião e estados religiosos da mente ressoou em mim como uma boa oportunidade para tentar organizar ideias a respeito do tema que já venho considerando há algum tempo.
Observo que minhas ideias sobre a dimensão mística da existência sofreram transformações. Cresci numa família em que declaradamente o assunto religião não era tratado, não fazia parte da nossa convivência. Não tínhamos rituais nem práticas religiosas, e quando o tema se apresentava, era delegado a um campo de pensamento menor e menos evoluído. Acreditar naquilo que se vê e que pode ser provado cientificamente era o valor que norteava nossas experiências e escolhas.
Eu me lembro de algo que minha mãe formulava com ironia: diante da frase “Vá com Deus”, ela dizia com humor ácido: “Prefiro melhor companhia!”.
Assim, cresci sem sentir falta de recorrer à religiosidade. Meu pai era um homem simples, estável e atento às necessidades da vida prática. Minha mãe era minha principal fonte de nutrição intelectual e se dizia ateia e agnóstica. Fazia parte da atmosfera familiar o convívio com a literatura, principalmente a prosa ficcional diversificada de autores contemporâneos. A poesia chegava através da música, a rica música popular brasileira. Era um repertório significativo, embora restrito, que auxiliava na compreensão do mundo. Não havia muito espaço para o muito enigmático ou muito obscuro, ou para o que remetesse às áreas menos acessíveis à linguagem comum. Não posso afirmar que era uma dimensão achatada do real ou excessivamente concreta, uma vez que o aspecto sensível e afetivo era bem contemplado.
Devo a essa herança uma forma de pensar e de me expressar objetiva e sintética, organizada e clara. Também credito a essa minha formação inicial uma tendência a encontrar um modo próprio de pensar, preservando minha liberdade e não me filiando a nenhuma escola de pensamento religioso, dogmático e sectário. Como psicanalista, achei confortável e familiar encontrar em Freud uma posição bastante clara em relação à religião, entendida como pensamento primitivo e oposta à busca pelo conhecimento e pelo contato maduro com a realidade.
Aos poucos, avançando no meu percurso de evolução pessoal, algumas frestas se abriram para a existência dos mistérios da vida e do mundo, uma necessidade de incluir a dimensão espiritual - a intuição do indizível, daquilo que só alcançamos pela captação poética. Também tenho uma inclinação especial para a linguagem das imagens, o que me levou ao desenho e às artes visuais. Fui estudar história da arte e busquei o diálogo entre arte e psicanálise. Isso enriqueceu meu repertório de linguagens possíveis para apreender a vida e o psiquismo.
Como na psicanálise, o movimento artístico moderno e contemporâneo rejeitou a arte religiosa ao procurar expressão para um mundo esfacelado pelas guerras. A arte religiosa, segundo os cânones da instituição Igreja, não fazia mais nenhum sentido. Ainda assim, alguns artistas propuseram aproximações com a dimensão mais espiritual, estreitando o vínculo entre perspectiva espiritual e realização artística. Como exemplo, podem ser citados Yves Klein, Mark Rothko e Henri Matisse, ao final da vida. Rothko e Matisse, inclusive, projetaram belíssimas capelas: a capela ecumênica em Houston, Texas (de Rothko), e a Capela do Rosário, católica, em Vence, França (de Matisse).
Encontrei em alguns psicanalistas aberturas que me pareceram fundamentais e que enriqueceram o meu olhar clínico, sempre alimentado pelo meu desenvolvimento pessoal. Ao acrescentar novas perspectivas, como lentes no meu aparelho óptico, experimento um acréscimo sensível e enriquecido no contato e apreensão do fenômeno humano vivo.
Neste texto, procuro pôr em diálogo alguns desses autores, os quais me levaram a uma forma pessoal de inclusão da fé, advinda do reconhecimento de uma perspectiva mística na minha prática clínica. Uso a palavra mística com o sentido de uma busca de ir além da compreensão racional do mundo. Proponho ampliar para a dimensão espiritual como postura de abertura para o desconhecido, contrária a dogmas ou comportamentos e atitudes ritualísticas organizadas por instituições religiosas.2 Penso ser essa uma postura ética e estética.
Tais reflexões também partem de uma ideia que tem estado cada vez mais presente na minha clínica e fora dela: a ideia de que usamos um percentual muito pequeno do nosso potencial criativo no consultório e na vida. Acredito que quando duas pessoas se reúnem numa sala, em um contexto - setting - bem estabelecido, com a única proposta de uma convivência que seja benéfica para a vida (no encontro analítico, o foco principal é a vida do paciente) e traga expansão e conhecimento, as possibilidades que se abrem são infinitas, e ousar é sempre assustador. Na maior parte do tempo, linhas invisíveis estreitam os espaços, promovendo rigidez e inibição. A repetição impede a inovação.
Sinto-me acompanhada nessa perspectiva por Eigen, que afirma:
Às vezes, imagino indivíduos e a humanidade como um todo como uma mansão com vários quartos, muitos dos quais talvez nunca adentremos. Talvez essa seja uma fonte para os sonhos sobre casas ou apartamentos que nos mostram mais quartos do que imaginávamos. Em geral, precisamos de apoio e permissão para ocupar alguns desses espaços desconhecidos, para entrar em uma relação criativa com o mais que somos e não sabíamos que éramos. (2016, p. 16)
Diálogos iniciais
Os autores que vou trazer aqui, de alguma forma, partem das proposições de Bion e Winnicott. Longe de pretender uma revisão bibliográfica extensa e completa, lanço mão dos autores com quem mais dialogo, usando o que faz mais sentido para mim.
Bion (1965/1983) produziu uma expansão significativa ao falar de uma postura aberta para aproximações à verdade última, ao incognoscível, postulado como O. Ele diz que há diferença entre o “saber sobre” e o “ser”. Somente o conhecimento intelectual não contribui para a mudança psíquica genuína. São as experiências emocionais que podem evoluir para O, ou, dito de outra forma, o “ser O”. O ato de fé em O se traduz em uma disciplina do analista não contaminada por memórias e desejos (Bion, 1970/1973). Para o autor, a fé é um estado científico de mente e embasa o verdadeiro conhecimento.
Winnicott, ao introduzir a ilusão como fenômeno fundamental da constituição do “ser” (para ele, “ser” é “ser criativo”), abre todo um campo de experiências, onde a onipotência torna-se vivência fundamental para realizar a potência de si. Bastante próxima de Winnicott, Marion Milner (1952/1991) sublinha ainda mais fortemente o alinhamento a uma perspectiva de caráter místico. Além da importância da experiência de ilusão, ela define dois modos de funcionamento mental: o modo focado, regido pela parte racional e pelos processos secundários de pensamento, e o modo amplo, em que se borram os contornos e a divisão entre o eu e o não eu. Esse modo amplo é o que permite a renovação criativa, a intensificação da percepção do mundo e a ampliação da consciência. São estados que se assemelham aos estados oceânicos descritos por Freud. A autora resgata os processos primários como forma de pensamento e aposta nas forças criativas do inconsciente. Também destaca a importância do vazio para os processos criativos, por meio da noção de vazio grávido. São aspectos que se apresentam ainda nos estados meditativos e nas experiências místicas, relatados, por exemplo, por monges budistas. Milner e Winnicott acreditavam que a criatividade é primária, e não uma forma de sublimar impulsos, e colocavam toda a força e potencial criativo do ser humano na essência mesma do encontro vivo entre pessoas vivas - o potencial ilimitado do encontro humano.
Os fenômenos transicionais, incluindo as crenças religiosas, têm origem na área de ilusão e são essenciais para amenizar as dores inevitáveis de ser um indivíduo separado, a ferida narcísica. Desde o início, o paradoxo se instala pela possibilidade de criar o mundo que está lá para ser criado. É a sustentação oferecida pela mãe, o aliado primário, que pode garantir um processo de amadurecimento que evolua satisfatoriamente para a conquista de uma independência, de uma autonomia do indivíduo. Os objetos transicionais evoluem para o espaço potencial, mediador das relações entre o interno e o externo. Winnicott falava de uma área de descanso, essencial para a evolução da pessoa. Os fenômenos transicionais evoluem para constituir todo o campo cultural (Winnicott, 1967/1975a).
Outras perspectivas
Franco Filho (1995), em trabalho publicado pela rbp, faz uma interessante e bem fundamentada crítica à forma como os psicanalistas, seguindo a tradição advinda das ideias de Freud, vêm tratando o tema da religião na clínica. O autor cita Bion, que afirma:
Os psicanalistas têm se revelado peculiarmente cegos para esse tópico da religião. Quem quer que seja, relembrando o que sabe sobre a história da raça humana, pode reconhecer que as chamadas atividades religiosas são, quando nada, tão inegáveis quanto as chamadas atividades sexuais. (p. 860)
No mesmo texto, Franco Filho destaca “um a priori preconceituoso, segundo o qual a conduta religiosa implicaria necessariamente num conteúdo primitivo, neurótico, a ser decodificado e extinto através da interpretação”. E de maneira um tanto irônica acrescenta que, tradicionalmente, por meio da análise, “a ilusão representada pelo sentimento religioso (que compensa a onipotência perdida da criança) acabaria sendo substituída por uma visão mais realista. O exorcismo fica completado” (p. 862). Ao usar a palavra exorcismo, o autor sublinha a violência contida nessa atitude supostamente psicanalítica, mas que se revela preconceituosa e dogmática.
Ainda nesse texto, o autor se apoia nas ideias de Winnicott para esclarecer que o caráter ilusório de uma crença, vista à luz da experiência transicional, não significa que ela seja um delírio ou algo em contradição com as demandas da realidade. Assim, religião, cultura, arte e ciência articulam-se na área transicional, não como obstrução à realidade, mas como meio de ganhar acesso a ela. Franco Filho propõe que a experiência psicanalítica pode e deve abrir espaço para contemplar essas questões, oferecendo “possibilidade de reorganização e nova representação da imagem de Deus no universo subjetivo do analisando”. Assim, “cada pessoa tem com seu Deus uma relação particular, conforme suas necessidades, mesmo que a necessidade seja a de que Deus não exista” (p. 864).
O autor também aproxima Deus - atemporal, infinito, inefável, indivisível - do inconsciente e do O de Bion. A matriz da ideia de Deus se encontra na própria estrutura do inconsciente, o que equivale reconhecer uma “dimensão religiosa” no psiquismo, e Franco Filho estimula a transgressão saudável das ideias formuladas por Freud.
Entendo essa proposta como muito importante para arejar a teoria e torná-la um corpo orgânico vivo e aberto a expansões.
Penso ser de máxima relevância a proposição de Safra (2013) que considera o ser humano como aberto, como transcendência, transcendência que o põe em instabilidade - condição existencial. Winnicott mostra a necessidade do bebê humano de ser sustentado para não despencar no não ser, na queda infinita. Essa sustentação advinda do outro será sempre necessária e, portanto, a abertura para o outro é ontológica, isto é, relaciona-se com os fundamentos do ser no mundo.
As primeiras imagens da criança sobre o divino vêm dos elementos de poder, que apresentam sentimentos de potência, anseios de alcançar estados de plenitude narcísica. Para Safra, compreender o ser humano como aberto é considerá-lo em contínua transformação; se tradicionalmente a psicanálise prioriza o tempo passado (re)vivido na transferência, essa perspectiva em aberto aponta para o futuro, enquanto anseio de uma realização que está por vir: “Somos como que afetados por nossa memória pessoal do futuro” (p. 98). O autor destaca o pensamento de Bion, na ênfase da busca da verdade última, O, a realidade não sensorial.
Safra fala de uma disposição para a vivência do sagrado que emerge do campo não representacional. Trata-se de uma experiência para além das representações verbais ou imagéticas. Acontece um transbordamento, como se a própria subjetividade fosse colocada em suspensão. As denominações sagrado e divino acrescentam atributos que também são de inegável ressonância poética para essas vivências de caráter transformador.
Bollas (1987/2015) fala de um anseio primordial por experiências transformadoras que se originam nos primeiros tempos do bebê cuidado pela mãe. Da experiência mágica de ser atendido pela mãe no tempo e na medida necessários à característica própria do bebê, fica o registro de um processo que transforma. As experiências estéticas são o reencontro com essas marcas mnêmicas, que ocorrem como abertura para transformações significativas. Buscamos ser transformados pelo encontro com o Outro, que pode acontecer na forma de obra de arte, natureza, experiência religiosa ou espiritual, ou ainda, no que mais nos interessa, no encontro da dupla em análise. Experiências transformadoras não são necessariamente gratificantes, mas ainda assim são “profundamente comoventes por causa da memória existencial que toc[aram]” (p. 64). As experiências transformadoras renovam a esperança ao mesmo tempo que lançam o eu na inquietude, na instabilidade e no desconhecido. Revelam a precariedade do ser. “A busca pelo objeto transformacional é uma busca de memória infinita, por algo do futuro que reside no passado” (p. 75).
Bollas usa uma linguagem carregada de termos religiosos, como reverencial, suplicante, súplica, misterioso e sagrado - em inglês, reverential, beseeching, supplication, uncanny e sacred. Winnicott também usava a palavra devoção para referir-se ao estado emocional da mãe nos cuidados com o bebê, assinalando o sentido de sacralidade que a mãe dá ao encontro com o filho.
Wright, no texto “The intuition of the sacred” [A intuição do sagrado] (2009), desenvolve a ideia de que as raízes da experiência religiosa se assentam no núcleo pré-verbal do self. O autor entende que a presença do sagrado se dá nos momentos significativos de uma pessoa comum - um trecho de uma música, um verso de um poema, uma paisagem, que provocam reações físicas como um arrepio na espinha ou uma taquicardia, indicadores físicos de ser tocado na subjetividade mais profunda. Wright relaciona essas experiências comuns com as religiosas, acreditando que “existe um contínuo entre esses pequenos momentos que impactam o coração e as grandes visões que eventualmente movem a humanidade” (p. 162).
A mãe provê uma forma3 ao estado emocional do bebê, através do cuidado, das entonações da voz e, principalmente, das expressões faciais, que são o primeiro espelho da criança. Wright aponta uma mudança de paradigma no pensamento de Winnicott que tem implicações para qualquer discussão da religião, porque põe a experiência não material como centro do desenvolvimento emocional. Inicialmente, nas teorizações de Winnicott, o foco estava no seio. Em sua linguagem, a resposta sintônica da mãe que atende ao gesto do bebê na medida exata da sua necessidade proporciona a vivência de que o bebê “cria” o seio. Ao deslocar o foco do seio para a resposta da expressão facial materna, que oferece o sentido de realidade e existência para a criança, surge uma qualidade mais abstrata, imaterial.
Eigen, um psicanalista conhecido por sua relação com o misticismo, encontra ensinamentos no estudo da cabala, além de se valer com grande liberdade de autores da psicanálise - Bion, Winnicott, Milner, Jung, entre outros. Em entrevista a Molino, afirma: “Sempre senti um elemento sagrado no trabalho psicoterápico psicanalítico, e nunca entendi a animosidade de tantos analistas ao sentimento oceânico” (1997, p. 107). Refere-se a Bion, que define a prática psicanalítica como um ato de fé. Argumenta que a recusa dos psicanalistas a essas proposições pode se dar por uma ameaça de fanatismo e de perda do território da ciência.
Eigen é um analista que, a meu ver, tem um pensamento bastante aberto e livre, capaz de abranger a complexidade da experiência, nas suas intensas e contínuas oscilações, e incluir o paradoxo. Diz ele:
Podemos ser realistas demais, fanáticos demais e científicos demais. Em vez de uma guerra entre essas diferentes dimensões da experiência, seria mais frutífero manter aberta a possibilidade de diferentes vozes. O que quer que seja fé para Bion, ele a associou com abertura. Ir em direção a K [vínculo do conhecimento] seria uma exclusão prematura de uma voz em favor de outra, em oposição à pluralidade e ao equilíbrio entre as vozes. (Molino, 1997, p. 108)
O mesmo autor faz ainda uma diferenciação entre a fé espiritual e a fé natural. Essa última nasce da experiência sensorial de sentir-se bem, usufruir liberdade, perceber-se vivo - uma fé que vem do corpo e está além do princípio do prazer. Não se trata de ser bom ou doloroso, mas algo da ordem do “bom demais”, “dos céus”.
Eu me lembro da poeta Adélia Prado, que em entrevista expressou uma valorização do cotidiano que alude a essa fé natural:
O grande tema é o real, o real; o real é o grande tema. E onde é que nós temos o real? É na cena cotidiana. Todo mundo só tem o cotidiano e não tem outra coisa. Eu tenho esta vidinha de todo dia com suas necessidades mais primárias e irreprimíveis. É nisso que a metafísica pisca para mim. E a coisa da transcendência, quer dizer: a transcendência mora, pousa nas coisas… está pousada ou está encarnada nas coisas. (Lauand, s.d.)
A poeta aproxima experiência poética, artística e mística. Ela vê a religiosidade numa forma ordinária de estar no cotidiano. A transcendência mora nas coisas mais comuns.
No livro Cabala e psicanálise, Eigen fala também em fé paradoxal, embasado em Winnicott. A fé paradoxal abrange diversas dimensões sem se reduzir a uma única adesão religiosa. Para Eigen,
os escritos de Winnicott sobre centelhas vitais se conectam com o tema cabalístico de fagulhas divinas espalhadas por todos os lugares. Seu núcleo incomunicável está relacionado ao Ein Sof da cabala, o infinito que está além dos limites e da concepção. (2016, p. 14)
O conceito de núcleo incomunicável (Winnicott, 1963/1983a) torna-se fundamental na clínica, demandando respeito às áreas de silêncio e de segredo dos pacientes. Eu diria que só o silêncio permite acesso aos ecos das vozes silenciadas ou nunca traduzidas em linguagem compartilhada. Há uma essência em nós que se mantém não desenvolvida, não nascida, um lugar originário. Bollas (1989/1992) se refere ao conhecido ainda não pensado.
Nina Coltart afirmava ser uma personalidade religiosa. Não definia exatamente o significado disso, mas aludia a uma necessidade de acreditar, adorar, depender. Teve uma educação cristã, mas adotou a religião budista. De alguma forma, dizia separar sua fé religiosa de sua prática psicanalítica. Em sua perspectiva, budismo e psicanálise não estavam em confronto, mas se potencializavam e se fortaleciam mutuamente. Para ela, o budismo proporcionou
um aprofundamento da atenção na prática clínica, uma atenção centrada no aqui e agora … a ponto de algumas sessões se assemelharem à meditação. Suspendo meus pensamentos e me movo em direção ao O de Bion, uma apercepção intuitiva da pessoa em direção à verdade. (Molino, 1997, pp. 203-204)
Para Winnicott, a apercepção criativa
refere-se ao olhar criativo, próprio do mundo subjetivo; está ligada à palavra “criar”, no sentido de “trazer à existência”, ao fato de alguém ser capaz de continuar a ver tudo como se fosse pela primeira vez. Quando há saúde, essa capacidade de olhar criativamente o mundo não desaparece. (Dias, 2017, p. 199)
A apercepção criativa é o que permite ter uma visão própria - da psicanálise, da religião e de tudo que vem apresentado de forma pronta.
Um autor particularmente instigante é Adam Phillips. Também em entrevista a Molino, ele acrescenta ao diálogo que proponho aqui a dimensão do erotismo. Phillips enfatiza a importância do prazer e faz uma afirmação curiosa:
Entendo que os prazeres da ciência se concentram no prazer do consenso e estou mais interessado na possibilidade de compartilhar linguagens privadas, o que é uma contradição. Estou interessado nas possibilidades de prazer, em prazeres sensuais e eróticos. Me parece que o comediante, o amante e o místico permanecem próximos ao erótico. (1997, p. 133)
Acrescenta que aquilo que o interessa no misticismo são as intensidades, conhecer as intensidades, encontrar representações, trazer as intensidades para o mundo compartilhado: “Não podemos deixar de ser amantes, no sentido mais amplo. … Existe um prazer erótico na curiosidade científica, e a ciência não pode se tornar clichê, distanciada e ligada à exploração e à dominação” (p. 134).
O diálogo com os autores evidencia a dimensão própria e insubstituível de cada um. A religiosidade pode ser uma conquista advinda de um processo maturacional sedimentado em experiências reais. Não é um processo intelectual. Winnicott desacreditava de qualquer “ensino” de moral ou religião; para ele, somente um processo natural de desenvolvimento, num contexto adequado de cuidado, e boas experiências de vida poderiam proporcionar a “crença em”:
A ideia de um Deus pessoal não é válida para uma criança que não teve a experiência de seres humanos, pessoas, humanizando as aterradoras formações do superego, diretamente relacionadas com os impulsos e fantasias infantis que acompanham o funcionamento do corpo e as cruas excitações instintivas. São as experiências necessárias para pavimentar o caminho da integração entre amor e ódio. (1963/1983b, p. 95)
Matisse: religião e arte
Um dos meus artistas favoritos é Henri Matisse, e o introduzo aqui porque, ao longo do tempo, ele se posicionou a respeito do tema religião. A relação dele com a religião foi se modificando, mas sempre teve certa ambiguidade. Não se considerava religioso, mas admitia um componente espiritual no seu trabalho.
Em mais de 60 anos de trabalho, Matisse sobreviveu a três guerras e a vários problemas de saúde, viajou pelo mundo para pintar e explorou diferentes técnicas além da pintura, passando por escultura, gravura, litogravura e até por colagens com papel pintado e recortado. No fim da década de 1940, assumiu publicamente o projeto de construir e decorar uma capela católica por iniciativa própria, a partir da proximidade com a freira Jacques-Marie. Matisse sentia-se grato pelos cuidados que recebeu das freiras de Vence, num período de convalescença, após uma cirurgia no intestino.
Nessa capela, o artista pôs grande intensidade expressiva em desenhos em preto e branco que usam a força de linhas simples, num painel sobre o martírio de Cristo, onde procurou exprimir a dor da existência humana, e bem em frente, como contraponto, grandes e coloridos vitrais cuja força emana da luz. De um lado, a dor; do outro, a luz.
Matisse nunca se disse religioso. Para ele, Deus estava na pintura, no ato de criar, ofício de toda uma vida dedicada à arte. Em suas palavras: “Não sei se tenho fé ou não. Talvez eu seja mais budista. O essencial é trabalhar num estado de espírito próximo da prece” (2007, p. 316).
Segundo Lydia Delectorskaya, a palavra Deus não tinha um peso excessivo para Matisse. Ele era e continuou a ser um livre-pensador. Existe alguma coisa acima de nós, alguém. Mas esse alguém não é necessariamente uma divindade. É “um outro que não eu” (p. 321)
Entendo que Matisse pôs na arte toda a possibilidade do gesto que tem esse poder transformador. Para ele, arte e religião eram uma coisa só. Em entrevista a Charbonnier, que indaga se existe uma arte religiosa, o artista responde:
Toda arte digna desse nome é religiosa. Por exemplo, uma criação feita de linhas, de cores: se essa criação não é religiosa, ela não existe. Se essa criação não é religiosa, não passa de arte documental, de arte episódica. … Que não é mais arte. Que não tem nada a ver com arte. (p. 314)
Dizia Matisse que mesmo suas odaliscas foram pintadas com esse sentimento religioso. Portanto, nenhum conflito entre, de um lado, o erotismo de suas mulheres nuas e suas odaliscas e, de outro, sua afirmação da presença do divino no ato criativo.
O pintor não acreditava que tivesse um talento ou um dom artístico. Pensava que sua arte era o resultado de muito esforço para compensar essa ausência (Oliveira, 2020). É essa atitude de fé que põe intensidade no gesto e caracteriza a singularidade do ato criativo em qualquer área da experiência humana.
Ver na escuridão
Eu diria que não me considero uma personalidade religiosa, mas percebo que, ao me deixar afetar pelas experiências e me abrir para o conhecimento dessa dimensão espiritual, vivo uma ampliação e intensificação da minha fé e no potencial da relação humana, e me vejo tentada a chegar mais perto de algo que seja verdadeiro e genuíno no “eu em si mesmo”. A psicanálise pode ser um trabalho longo, facilmente submergido pela mesmice do cotidiano, invadido por uma falsa monotonia.
Como diz a letra da música “Choro bandido” (Lobo & Buarque, 1985):
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
A sensibilidade do analista, seu principal instrumento, está sujeita a tudo que cega, entorpece e anestesia o contato com as forças propulsoras da vida em transformação - os labirintos e os alçapões.
Eu me lembro de uma experiência de análise com a paciente Luz. Foram muitas e sofridas turbulências, que se repetiram por anos. Geralmente, envolviam momentos de separação. Por vezes, a ideia era de que andávamos em círculos e não saíamos do lugar. Isso era desgastante. Luz apresentava características borderline, uma pele psíquica muito fina, e tudo a atingia de maneira intensa, causando muita desorganização. Havia uma perda de contornos mínimos para conter suas emoções, que eram vividas como disruptivas.
Tornava-se hostil e raivosa. Apesar do desgaste, o processo analítico ativou processos regenerativos. Sobrevivemos e a análise prosseguiu.
Winnicott, em “O uso de um objeto e relacionamento através de identificações” (1969/1975b), aponta a importância de o analista sobreviver, deixar-se destruir, sem retaliar. A sobrevivência garante a continuidade e a crença na permanência.
Após um desses momentos caóticos, passado o pior, ela me disse com convicção:
PACIENTE: Só mesmo nascendo de novo…
ANALISTA: Por que não? Aqui isso é possível!
PACIENTE: [com humor] Como você está poderosa!
E assim seguimos nosso trabalho, que foi longo, intenso e frutífero. Luz se fortaleceu para lidar com as dores inevitáveis, desenvolveu recursos, ganhou contornos mais nítidos, ficou mais inteira, integrada. Amadureceu.
Acredito mesmo que a análise proporciona transformações que equivalem a nascer de novo. O ser humano tem essa capacidade de se renovar. Pode nascer muitas vezes. As fraturas são incuráveis, mas paradoxalmente podem ativar a criatividade. Como na arte japonesa de renovar peças trincadas, chamada de kintsugi, as cicatrizes são valorizadas e transformadas com linhas de ouro.
O olhar do analista reconhece e autoriza, acolhe e oferece condições para que o processo de amadurecimento e apropriação daquilo que se é possa acontecer. Eigen relaciona a fé com “uma maneira de experimentar que é realizada com todo o ser, com todo o coração, com toda a alma e com todo o poder” (1981, p. 413). Assim enxergo a prática clínica: o consultório como um templo, o setting como o palco em que a mágica pode acontecer. Procuro ter em mente essa dimensão e não perdê-la de vista. Como nas práticas meditativas, se você se deixar distrair do foco da atenção, perceba e volte para o foco. Momentos de escuridão e momentos de luz.
Sem dúvida, o ato de fé, a crença no potencial do encontro “entre dois” em direção ao verdadeiro e genuíno, é condição necessária e fundamental para que a mágica se dê - mágica que, desde o início da vida, depende da delicada e complexa relação com um Outro, capaz de acolher incondicionalmente aquele que nasce para a vida e para o mundo. O fenômeno da ilusão, base para o viver criativo, renova-se ao longo da vida.
Lembro a famosa frase de Rumi, poeta e místico do século 13, que usei como título deste texto: “A ferida é o lugar por onde a luz entra”.