Las ideas no son de nadie. Andan volando por ahí, como los ángeles.
GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, Del amor y otros demonios
Introdução
Por “experiência dos místicos”, ou “experiência mística”, designo um conjunto de disposições de base afetiva que implicam um estado peculiar de consciência, estado esse referido ao contato com o “sagrado”. Falar de experiência mística não é necessariamente falar de religião ou de misticismo.
A religião é um conjunto de crenças na existência de forças sobrenaturais; a manifestação de tais crenças se dá mediante doutrinas e rituais próprios que envolvem, em geral, preceitos éticos (Ferreira, 1986). O termo misticismo comporta acepções diversas. Tanto pode se referir a um movimento em direção à generalização, racionalização e ideologização da experiência mística, como pode remeter a experiências particulares, a disposições idiossincrásicas sem filiação a “ismos”. Para escapar ao campo da primeira acepção, que não nos interessa, preferimos, aqui, apenas considerar “experiências que se realizam no plano do sagrado” ou, simplesmente, “experiências místicas”. Quando mencionamos essas experiências, não estamos, necessariamente, dando a elas conotação ou interpretação religiosa. A experiência mística pode ser experimentada por não crentes. O escritor Jorge Luis Borges, confessadamente agnóstico, relata em sua vida a ocorrência de experiências místicas por duas vezes e delas nos deu preciosa descrição.
O reino do sagrado
Tomo emprestada de Galimberti (2000/2003) a seguinte conceituação: sagrado é palavra indo-europeia que significa “separado”. A sacralidade, portanto, não é uma condição espiritual ou moral, mas uma qualidade inerente ao que tem relação e contato com potências que o homem, não podendo dominar, percebe como superiores a si mesmo e, como tais, atribuíveis a uma dimensão, em seguida denominada divina, considerada separada e outra com relação ao mundo humano.
O autor acrescenta que a tendência humana diante do sagrado é ambígua. O homem tende a se manter afastado dele e, ao mesmo tempo, é por ele atraído. Galimberti afirma que essa ambiguidade é essência de toda religião, uma vez que ela se situa na cesura que garante, simultaneamente, a separação e o contato, os quais ficam regulados por práticas rituais capazes de evitar, por um lado, a expansão descontrolada do sagrado e, por outro, sua inacessibilidade.
Enfim, a religião mantém o campo do sagrado, a um só tempo, separado e acessível aos homens. A tradição do cristianismo, talvez por se colocar como representante “oficial” de uma força mediadora e apaziguadora entre o sagrado e o profano (profano: aquilo que se desenvolve fora do templo), sempre deixou patente sua atitude de desconfiança diante de seus místicos, cuja voz nunca se mostrou cordata com as regras estabelecidas pelas autoridades.
Freud, um agnóstico que adentrou no reino do sagrado
Essa afirmação não significa que Freud tenha se preocupado com o misticismo ou com a experiência mística. É conhecida sua correspondência com Romain Rolland, na qual afirmava que o misticismo nunca esteve em sua linha de preocupações. Freud (1930/1977c) achava que a sensação de sentimento oceânico, ligada às chamadas experiências místicas, era apenas a repetição do sentimento egoico de ampliar seus limites, semelhante aos estados primitivos da fusão com a mãe. Portanto, o sentimento oceânico seria apenas um estado regressivo.
Não obstante essa explicação reducionista e seu desinteresse pelo assunto, Freud voltou a mencionar o misticismo já no fim da vida, numa breve anotação: “Misticismo é a obscura autopercepção do reino exterior ao ego, do id” (1938/1977a, p. 336). Podemos pensar que, com essa afirmação, praticamente sem contexto mais preciso ou amplo, Freud tentava resgatar o caminho da genial intuição que havia tido, muitos anos antes, em direção à percepção do inconsciente dinâmico e sua formulação como núcleo estruturante da psique. Freud descentrou o sujeito de sua consciência e o centrou no reino da chamada realidade psíquica, em cujo núcleo estão o inconsciente, as pulsões. Em outras palavras, Freud chamou nossa atenção para “algo” além das experiências sensíveis (melhor dizendo, sensoriais) e, com isso, apontou para o que já estava presente, mas inacessível à observação habitual.
E que relação tem isso com o sagrado mencionado antes? Em trabalho anterior (Franco Filho, 1998), tive oportunidade de abordar essa relação, ao mencionar interessante ensaio de Bomford (1990) no qual o autor apresenta um relevante paralelo entre a noção de atributos da divindade formulados pela teologia e a noção freudiana das qualidades do inconsciente. Vejamos o quadro (ligeiramente modificado por mim):
atributos da divindade | atributos do inconsciente |
Eternidade Infinitude Não contradição Indivisibilidade Ato puro |
Atemporalidade Ausência de limitação espacial Onipotência Deslocamento/condensação Equivalência entre realidade interna e realidade externa |
Como se pode depreender dessa comparação, há uma “equivalência de representações” entre o que se entende por divindade e o que Freud descreveu como atributos do inconsciente. Essa equivalência de representações (que não significa identidade ontológica) permite pensar que ambas as noções são referentes ao plano do sagrado. Assim, a chamada realidade psíquica - expressão cunhada por Freud, cujo conteúdo remete ao inconsciente - situa-se no mesmo aparente descentramento em que se coloca a noção do sagrado, como algo separado, constituído à parte do registro lógico-formal. Com essa genial intuição, Freud insere nosso ser no âmago de uma realidade opaca ao sensório e que, por ser inefável (indizível), fica fora da linguagem discursiva e só é acessível pela experiência.
No entanto, essas aproximações que assinalamos não se esgotam no plano citado. Eigen (1998) nota que, em muitas ocasiões, Freud se valeu de imagens tiradas do mito e da religião para expressar o processo criativo. Imagens místicas usadas espontaneamente para representar o bloqueio criativo - luta, agonia, regozijo, efusão, descoberta - tornaram-se parte da linguagem do encontro clínico. O notável, porém, é que o criador da psicanálise foi além do emprego espontâneo dessas imagens, que são comuns nas considerações sobre o sagrado. Ao formular um método para a abordagem da realidade psíquica, introduziu nele condições que apresentam grande proximidade com a chamada via mística para o contato com a realidade última. Vejamos:
1) O método psicanalítico encaminha um conhecimento da realidade psíquica que vem da experiência de ser. Não se trata, aqui, de saber sobre, mas de viver a experiência do inconsciente na sessão. Freud já apontava que “um paciente nunca se esquece novamente do que vivenciou sob a forma de transferência: ela tem uma força de convicção maior do que qualquer outra coisa que possa adquirir por outros modos” (1940/1977b, p. 204). Da mesma forma, o conhecimento místico não é dado por doutrinas e regras canônicas. O místico não faz discursos sobre a divindade (isso é tarefa dos teólogos). Ele experimenta estados de qualidade intuitiva, nos quais toda a sua afetividade e - por que não? - toda a sua sexualidade estão engajadas. Nada escapa desse mergulho. Rizzuto (1996) sintetiza a aproximação entre a experiência mística e a psicanalítica afirmando que tanto o conhecimento experiencial psicanalítico, no contexto de uma relação ritualizada e profundíssima (nossa sessão), como o conhecer experiencial e inefável do místico partilham do modo mais essencial do conhecer humano.
2) Nas duas condições - a psicanalítica e a mística - o conhecer pela experiência está intrinsecamente ligado a um processo de transformação: “O analisando e o místico se parecem no fato de que os dois são transformados irreversivelmente pela experiência com um ser especial, seja ele humano ou transcendente” (Rizzuto, 1996, p. 65). Bion salientou muito esse aspecto, ao qual voltaremos mais adiante.
3) Outro ponto de contato entre essas experiências mencionadas pode ser captado na conhecida recomendação de Freud para que o analista trabalhe em estado de atenção livremente flutuante. Trata-se da contraparte, no analista, da associação livre do paciente, com a qual Freud inaugurou efetivamente seu método original. A finalidade: manter espaços mentais disponíveis para acompanhar os movimentos do inconsciente (seu e do paciente) na sessão, sem preconceitos e sem saturação pelo já conhecido, ou por aquilo que “deve ser” captado como imposição de desejos próprios.
Essa é uma disciplina que os místicos conhecem bem, ao desenvolver um estado receptivo que os arremessa a novos espaços na expansão psíquica experimentada. Com isso, a experiência mística se constitui em experiência cognitiva que opera em determinados níveis de consciência não habituais. A esse respeito, vale lembrar também a recomendação de Freud numa carta a Lou Andréas-Salomé: “Devemos nos cegar artificialmente até vislumbrar um facho de luz na escuridão”. Essa é uma afirmação que soaria familiar ao místico São João da Cruz, a partir de suas vivências das “noites escuras”, como condição de aproximação da divindade. Tanto para o analista como para o místico, a verdade emerge no seio de um paradoxo: “Só na escuridão se pode captar a luz”.
Breve reflexão
Ritos, doutrinas, teorias (mediações linguísticas), religiões, setting analítico - qual a função dessas intermediações? Precisamos delas para entrar em contato com o âmago de nós mesmos? A resposta é, até certo ponto, sim, porque procuramos uma realidade que, simultaneamente, se aproxima e se afasta de nós. Ela está separada e, ao mesmo tempo, nos constitui e invade nosso cotidiano. Foi essa a intuição genial de Freud que o levou a formular a noção de inconsciente. É assim o sagrado: presente e separado. De certa forma, o sagrado parece separado porque precisamos dele assim. Ele comporta uma luz (para os místicos), uma turbulência emocional (para os psicanalistas), cuja intensidade total não poderíamos suportar. Nesse nível, os limites entre sanidade e loucura são tênues.
Por outro lado, somos atraídos por esse reino infinito como por um tropismo. A saída para o impasse criado nessa fronteira tem sido tentada pela religião e pela psicanálise. Nas religiões, tanto as doutrinas como os cultos funcionam como processos transicionais (na acepção de Winnicott) no contato com a divindade. Em psicanálise, esse processo transicional é, na sessão analítica, apresentado como conjunto de experiências emocionais vividas no seio da dupla analista-analisando, sendo essas experiências representadas posteriormente pela palavra interpretativa. Sem essas mediações, o místico, o religioso comum e nós mesmos, todos nos perderíamos nas turbulências desse território.
Não obstante todas essas formas de aproximação, continuamos a nos desconhecer; mediante essas experiências especiais, temos apenas breves lampejos de nossa realidade. Em nosso âmago, somos inefáveis para nós mesmos, sejam quais forem as vias que possamos tomar para essa aproximação. Creio ter sido a respeito dessa questão que Winnicott empregou o termo sagrado para apontar o “incommunicated core of self that shines through unintegration” (citado por Eigen, 1998, p. 47). Ou que, na palavra dos místicos, expressa uma obscuridade que é, ao mesmo tempo, excesso de luz. Não há mística ou psicanálise que consiga se expandir sem tolerar esse paradoxo.
Bion e o modelo místico na abordagem da realidade psíquica
Talvez nenhum outro analista mais do que Bion tenha se utilizado do modelo místico para falar do que acontece numa sessão de análise, na relação entre a mente do analista e a do analisando. Fica claro que a preocupação de Bion não é com os desdobramentos religiosos das experiências dos místicos, mas com a experiência mística como modelo para se pensar em psicanálise, assim como ele tomou outros modelos (o científico, o artístico) com o mesmo objetivo. Ele chega a fazer uma distinção, em vista da psicanálise, entre esses três modelos, afirmando que as formulações religiosas (aqui ele não empregou a palavra místicas) preenchem melhor os requisitos para a evolução do contato com o âmago da realidade psíquica (transformações de KγO, como denomina a experiência) do que as formulações matemáticas (Bion, 1965/1991).
Essa afirmação de Bion é coerente com o fato de ele tomar, como ponto de partida, a asserção de que as qualidades psíquicas com as quais a psicanálise lida não são percebidas pelos sentidos. Ou seja, os fatos da experiência psicanalítica pertencem, basicamente, não a uma realidade sensorial, mas a uma realidade psíquica, a qual se refere a processos inconscientes que operam numa área de não concretude, infinita, indizível (Bion, 1970/1973). Para se referir a essa realidade, Bion criou um símbolo, O, que denota “the numinous realm of the unconscious, where the human and individual truth resides - ultimate reality, absolute truth” (Sandler, 2005, p. 527). O é o ponto de partida dessa verdade, acessível apenas por meio de suas transformações. Esse ponto de partida, na cultura, já chegou a ser traduzido em várias linguagens: realidade última, divindade, coisa em si (Kant) etc. O é um termo propositadamente vazio, criado para não ser saturado com significações reducionistas.
As características dessa realidade - ou de O, na terminologia de Bion - criam uma questão de método que é, simultaneamente, um desafio à psicanálise: como, então, ter acesso a uma realidade que é infinita, indizível? Bion tenta uma resposta e dá uma sugestão: o analista tem de abrir mão da segurança vinda dos enquadramentos têmporo-espaciais, despojando-se do exercício de algumas funções conscientes. Nesse momento, entra o modelo místico, que passaremos a expor.
Um ponto de partida
A exposição sobre o modelo místico de observação em psicanálise pode começar com o não:
- não é atitude religiosa;
- não é meditação contemplativa;
- não é tentativa de iluminação;
- não é inspiração de eleitos;
- não é versão psicanalítica do achismo, ou seja, tendência para colocar as asserções em termos de opinião pessoal (“eu acho que…” etc.).
Essa série de nãos fornece a chave para introduzirmos a ideia central presente no modelo em questão, que é a negatividade.
A negatividade, também presente na atitude dos místicos, surge na obra de Bion como método de conhecimento, como via epistemológica e não religiosa. Ele levou a negatividade às últimas consequências em sua proposta de que o analista deve trabalhar sem memória, sem desejo, sem compreensão. Seu conteúdo é: em análise, o essencial é que se possa conviver com a frustração de não saber. A finalidade é criar um espaço interno para viver a experiência e só depois tentar colocá-la em palavras que não procurarão saturá-la com formulações acabadas.
Para Bion, a presença dos fatores memória, desejo, compreensão está ligada à necessidade de descargas sob o domínio do princípio do prazer; trata-se de representantes de resistências. A abolição (na situação analítica) do uso da memória e do desejo de compreensão, ou de cura, é condição que vai permitir a atenção livremente flutuante preconizada por Freud. Segundo Rezende (1993), memória e desejo afastam o analista do contato com a experiência emocional do aqui e agora. Dissociam a mente do analista, ao pretender uma posse do passado (pela memória) e do futuro (pelo desejo). O que Bion objetivava com essa disciplina era uma ruptura parcial com a realidade, diminuindo o contato com o que é sensorial, para dar uma dimensão psíquica à realidade. A intenção é o desenvolvimento da sensibilidade por parte do analista.
Volto ao emprego de uma linguagem negativa para esclarecer algumas questões que a proposta de Bion possa suscitar a esse respeito:
1) Essas formulações não implicam fazer apologia da ignorância, nem minimizar a importância das teorias. A proposta contém a crítica a um saber que dispensa a observação, apoiando-se na autoridade dos textos, no já sabido, no já visto.
2) “Sem memória” não tem a ver com esquecimento. Trata-se de controlar por uma disciplina a presença de lembranças, teorias, o que já foi dito ou ouvido. A célebre e até cômica imagem estereotipada do analista com seu bloco de anotações atrás do divã não tem lugar em psicanálise.
3) “Sem memória” não significa rejeição sumária de qualquer imagem, sonho, ideia ou experiência passada que aflore espontaneamente ao analista durante a sessão. A crítica não é à memória, mas à tentativa de rememorar.
4) “Sem desejo” não sugere a eliminação das marcas do afeto durante a sessão. Trata-se da tentativa de exclusão voluntária de todo desejo de cura, compreensão, superioridade, poder analítico sobre o paciente, ou sobre os colegas, que pode ser intenso e persecutório, a ponto de substituir os vínculos com aquela experiência em particular. Pela preservação desses vínculos, diminui o risco de o analista se entregar a uma atividade alucinatória, que é fruto do desejo, sob a égide do princípio do prazer.
5) “Sem compreensão” não implica renúncia aos significados, mas contém uma crítica à precipitação em obter significados e preenchê-los com ideias prematuras. O que Bion critica é uma compreensão artificialmente forjada que não respeita a experiência e os dados que ela pode fornecer.
6) Será possível ao analista atingir completamente as “isenções” propostas? Provavelmente não. Sem visar resultados onipotentes, elas se situam num campo de tendências necessárias, a serem atingidas em maior ou menor grau, conforme a condição que será anunciada a seguir.
Capacidade negativa
Para ter acesso ao vértice místico e viver a condição de sem memória, sem desejo, sem compreensão, Bion diz que é necessário o desenvolvimento da capacidade negativa. A expressão é emprestada de Keats, quando este se referiu a Shakespeare como tendo “a capacidade de estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer tentativa irritável de alcançar fato e razão”. Essa capacidade tolera a desconstrução do já sabido para se ver face ao não saber até que surjam novas possibilidades de sentido, até então insuspeitadas. Ela depende de condições de personalidade do analista que lhe permitem conviver com interrogações. Tal disciplina abre caminho para o que vem a seguir.
Fé
Deixemos que o próprio Bion fale:
Pode-se querer saber qual estado mental é bem-vindo se desejos e memória não o são. Um termo que corresponderia aproximadamente ao que necessito expressar é fé - fé na existência de uma realidade e verdade última - o desconhecido, o desconhecível infinito informe. (1970/1973, p. 35)
Pela supressão de memória, desejo, compreensão, abre-se espaço para os atos de fé. A fé constitui um estado mental no qual o contato com O, na experiência (é bom salientar essa palavra), pode evoluir para uma aproximação que nunca será completada. Resumidamente, a fé consiste na segurança (e não na certeza) de que uma suposição ou uma intuição encontre uma contraparte na experiência da realidade. O resultado desse encontro, se houver, não será uma verdade absoluta, mas um pensamento em expansão que admite novas reformulações.
É forçoso reconhecer que, por estar carregado de conotações religiosas, tal termo - fé - pode levar ao risco de confusões e suspeitas de se estar transformando o campo analítico em prática religiosa comum; no entanto, Bion quer se referir a um estado mental que tem operatividade exatamente no campo científico. Nessa referência, ele não está só, como adiante veremos.
Outra confusão possível é com crença. A operação de fé à qual nos referimos nada tem a ver com crença, como salienta Rezende. A crença é uma tentativa de substituir a experiência da realidade, e ela precede a ciência e prescinde dela, numa suposição de que já se chegou lá. Por seu lado, a fé é uma forma de viver a experiência no prisma da negatividade, ou seja, na admissão de que nem tudo foi alcançado plenamente e nem o será. Fé é ponto de partida, não de chegada, em relação a O.
At-one-ment
A partir dos estados mentais de fé, evolui a experiência de O. Essa experiência não é uma operação intelectual de conhecimento. O contato com O em psicanálise é uma experiência afetiva, ou seja, vivida mediante os afetos na relação analítica. Não é uma experiência de conhecer, mas de ser. Bion descreve essa situação como at-one-ment, o que se poderia traduzir aproximadamente como um estado mental em que o analista é transformado pela experiência de O como condição para conhecê-la (ou melhor, para transformá-la em conhecimento). Outras acepções do termo poderiam ser: comunhão, ser-um-com, ser em sintonia com a realidade última. Esse contato é modificador, possível somente com tolerância à frustração e à dor; ele se torna uma experiência de ser.
Essa condição de transformação como forma de aproximação da realidade não é uma opção metodológica, mas uma imposição da própria natureza do campo. Bion esclarece por quê:
É impossível saber a respeito da realidade, nem da capacitação humana para sabê-lo. A convicção de se saber ou vir a saber a respeito da realidade é falaz por não ser ela algo de que se possa saber. É impossível saber sobre a realidade como o é cantar batatas; cultivam-se ou se colhem ou se comem, mas não se cantam batatas. A realidade só pode ser “sida”: requer-se um verbo “ser” transitivo, para usá-lo na relação com o termo “realidade”. (1965/1991, p. 157)
Em resumo, para Bion, a experiência da realidade última, só se pode experimentá-la sendo. Nessa mesma linha, psicanálise real é a psicanálise que encaminha essa experiência de ser de acordo com o real. Ela é realizada (no sentido que o termo tem na língua inglesa) como experiência de “algo” que dá sentido ao que foi vivido na relação bipessoal. Esse “algo” é a verdade, em termos psicanalíticos. Ser psicanalisado é viver essa experiência, o que é diferente de saber sobre psicanálise.
O que isso tudo tem a ver com a mística
As considerações feitas decorrem do fato de que, a Bion, não passou despercebido o enorme alcance epistemológico de formulações místicas em várias culturas.
O que nos ensinam alguns místicos: os elementos fundantes da experiência mística são a fé e o vazio (a negatividade).
Quem melhor expressou essa negatividade na tradição cristã foi Mestre Eckhart (século 13), expoente da teologia negativa. Ela poderia ser assim sintetizada: é mais verdadeiro o que negamos de Deus do que todas as afirmações que sobre ele podemos fazer. Em Eckhart, há uma proposição de grande valor epistemológico, contida numa célebre fórmula: “Não se pode ver senão pela cegueira, conhecer senão pelo não conhecimento, compreender senão pela desrazão”. Nicolau de Cusa (século 15), nessa mesma linha de pensamento, propunha, para chegar a Deus, uma “ignorância educada”: temos de encontrar maneiras de desaprender as coisas que nos distanciam da percepção da verdade profunda.
Apropriando-me dessas afirmações como modelo para a psicanálise: se o cerne da realidade psíquica é indizível, se o inconsciente (sua expressão essencial, segundo Freud) está além dos nomes pelos quais tentamos designá-lo (ou aprisioná-lo), essa negatividade nos faz tomar consciência do abismo existente entre o que podemos dizer sobre a mente e ela mesma. Daí que discurso sobre a mente não é o mesmo que sentir a mente.
Bion (1965/1991) também menciona São João da Cruz (século 16) como modelo para a abordagem da experiência analítica. A psique em evolução na psicanálise sofre transformações parecidas com as da alma que busca a união divina. Essas transformações operam inicialmente na linha da negatividade, do despojamento e da fé no que ainda não se faz conhecido ou presente pela sensibilidade. Estabelecendo um paralelo entre a experiência mística das “noites escuras” de São João da Cruz e a experiência psicanalítica na proposta de Bion, temos a seguinte relação:
1) Primeira noite
- Para São João: é um ponto de partida. É a noite dos sentidos, da privação das satisfações imediatas. Trata-se de não ter e se privar de ter.
- Para Bion: relaciona-se à disciplina de privação de memória e desejo, que antecede a operação de fé tal como pode ser entendida na psicanálise e em outras ciências.
2) Segunda noite
- Para São João: tem a ver com o caminho que a alma trilha, em estado de fé, para a união com Deus. Como atitude negativa para o entendimento, também é noite escura.
- Para Bion: é o exercício do ato de fé como atitude epistemológica.
3) Terceira noite
- Para São João: tem a ver com o ponto para onde se caminha, Deus, que é igualmente ponto escuro nesta vida.
- Para Bion: tem a ver com a experiência de O, inalcançável pelos sentidos, inominável pela linguagem.
Num e noutro autor, três situações são convergentes. A primeira se refere à privação como condição de disponibilidade. A segunda é a aflição presente quando se tenta alcançar o abandono de vínculo ou definição. O termo bioniano correspondente a essa aflição é turbulência emocional. A terceira convergência é que, para ambos, essa viagem de união mística - com Deus, para São João; com O, para Bion - se faz não pelas palavras, mas pela experiência de ser. Ou seja, atingimos a realidade última - a deidade, para os místicos; a realidade psíquica, para a psicanálise - não pela teologia ou pelas teorias psicanalíticas, mas por um conhecimento experiencial que passa pela negação e pela fé.
Encontramos em São Tomás de Aquino (século 13), na Suma teológica, afirmação semelhante a essa última: “O misticismo é o conhecimento de Deus pela experiência”.
No hinduísmo e em outras correntes místicas, localizamos aproximações preciosas ao tema da negatividade: o esvaziamento como condição de preenchimento pela experiência mística.
O que aguarda a dupla psicanalítica nesse caminho “escuro”
Voltando à turbulência emocional.
Para Bion, o elemento fenomenológico que vincula a experiência psicanalítica à experiência mística é a turbulência, traduzida por termos como aniquilação, pânico, fragmentação, a ameaça dos objetos bizarros. O homem face a si mesmo, vivendo um colapso mental com horror. Talvez ninguém tenha descrito essas condições com tanta contundência como Bion, por tê-las vivido com intensidade, ao longo de sua vida (Eigen, 1998).
Assim, o encontro com O não se dá na placidez do nirvana, mas na turbulência, vivenciada como catástrofe. Loucura seria a noção próxima às condições mencionadas. A área de contato com O, tanto na experiência mística como no insight psicanalítico, é muito próxima da loucura. Ambas contêm um vórtice de sensações e emoções, as quais arrastam o self num turbilhão que, ao mesmo tempo, conduz ao vazio, ao informe desconhecido.
A diferença entre o psicótico e o psicanalista, ou o místico, é que o psicótico se perde nesse vazio e não se recupera. Já os últimos, graças à capacidade negativa, têm a oportunidade de se resgatar desse quase aniquilamento e vivê-lo numa experiência de ego. Conclui-se, então, que a turbulência vivida pode conter uma experiência tanto de destruição como de construção.
Em termos clínicos, esse paradoxo leva o paciente a um dilema. Segundo Bion (1965/1991), se ele está tentando ser colaborador, tem duas escolhas. De um lado, pode eleger a “sanidade”, que é poderosa e destrutiva. De outro, pode eleger a criatividade, que é impotente e “insana”.
E a que se reporta essa construção num espaço de violência? Refere-se ao despertar da consciência (ou insight). É uma experiência de contato com O, com a verdade. Em psicanálise, com a verdade a respeito de si mesmo. E por que isso poderia ter efeitos tão turbulentos? Sandler (2001), parafraseando Bion, apresenta uma resposta: “Truth is too heavy a load for the desirous beast to carry”. No homem, podemos constatar um impulso tanto para a procura da verdade como para o afastamento dela. Um paradoxo que sempre nos acompanha. A experiência mostra que o homem pode se manter na loucura, para não ter contato com a verdade, e pode enlouquecer, porque tomou contato com ela. Essa condição, sempre marcada pela violência, é parte de cada hora analítica. Daí a advertência: “Making the best of a bad job” (Bion, 1979).
Questão: pode a psicanálise de Bion conduzir a um misticismo?
Minha resposta pessoal é: não. Se eventualmente acontecer, será mais por conta de precipitados leitores do que por ele próprio.
A opção pelo vértice místico na observação da experiência psicanalítica, a menção aos místicos, o emprego de termos tais como fé e verdade absoluta, não significam que Bion atribua uma conotação religiosa à psicanálise, nem que dê ao objeto psicanalítico o mesmo estatuto ontológico que a religião atribui à noção de divindade.
De fato, a obra de Bion não sugere que ele tenha se ocupado com o O da religião (Eigen, 1998). Seu campo é a psicanálise. O O da psicanálise é a realidade psíquica, tal como Freud a formulou. O vértice místico, em Bion, constitui postura metodológica para o acesso às experiências dessa última.
Diga-se, a propósito, que as noções de fé e negatividade, presentes nesse método, não são noções confinadas ao domínio religioso. Em vários campos, elas têm também uma presença explícita, sem que sejam tomadas como religiosas propriamente ditas. Vejamos isso.
Na filosofia, por exemplo. Em Francis Bacon (século 16), encontramos a afirmação de que o conhecimento depende da anulação de todas as crenças, exceto a da mais apurada observação. Está presente a recomendação da negatividade, para deixar o caminho livre à observação. Em Jakob, filósofo alemão dos séculos 18 e 19, discípulo de Kant, encontramos a noção de fé ligada ao conhecimento imediato. Para Hume (século 18), fé consiste numa forma de experimentar os fatos. Uma pesquisa mais acurada levantaria a presença do conceito em outros autores.
Nas ciências, figuras notáveis como Albert Einstein, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberg, matemáticos como Alfred N. Whitehead, no dizer de Sandler (1997), resvalaram ou aderiram explicitamente à experiência mística, sem que tenham se tornado praticantes de misticismo. Em Einstein (1994), encontramos referência a um estado mental no cientista que faz parte de sua aspiração à verdade e ao entendimento. Diz ele que uma das fontes desse sentimento é a fé na possibilidade de que as regulações válidas para o mundo da existência sejam racionais, isto é, compreensíveis à razão.
Nas artes, a sensibilidade dos artistas os tem levado a apreciar a importância do negativo para a apreensão das coisas, como Keats apontava em Shakespeare. A noção de obra aberta, de Umberto Eco, vai nessa direção: ela aponta para múltiplos significados, inúmeras soluções, nenhuma delas pretendendo esgotar as questões. Os poetas simbolistas viam, na imagem do deserto, uma metáfora para a criação, ou seja, uma condição de criatividade. O vértice místico que abordamos também está presente na intuição de Rilke: “Deus é a infinita obscuridade que tudo contém dentro de si”. Em Adélia Prado, poeta brasileira, o tema do silêncio remete à escuridão como condição para revelação: “A escuridão é Deus que forceja sair de dentro de mim. Já o demônio é Lúcifer - a luz”.
Questão: a proposta de supressão de memória e desejo é uma tentativa que, além de impossível, retoma pretensões epistemologicamente ultrapassadas de retorno à chamada neutralidade do observador?
Neste sentido, também, minha resposta é: não.
Nada no pensamento de Bion tem essa pretensão, e tais termos - neutralidade e objetividade - pertencem a um domínio do qual a psicanálise não compartilha.
O mesmo vale para Freud. Embora lhe seja atribuída a recomendação de neutralidade do analista, ele jamais empregou, em seus escritos, a palavra alemã correspondente à nossa neutralidade. Usava outro termo, bem diverso - Indifferenz - próximo àquele de isenção quanto aos resultados. Numa conotação mais ampla, Indifferenz também pode indicar “recepção sem preconceitos do material analítico” (Freud, 1926/1977d).
Ora, todas essas acepções têm muito a ver com a recomendação de Bion, quanto à disciplina, para a supressão de desejos. Bion não era um ingênuo. Sabia o quanto nossas mentes estão carregadas de noções preestabelecidas e da tendência a alucinar (princípio do prazer) em vez de observar. Temos noção de que um trabalho de assepsia mental total é impossível. O que nos resta de possível é uma disciplina tendente a suprimir os efeitos daquilo que já sabemos, para nos abrirmos ao que não sabemos. É respeito ao desconhecido.
As expressões sem memória, sem desejo não representam desprezo para com as teorias. Pretendem ser apenas uma forma de se relacionar com elas. A psicanálise não precisa ser reinventada a todo momento. O que Bion preconizava era a necessidade de o analista estar sempre aberto para captar as experiências. É respeito ao valor da experiência como fonte de conhecimento. Em seu trabalho “Cesura” (1977/1981), Bion faz a recomendação de que o ensaio seja lido e esquecido até que alguma associação do paciente o traga de volta à consciência, para então ser reformulado numa nova linguagem. Ressalta, assim, a importância da privação de um tipo de memória sensorial (ligada à descarga pelo princípio do prazer), mas ao mesmo tempo chama a atenção para o fato de que essa privação permite criar espaço, com o intuito de que, em condições não controláveis, emerja um tipo de “memória-sonho” que expresse um contato onírico (evolução de O) com a experiência emocional da sessão, sem aspiração de onisciência.
Considerações finais
A abordagem da experiência psicanalítica por um vértice místico não torna a psicanálise uma mística. A psicanálise faz interlocução com várias áreas do saber humano sem se reduzir a nenhuma delas. A experiência pela psicanálise é única.
Como atividade do ser humano, a psicanálise não pode pretender explicar a mente. Esta é um mistério para si mesma e, nesse sentido, pertence ao domínio do sagrado que mencionamos no início. O psicanalista compartilha com o místico do reconhecimento de que o essencial de nós mesmos é inefável (indizível).
Concluímos, portanto, que psicanálise nenhuma pode conter a mente. Em termos clínicos, significa que nenhuma teoria, nenhuma interpretação, pode esgotar o potencial de significados que uma experiência emocional comporta. Bion, num dos diálogos que cria entre dois personagens, faz referência à relação entre a psicanálise e a realidade da seguinte forma: “Psicanálise é apenas uma listra na pele do tigre. Em última instância ela pode conhecer o tigre - a coisa em si - O” (1975/1989, p. 122, grifo meu).
Se psicanálise é uma experiência particular por intermédio de afetos vividos numa relação bipessoal, torna-se possível estabelecer uma distinção entre discurso sobre psicanálise e ser psicanalisado. Uma conclusão óbvia é que, para ser psicanalista, é preciso ser psicanalisado. A função psicanalítica da mente, presente em graus variáveis no analista e no analisando, expande-se como experiência de ser-com-a-realidade-psíquica. Por seu caráter inesgotável, infinito, essa experiência coloca o analista sempre em condição de vir-a-ser-psicanalista. Essa perspectiva pode soar familiar também a um místico.
O espaço ético do analista é a fé direcionada à verdade.
A fé, como já mencionado, deve ser entendida como estado mental que não tem a ver com certezas, mas com intuições que poderão, ou não, ser realizadas (no sentido da palavra em inglês, “tornadas reais”) na experiência em curso. O analista ético é aquele que institui e mantém esse estado mental como respeito ao O do paciente, sem confundi-lo com seus valores, pré-conhecimentos, preconceitos e desejos de poder ou cura. Nessas condições mencionadas, é possível a emergência da verdade. A verdade é o que dá conta de representar o O daquela experiência emocional. Alocada no campo simbólico - já que o âmago da experiência psicanalítica não pertence ao âmbito do sensorial, do concreto -, ela é sempre incompleta e transitória. Nem o analista nem o paciente têm a última palavra a respeito.
Essas considerações coincidem com uma observação que Freud fez em 1914, numa carta ao embaixador americano Putnam: “O grande elemento ético no trabalho psicanalítico é a verdade e, de novo, a verdade”.
Ao final desta exposição, cabe uma observação que Bion fez a propósito da obra de Melanie Klein, em uma de suas conferências: “O que Melanie Klein tentou dizer iluminou tanto as coisas, que revelou visões ainda maiores na escuridão, de áreas não iluminadas. Em psicanálise, sempre estamos descortinando mais domínios de ignorância, escuridão, o vazio”. Essa observação sugere que a psicanálise não pretende ser resposta, mas pergunta. Sustentar-se no silêncio, na cesura de uma pergunta ainda sem resposta, supõe um ato de fé e tolerância básica. Nesse vértice, aproximam-se os psicanalistas, os místicos, os poetas, os cientistas em geral.