Em 2008, Waldemar Falcão publicou um interessante livro intitulado O Deus de cada um. O mérito central dessa obra reside na apresentação de exemplos vívidos e bem significativos de nove diferentes crenças.
Do ponto de vista da psicanálise, podemos expandir isso com uma pergunta em relação a cada paciente (e a cada analista), considerando não apenas o inconsciente individual, mas também o inconsciente coletivo: como é o Deus deste paciente que estou atendendo? Freud e Bion nos lembraram que sexo e Deus são temas que surgem em todas as análises.
Do ponto de vista clínico, podemos formular a pergunta da seguinte maneira: o que faríamos se algum dos personagens citados por Waldemar Falcão fosse realmente nosso paciente? Uma resposta bioniana inicial seria: tentaríamos mudar de vértice e de nível passando do somático para o psíquico, e do psíquico para o pneumático; distinguiríamos entre os elementos beta (soma), alfa (psique) e sigma (pneuma), numa tentativa de simbolização, passando da extração à transformação e daí à transação, da intuição ao conceito, a ponto de podermos dizer, por exemplo, “O que você busca é o que os místicos chamam de comunhão dos santos, e Bion chama de at-one-ment”.
Com Lacan, consideraríamos a dinâmica gerada pela distinção entre o real, o imaginário e o simbólico (na ascensão ris e na descida sir). O principal desafio aqui, e a perspectiva de solução, seria a autenticidade do processo simbólico, em razão do qual um é o real no ponto de partida, outro o real no ponto de chegada. Por isso, a análise do desejo dependeria do nível em que essa dupla se situasse: do real bruto, do imaginário fantástico ou do simbólico polissêmico.
Aprofundando ainda mais com a ajuda de Tomás de Aquino e Aristóteles, não poderíamos deixar de lembrar a distinção entre os três graus de abstração. Isso nos mostraria como a teologia enquanto ciência transcende a física, a matemática e até a metafísica, estabelecendo uma relação paradoxal entre fé e razão. A experiência mística se revelaria mais ampla do que a científica (conforme minha tese de doutorado Du désir de sagesse à la foi théologale). São Tomás começou admitindo a possibilidade de demonstrar racionalmente a existência de Deus e terminou afirmando misticamente que tudo o que escrevera não passava de cinzas. Por isso, a teologia hoje está sendo praticada em outro estilo, tanto em termos de vocabulário quanto em termos de diálogo com pessoas interessadas - por exemplo, Frei Carlos e Leonardo Boff. Posso citar um livro, de minha autoria, com o título O paradoxo da psicanálise: uma ciência pós-paradigmática (2000).
Essas reflexões ajudam a entender como e por que Bion prefere o modelo epistemológico místico-religioso, no qual a própria dificuldade se torna sinal e ocasião da verdade como concordância, em um nível superior de experiência e interpretação, em que o ser é mais importante que o conhecer. Isso não é um desafio fácil, nem para nós, nem para ninguém. Tanto na sessão como neste encontro de hoje! E me pergunto por que alguns de nossos colegas deixaram de frequentar encontros dedicados à psicanálise da experiência religiosa.
Além do exemplo de Waldemar Falcão, mencionarei mais dois casos significativos, Friedrich Nietzsche e o dalai-lama, ambos lidos principalmente com a ajuda de Leonardo Boff.
O Deus de cada um, segundo Waldemar Falcão
Os editores apresentam a obra da seguinte maneira:
Um sheik muçulmano que nasceu católico, foi espírita, rosa-cruz e se encontrou no islamismo. Um pai de santo que também foi criado no catolicismo, mas cuja mediunidade o conduziu até os terreiros de umbanda. Um monge beneditino que sempre foi católico, mas que mantém um intercâmbio constante e fraterno com as outras religiões. Um monge hare krishna que também passou pelo catolicismo e pelo espiritismo, antes de conhecer o hinduísmo.
Os outros cinco personagens deste livro também trilharam seus caminhos de busca de uma forma bastante diversa - porém não menos transformadora. A partir de sua sede de respostas e, principalmente, por meio de suas crenças, encontraram forças para superar obstáculos e preconceitos, aproximando-se cada vez mais do que consideram a essência divina.
As histórias reunidas em O Deus de cada um apresentam, cada uma a seu modo, a riqueza e a variedade peculiar de nove religiões. São relatos transparentes e despojados, que acabam por transmitir um pouco do fundamento de cada uma das tradições retratadas, e se tornam um testemunho vivo e atual sobre a pluralidade religiosa e o espírito de diálogo que deveria nortear todas as crenças. (Falcão, 2008, quarta-capa)
Minha intenção inicial era comentar principalmente o caso do “paciente islamita”, considerando em particular os acontecimentos de Paris, com suas consequências tanto políticas como ideológicas. Achei o assunto muito vasto e, por enquanto, vou contentar-me em sugerir a leitura de alguns documentos mais esclarecedores. Vamos tentar nos aprofundar na psicanálise do Deus de cada um. Em resumo:
De qualquer forma, e em todos os casos, há uma busca da união com Deus, muito embora reconhecendo que ela poderia acontecer de diversas formas, por caminhos diferentes, revelando múltiplos aspectos da riqueza do Ser Supremo. Deus não é um objeto que se conquista, mas um sujeito que se doa generosamente na graça e amorosamente na caridade.
A pergunta clínica persiste: como analisaríamos essas pessoas se fossem nossos pacientes? A problemática psicanalítica pode ser descrita nos seguintes termos:
1) O desejo e a busca do que sinto falta. O desejo de ser o que não somos: ser e não ser? O desejo do que não sou, com base na experiência do que sou. A falta do futuro, sentida no presente. O melhor está por vir. Investir no possível, sem pensar que é impossível. A esperança com base na aliança. A tolerância à frustração. Ser feliz dentro dos limites ou… ser infeliz fora dos limites? A felicidade é uma ilusão sem futuro? A relação entre Deus, a felicidade, o desejo, a falta e o limite. A criatura e o criador são amigos ou inimigos? Uma parceria impossível? Ressentimento inevitável?
2) A questão do imaginário na busca da plenitude: seremos capazes de pensar o infinito? Se Deus é infinito, não podemos sequer imaginá-lo! Como pensar numa união com Ele? O finito nunca deixará de ser finito… Por isso, nunca poderemos chegar a Deus e nos identificar com Ele. A não ser com o dom da fé e a tolerância à frustração, como ato da virtude da força.
3) A presença de Deus, consequência de sua infinitude. O infinito está presente em toda parte. Não é possível o infinito estar ausente. A graça como uma experiência especial da presença de Deus. E “Deus será tudo em todos”. Como é possível a coexistência do finito com o infinito? Deus sendo tudo em todos… todos terão que ser necessariamente nada? Como é possível ser e não ser na plenitude do ser? Tudo isso é objeto de fé, de fé religiosa, muito mais do que de fé científica. Embora a fé científica seja um primeiro passo na direção da fé religiosa.
4) A simbolização como pensamento do impossível: a dialética de ser e não ser. “Se ser ou não ser é a questão… ser e não ser pode ser a solução!” A conjunção em vez da disjunção. A simbolização na experiência psicanalítica (uma polissemia encarnada). O essencial simbolismo da fé religiosa, em Aufhebung!
5) Bion, nascido na Índia, encontra-se com Shakespeare, cita Mestre Eckhart e São João da Cruz. Provavelmente citaria também o dalai-lama, se tivesse conhecimento de seus escritos.
O exemplo do dalai-lama, líder espiritual e temporal do Tibete
O dalai-lama tornou-se um interlocutor natural para muitas pessoas interessadas na mística oriental. No contexto de nosso encontro, vou citar de preferência o livro intitulado A arte da felicidade (2000), escrito por Howard C. Cutler, em diálogo com o próprio dalai-lama. Eis como esse último é citado na quarta-capa do livro:
Acredito que o objetivo da nossa vida seja a busca da felicidade. Isso está claro. Quer se acredite em religião ou não, quer se acredite nesta religião ou naquela, todos nós buscamos algo melhor na vida. Portanto, acho que a motivação da nossa vida é a felicidade.
Quando você mantém um sentimento de compaixão, bondade e amor, algo abre automaticamente sua porta interna. Com isso, você pode se comunicar mais facilmente com as outras pessoas. E esse sentimento de calor cria uma espécie de abertura. Você descobre que todos os seres humanos são exatamente iguais a você e se torna capaz de se relacionar mais facilmente com eles. Isso lhe confere um espírito de amizade. Então há menos necessidade de esconder as coisas e, consequentemente, sentimentos de medo, dúvida e insegurança se dispersam automaticamente.
Nietzsche e a morte de Deus
Um aspecto característico do pensamento nietzschiano é o que Bion chama de capacidade negativa, com tolerância à frustração diante do desconhecido/incognoscível - mais precisamente, da maneira como o próprio Bion se refere a O, infinito, informe, inominável.
Para muitos, Nietzsche seria apenas o negador de Deus. De fato, é alguém que questiona um discurso superficial a respeito de Deus e até mesmo o liberalismo arbitrário do “Deus de cada um”. Com o Deus de cada um, ficamos conhecendo cada um bem mais que ao próprio Deus. Por isso, Nietzsche escreveu um belo poema ao Deus desconhecido e incognoscível.
A esse respeito, Leonardo Boff em seu livro Tempo de transcendência (2009) escreveu sabiamente:
Como estamos no centenário de morte de Nietzsche, com muitas celebrações, quero terminar com uma oração belíssima desse desesperado filósofo alemão que pregou a morte de Deus e fez a crítica mais violenta do cristianismo; mas o fez a partir de uma experiência radical do Deus vivo. Quando anuncia a morte de Deus, ele fala do Deus que tem de morrer mesmo, porque é o Deus das nossas cabeças, o Deus inventado, o Deus da metafísica, o Deus que não é vivo. Ele fez uma oração que traduzi, sem chegar a transmitir todo o seu teor poético. O título é:
ORAÇÃO AO DEUS DESCONHECIDO
Antes de prosseguir em meu caminho e lançar meu olhar para a frente uma vez mais; elevo, só, minhas mãos a Ti, na direção de quem eu fujo.
A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicado altares festivos, para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar. Sobre esses altares, estão gravadas, em fogo, estas palavras: “Ao Deus Desconhecido”.
Teu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos. Teu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo. Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servir-Te.
Quero Te conhecer, desconhecido. Tu, que penetras a alma, e qual turbilhão, invades minha vida. Tu, o incompreensível, mas meu semelhante.
Quero Te conhecer. Quero servir somente a Ti.
Ass.: Friedrich Nietzsche
Outro livro importante é de autoria de Antonio Edmilson Paschoal, publicado na coleção Nietzsche em Perspectiva, com o título Nietzsche e o ressentimento (2014). Todos já conhecemos o livro de Kancyper, Ressentimento e remorso (1994). No caso de Nietzsche, o maior interesse decorre do fato de ele próprio parecer estar elaborando seus sentimentos - ou ressentimentos - para com Deus.
Conclusão
A experiência religiosa pode ser analisada de várias maneiras, beneficiando tanto pacientes quanto analistas. Bion nos fornece uma contribuição valiosa para essa empreitada. A pergunta final, do ponto de vista psicanalítico, é a mesma: como é o Deus de cada um? Isso não precisa ser respondido aqui, mas na vida cotidiana, a começar pela análise de cada um.