Comecei a escrever com o intuito de desenvolver a grade em emoção, mas logo aos primeiros passos, estimulado pelas situações clínicas, veio-me à mente toda a trajetória das ideias que fiz na psicanálise e passei a desenvolvê-las. De início, achei as descrições clínicas atraentes e me perguntei por quê.
Pareceu-me que os participantes estavam à vontade, o analista seguia uma linha intuitiva; mais do que isso, senti prazer e satisfação com a leitura ou, se preferirem, com a narrativa - portanto, uma qualidade estética.
Passei a ver em cada trecho descrito a possibilidade de apreender vários ângulos clínicos novos e desenvolver possíveis conceitos. Harmonizar tudo isso num texto e chegar a um produto final tornou-se um quebra-cabeças. Fui levado então a uma espontânea revisão de conceitos com que posso trabalhar na clínica.
Como o analista pode refletir sobre o trabalho que se desenvolve em sua experiência clínica?
Um instrumento de grande valor para esse fim é a grade, relacionada aos conceitos de elemento e objeto psicanalíticos, que Bion desenvolve tendo como base o aprender com a experiência emocional, delineando a hipótese de função a, que opera nas impressões sensoriais e emoções, permitindo surgir o pensamento onírico e o mundo da simbolização.
A grade foi concebida inicialmente para o exame de ideias. Ao usá-la, verificamos que, de forma implícita, a consideramos também para emoções. Nosso intuito é deixar mais nítida a diferença desenvolvendo algo da grade em emoções.
Situações clínicas
Primeiro bloco
O cliente retomava o trabalho depois de certo tempo de interrupção. Sua maior queixa era o tédio, a dor era perceptível como algo evidente, e ele apresentava ânimo deprimido.
Em alguns momentos, podia-se observar que lhe faltavam (nesse tédio vital, nessa dificuldade para viver) elementos para desenvolver, quem sabe, ideias, fantasias, determinados sentimentos ou até mesmo alucinações mais ou menos adequadas a suas necessidades. Tais observações sugeriam que um desastre (catástrofe) tinha acontecido muito precocemente em seus processos mentais.
O paciente é estrangeiro, com cerca de 50 anos. Embora eu o tivesse encontrado numerosas vezes, nesse dia observei que, quando ele falava, sua voz soava como se fosse de marionete - aquela voz que tem certa distorção, que não é de um personagem real: se é o pai da mocinha, tem um som; se é a mocinha, tem outro; há sempre alguma imitação daquilo que é o personagem real. Essa voz de marionete dava a impressão de que a dificuldade estava envolvida na emoção. Isso foi comunicado ao paciente da forma que julguei apropriada. Um pouco antes ou na sequência disso, o paciente observava que se sentia mais vivo, tinha interesse em conversar com as pessoas e mudava seu estado quando falava em língua francesa. Enfatizava que ele, com muita dificuldade, podia sentir-se vivo, manifestando-se, sentindo emoções. Referia-se ao local de trabalho mais ou menos da mesma forma.
O que é notável, quando o paciente entra em contato comigo e eu acentuo a voz de marionete, é uma situação profunda de transtorno (Rezze, 1997).
Segundo bloco
No terceiro bloco, vou narrar uma sessão inteira de uma cliente, porém antes creio ser necessário alguns fragmentos de sessões anteriores, não para dar compreensibilidade à situação clínica, mas para que esta não pareça ao leitor “descarnada” e desconectada.
INÍCIO DE UMA SESSÃO
Ao encontrar a cliente na sala de espera, creio perceber um alvoroço interno. A seguir, na hora de entrar, ela desvia o olhar de mim para o canto inferior da parede e, assim, passa para a outra sala.
Como fica em silêncio e parece-me um pouco ansiosa, falo da percepção que tive, e então ela diz: “Eu sei que você já está cansado disto, mas é a cor da sua roupa, que é igual à minha”. Num misto de alegria, ansiedade e felicidade, a cliente ainda descreve como fez a escolha da roupa e como deu tudo certo. Comenta que é uma situação infantil e menor, não sabendo como fica tão entusiasmada com aquilo, achando mesmo tudo muito ridículo.
O seu humor muda, torna-se recriminante, e tenho a impressão de que ela me incita a repeli-la.
Opto por retomar o que eu disse antes, acrescentando que, ao viver próxima de mim, na percepção das cores iguais, ela se sente contente e em continuidade comigo. Isso é algo que não tolera em si mesma quando está meio dividida e observa o fato. Mas quando se envolve com esses sentimentos próximos ela vê graça na vida, se sente estimulada, quer produzir e muito mais.
A cliente parece não atentar propriamente ao que eu digo __ ao significado. Ela faz um uso próprio e assim continua, agora dentro de um sentimento de bem-estar e satisfação.
“Ah! Que vontade de me sentar no seu colo e ficar bem agarradinha no seu pescoço!”
A cliente não age no propósito sugerido. Mantém-se deitada no divã, com expressão de alegria e satisfação, não sugerindo nenhuma proposta sexual no sentido de um homem e uma mulher adultos.
PARTE DE UMA SESSÃO (POSSIVELMENTE DA ANTERIOR)
A cliente prossegue aproximadamente no mesmo clima emocional descrito antes (“me sentar no seu colo”).
Acho oportuno fazer à paciente uma consideração sobre como se passa aquele estado, em que eu estou em continuidade com ela, em que tudo é um mundo de ventura e bem-estar para ambos, embora eu, na verdade, precise me dividir entre, de um lado, ficar à disposição para o uso que ela faz e, de outro, atendê-la e compreendê-la, o que não é possível por parte dela. É uma relação muito assimétrica.
A cliente muda de atitude, se mostra arrogante e altiva, começando a descrever de maneira peremptória a brutalidade de um familiar seu. Tento falar com ela, mas se torna violenta e mais arrogante. Eu assinalo esses fatos, particularmente essa mudança repentina na atitude para comigo.
A sessão prossegue um pouco mais e, então, ela hesita e diz: “É que eu odiei o que você falou”.
PARTE, TALVEZ, DE OUTRA SESSÃO
A cliente, através de algum episódio semelhante ao relatado antes, tem vontade de se sentar no meu colo e se abraçar comigo.
Há muitos anos ela faz análise, e só atualmente surgiu o que se segue.
A cliente fica muito perturbada e me diz que, além de se sentar no meu colo e se abraçar comigo, teve a ideia de que eu colocava as mãos por baixo da sua calça e diz ter ficado excitada.
Imediatamente, e sem perceber, cobre com a jaqueta parte do peito (usava uma blusa sem decote).
A seguir, parece romper o contato emocional com o fato e começa uma narrativa sobre problemas familiares.
Terceiro bloco
UMA SESSÃO
Nos primeiros movimentos, a cliente diz que vai ao habitual: assinalar que a cor da minha camisa é igual à da sua e ficar nesses agradáveis sentimentos. A seguir, abandona essa linha e passa a reclamar acerbamente de um familiar.
Assinalo essa mudança.
Ela se refere a um sentimento para comigo, diz que “está um perigo” (fala excitada e empolgadamente) e logo começa a narrar.
PACIENTE: Eu estava estacionando o carro e do meu lado estava um homem também com outro carro. Era mais ou menos da minha idade e me interessou. [Ela não diz bem assim. Sua fala é mais evasiva, mais indiscriminada.] Nós fomos abrir a porta. Aí ele me esperou e eu o esperei, e ficou aquela coisa. [Há uma sugestão de interesse recíproco. Logo acrescenta:] Quase uma trombada. Eu fui para o elevador, e ele me esperou passar e foi atrás de mim. Ficamos esperando, e eu bem notando o homem, mas ele ficou na dele, não falou nada.
Eu não aguentei, comecei a falar que o elevador estava demorando. Ele fez… assim… O elevador chegou e eu engatei o mesmo assunto com a ascensorista.
Eu pergunto se ela percebe que havia deslocado aquilo que era um sentimento que estava vivendo comigo para a narrativa com o homem. Ela faz que sim, e tenho a impressão de que de fato percebe.
Prossigo dizendo que ela estava interessada em mim, mas não suportou a proximidade do afeto. Também consideramos o que ela contou, que se assustou com o homem, pois falou de uma trombada, e que o interesse aparentemente sexual não pôde prosseguir diante disso e do possível perigo (“estou um perigo”) dos pródromos, dos pródromos, dos pródromos da sexualidade que ameaça aparecer.
PACIENTE: O pior é que é assim mesmo como você fala.
ANALISTA: Então você quer ver como é isso aí da porta que você fala?
Ela diz que sim. É preciso notar que essas falas se dão num ambiente de muita liberdade e franqueza, da parte dela e da minha, e são muito informais. É mais um colóquio.
PACIENTE: É assim como um passarinho começa a voar atrás de outro; um boi começa a rodear uma vaca no pasto; os gatos à noite fazem aquela gritaria, aquela barulheira; uma abelha, um passarinho pousa no interior de uma flor e suas patinhas levam o pólen do androceu de uma planta para o gineceu de outra… Você daria um nome para o que eu estou descrevendo?
Ela está muito interessada e atenta, mas não parece lhe ocorrer nenhuma sugestão e então prossigo: é a corte.
Ela comenta: “Que palavra mais antiga! Parece do tempo da minha avó”. Há uma quebra no clima afetivo.
Assinalo esse fato e digo que ela desloca o que está presente para o passado, desvalorizando e anulando o que está presente.
Ela prossegue: “Vi um filme do Woody Allen em que ele aparece com a filha. Achei nojento”. Eu não entendi a que ela estava se referindo e pedi esclarecimentos. Diz que é um filme sobre Woody Allen, protagonizado por outro artista. Este aparece em cenas de sedução com outra artista, que interpreta a filha (na vida real, filha adotiva de Allen e Mia Farrow, entre outros filhos adotados; a história entre os dois causou escândalo público), cenas em que ela aparece se despindo. “E ela gostava” (da sedução).
Faço referência ao fato de a paciente não ter filho homem, para poder apreender certo tipo de experiência.
O que eu digo parece não fazer sentido, e então aludo a um episódio com o namorado da filha. Ela vivamente se contrai no divã, se surpreende, se anima, se excita, como que com vergonha, e se lembra de outro pretendente da filha, pelo qual tanto se animava - mais de uma vez, a filha tinha dito que era ela quem queria se casar com o rapaz.
Segue falando do vestido que experimentara e de que tanto havia gostado (vestido decotado, com o qual costuma se sentir muito mal, mas nesse caso, excepcionalmente, sentiu-se bonita e bem-vestida). Agora decidira fazer outro. Ao conversar com a filha e mostrar como seria o vestido, “fechado até o pescoço”, a filha a censurou e sugeriu que ela fizesse um belo decote, como aquele de que havia gostado antes.
Observo que a sugestão pode ser dada, mas é difícil segui-la, porque ela é diferente da filha, que possivelmente usa vestido decotado e se sente bem.
Ela ressalta o quanto a filha é bonita e graciosa, e diz que está mandando fazer um vestido tomara que caia “assim” (passa a mão no peito indicando a posição).
ANALISTA: Então é preciso que a pessoa esteja à vontade com o vestido, com o peito que aparece no decote, com o corpo, com os sentimentos que possa despertar em homem e mulher, e não adianta ela lhe dar o conselho se você não tem como efetivá-lo, se você tem medo dos sentimentos que pode despertar, tem vergonha de mostrar o corpo, que sente deformado.
PACIENTE: Você sabe que eu não estou mais me sentindo assim. Parece que eu tenho alguma coisa para mostrar, para dar, e não é apenas no corpo.
ANALISTA: Bem, então aparece a confiança.
PACIENTE: Depois que nós tivemos a nossa última sessão, em que eu pude viver mais aquelas impressões [creio referir-se ao fato de ter manifestado sentimentos e sensações sexuais], me lembrei de uma história que um amigo me contou. De um rio que fora desviado de seu curso e em cujas margens não crescia nenhuma vegetação. Depois ele retornou ao curso anterior e toda a vegetação voltou a florescer. Eu me sinto assim, parece que você, tendo a paciência que tem comigo, me permite achar que eu possa me encontrar e viver melhor, como já estou vivendo.
ANALISTA: Parece que a sexualidade se tornou em esperança.
PACIENTE: Sabe, ontem, quando saí daqui, quase voltei para agradecer a você. Parece que eu estou tendo iniciação na minha própria sexualidade, de que eu tenho tanto medo e vergonha. Eu acho que, esses anos todos, só você mesmo para me aguentar e ficar comigo.
ANALISTA: Bem, agora a sexualidade se transformou em gratidão.
Correspondência entre ideia e emoção no eixo psicogenético da grade
Prossigamos agora com o exame do eixo psicogenético da grade, inicialmente no campo que Bion (1963/1966b) denomina de ideia, para depois examinar o campo emoção. Esse eixo se compõe de: elemento b; elemento a; pensamentos oníricos, sonhos e mitos; preconcepção; concepção; conceito; sistema dedutivo científico; e cálculo algébrico.
Vamos considerar cada um desses elementos, porém o nosso objetivo se liga à conexão com a situação edípica e à emoção. Faremos, portanto, um uso próprio do eixo genético.
A) Elemento β (em emoção)
Começarei com o cliente do primeiro bloco, que apresentava sentimento de tédio vital, ânimo deprimido e dor.
Observamos o surgimento de voz de marionete. Aqui não privilegiamos um pensamento fragmentado ou desordenado, como o possível na grade em ideia, porém assinalamos a pobreza de pensamento.
O mais notável eram as alterações da emoção. Não tínhamos um nível de estupor, mas um grande prejuízo afetivo, evidenciado pela voz em marionete. Temos a caracterização do elemento β em emoção.
Voz em marionete parece qualificar bem o objeto bizarro (elemento a que, tendo sofrido reversão de função a, denota fragmentos egoicos e superegoicos), indicando reversão da função a e surgimento desse quadro emocional impactante, que poderíamos descrever como tela b.
Com o segundo bloco, há um elemento demonstrativo que parece denotar um sentido menor de catástrofe na personalidade: “Eu sei que você já está cansado disto, mas é a cor da sua roupa, que é igual à minha”; “Ah! Que vontade de me sentar no seu colo e ficar bem agarradinha no seu pescoço!”.
Creio que o analista, para estar à vontade com essa situação e poder permear-se dela, precisa antes alucinar o equivalente das alucinações do cliente e depois, com a reverie, modificar a situação.
B) Elemento α (em emoção)
Bion considerou o sonho, que ele denominou de trabalho onírico α e, mais à frente, de função α:
Esta designação representa o resultado da atividade executada pela função a sobre as impressões sensoriais e as emoções. Nesta grade destacamos as emoções. Os elementos a não são objetos no mundo da realidade externa, mas se constituem em produtos da ação exercida sobre os sentidos e as emoções que entram em contato com essas realidades. Eles (elementos a) possibilitam a formação e o uso de pensamentos oníricos. (1963/1966b, p. 142)
Isso ficará mais claro no próximo item.
C) Pensamentos oníricos, sonhos e mitos (em emoção)
Pensamentos oníricos, sonhos e mitos humanizam o indivíduo.
O ponto da virada mental da cliente se explicita na menção do analista aos “pródromos da sexualidade”, em que estes parecem ser os operadores do interesse sexual da cliente, e na transformação destes em narrativas que configuram o mito pessoal.
A sexualidade aparece aqui com a caracterização de pródromos, indicando uma qualidade ou uma função de pré-emoção ou premonição, como abordaremos no próximo item.
Complementando, podemos levar em conta, no eixo horizontal, a dimensão ação. Tentemos esclarecer com o fragmento do segundo bloco em que a cliente se surpreende ao se sentir excitada, ao perceber que, além de seu desejo de se sentar no colo do analista, surgia o “pensamento” de que ele passaria a mão por baixo de sua calça.
As formulações “sentar-se no colo” e “passar a mão por baixo da calça” são expressões de desejo e, portanto, parte da experiência sensorial que foi trabalhada pela função a, permitindo a narrativa - permitindo, sobretudo, o aparecimento das emoções que são agidas na seção C6 da grade (não acting-out) com as sensações antes descritas.
D) Preconcepção (pré-emoção)
Aqui nessa área mítica, a emoção é importante por seu caráter de pré-emoção (equivalente à preconcepção no ângulo de ideias), pois, havendo a situação edípica, vai permitir a pré-emoção e a preconcepção edípicas.
Enfatizemos que as manifestações de excitação sexual vividas e descritas pela paciente (“passar a mão por baixo da calça”) estão sendo consideradas como pré-emoção e preconcepção no uso de ação D6 (não acting-out).
Preconcepção “corresponde a um estado de expectação. … A união da preconcepção com a realização origina a concepção” (Bion, 1963/1966b, p. 142).
E) Concepção (emoção que corresponde a concepção)
As descrições anteriores ensejam ao analista considerar a narrativa sobre o vestido e seu decote e a convicção arraigada da paciente de que ela tem o corpo disforme.
Ela reage fazendo um “pensamento” que é a evolução da preconcepção, diante da realização da experiência emocional em curso.
Deixemos isso mais claro. Ela diz: “Você sabe que eu não estou mais me sentindo assim. Parece que eu tenho alguma coisa para mostrar, para dar, e não é apenas no corpo” - E4 (concepção em atenção) ou E5 (concepção em indagação).
Descritivamente, podemos dizer que o ânimo que move a fala muda, há confiança, como diz o analista, o que é uma nova emoção que ela pôde alcançar, oriunda da sexualidade e da situação edípica. Ou seja, há uma mudança em que, no campo do pensamento, ela tem uma nova compreensão de sua pessoa e, no campo da emoção, a realização com o analista permite uma emoção diversa, E5 (concepção em indagação): confiança.
F) Conceito (emoção que corresponde a conceito)
“O conceito se deriva da concepção por processo destinado a livrá-lo dos elementos que o impediriam de servir como instrumento de elucidação ou expressão da verdade” (Bion, 1963/1966b, p. 143).
A formulação do analista “a sexualidade se tornou em esperança” é um enunciado de conceito (F5 ou F6, conceito em indagação ou em ação) que atende aos imperativos da citação anterior, que corresponde ao fato de a cliente estar experimentando sensações sexuais (na própria sessão) e às mudanças que estão lhe acontecendo, como o reencontro de si mesma na emoção da comparação com as margens de um rio que renasce.
A cliente relaciona a experiência em curso com a “paciência” do analista, resultando numa ideia (conceito), mas ressalto a emoção na vivência com o analista.
A resposta da analisanda - “Sabe, ontem, quando saí daqui, quase voltei para agradecer a você” - é também um conceito (F5), porém saliento a sua característica de emoção.
Por fim, o analista enuncia que “a sexualidade se transformou em gratidão”, novo conceito em emoção, que vamos considerar no próximo item.
G) Sistema dedutivo científico (emoção que corresponde a sistema dedutivo científico)
A afirmação do analista se coaduna com as teorias de Melanie Klein de objeto total e posição depressiva, e com a noção de gratidão, como desenvolvida em sua obra “Inveja e gratidão” (1957/1991). A afirmação do analista também exprime teoricamente a evolução no eixo psicogenético das fileiras A a G, ou seja, de elementos sensoriais a sistema dedutivo científico. Esse é um exame feito em emoção no presente trabalho
Prossigamos. Essa cliente tem dois componentes importantes de examinar miticamente. Um é o de falsificar a realidade, e mesmo de atacar a realidade psíquica com a finalidade de evadir-se à emoção dor (G2 ou F2), correspondendo à figura de Tirésias na tragédia de Sófocles, o que podemos observar no segundo bloco, em que a cliente muda de atitude, se mostra arrogante e altiva. O outro componente é a dimensão da emoção na indagação obstinada (F5 ou G5) à procura da verdade, como Édipo (F5 ou G5) ao não abandonar a investigação e buscar o assassino de Laio, como podemos verificar na parte final da sessão - “estou tendo iniciação na minha própria sexualidade, de que eu tenho tanto medo e vergonha”.
Em nível de conjectura, podemos formular que essa é a emoção necessária quando um conhecimento a respeito do analisando passa a ser o analisando. Isso corresponde a quando o conhecer sobre psicanálise se torna psicanálise.
Caminhemos com a releitura
Vejamos como fazer a releitura do primeiro bloco, salientando a complexidade que surge ao tentar acompanhar a evolução das ideias de Bion, pelo menos em meu viés.
No primeiro bloco, com a voz em marionete, pudemos considerar o fracasso da função a, resultando nesse transtorno que leva ao aparecimento de uma tela b. Estamos, portanto, diante do vínculo -K, cujo principal fator seria a inveja (Bion, 1962/1966a).
Temos aí a presença de uma catástrofe, o que nos leva a Transformações - o livro - e ao exemplo de uma situação pré-catastrófica que evolui para outra, em que um estado pré-psicótico se transforma em psicose, ou seja, uma mudança catastrófica (Bion, 1970/1973, 1965/1983, 1992/2000).
Em outro viés, toda a situação poderia nos levar a considerá-la uma transformação em menos conhecimento (-K), através das passagens T a → T β → -K, em que T a vai depender da participação da personalidade de cliente e analista. Bion não deixa muito claro esse ponto, mas uma contribuição que pode ser dada é considerar o vínculo -K com as características de uma relação continente-contido que não se desenvolve pela falta favorável do vínculo comensal, marcando a continuidade dos conceitos de experiência emocional e transformações.
Esse bloco ainda poderia ser explorado com a conjectura de mente primordial, cujas origens Bion relaciona com as vivências pré-natais que o feto teria tido ainda nos primórdios da existência.
No segundo bloco, destaquemos: “Eu sei que você já está cansado disto, mas é a cor da sua roupa, que é igual à minha”. A cliente, num misto de alegria, ansiedade e felicidade, descreve como fez a escolha da roupa e como deu tudo certo. “Ah! Que vontade de me sentar no seu colo e ficar bem agarradinha no seu pescoço!”
Sob o viés de experiência emocional e grade, podemos considerar a cliente operando em coluna C do eixo psicogenético (pensamento onírico, sonho e mito) e em ação (na linha de usos), pelo fato de manifestar-se C6, elemento de psicanálise. Também se poderia considerar C2, pensamento onírico negando as ansiedades diante do desconhecido na relação com o analista.
Não consideramos suas falas como pensamento, pois não correspondem ao objeto psicanalítico, que teria as dimensões do sensível, do mito e da paixão (relação entre duas mentes sem traço de violência) - ou, em termos mais sofisticados, elementos da linha B da grade (elemento a), da linha C (pensamento onírico) e da linha G (sistema dedutivo científico).
Ao eleger o vínculo, o consideraríamos como amoroso (L), o que nos levaria a outra conjectura, ou seja, uma ação transferencial, em outro referencial teórico - amor de transferência. No referencial de nosso estudo, transformação em movimento rígido - ideias e emoções de uma área de aplicabilidade a outra -, algo provisório na vida daquela pessoa (Rezze, 2006/2021a).
Transformação em alucinose (Bion, 1970/1973) seria outro viés, já que enfatizamos a importância de o analista poder alucinar junto ao cliente para ter acesso a esse mundo tão íntimo. Também foi ressaltada a importância da reverie do analista: se considerarmos a vivência alucinatória, estaremos diante de uma profusão de elementos β que o analista poderá modificar com o uso da função α.
Aqui bordejamos a dimensão do uso da intuição pelo analista, pois a meu ver esta acompanhará, com maior ou menor propriedade, qualquer direção que o analista tome.
Do item “Parte de uma sessão (possivelmente da anterior)”, retomo este trecho:
Acho oportuno fazer à paciente uma consideração sobre como se passa aquele estado, em que eu estou em continuidade com ela, em que tudo é um mundo de ventura e bem-estar para ambos, embora eu, na verdade, precise me dividir entre, de um lado, ficar à disposição para o uso que ela faz e, de outro, atendê-la e compreendê-la, o que não é possível por parte dela. É uma relação muito assimétrica.
Considero essa fala uma interpretação ou formulação - logo, um objeto psicanalítico - por conter a dimensão dos sentidos, do mito e da paixão e seus equivalentes na grade, sendo portanto diferente da situação da cliente.
Estamos francamente na área do pensamento e da necessidade de um aparelho para pensar o pensamento sem pensador.
Evoluindo no pensamento de Bion, podemos considerar que estamos na área de transformações em conhecimento (K), o que será sempre uma possibilidade de abertura do campo para as transformações em O.
“A cliente muda de atitude, se mostra arrogante e altiva, começando a descrever de maneira peremptória a brutalidade de um familiar seu. Tento falar com ela, mas se torna violenta e mais arrogante.”
Relendo essa passagem, em termos de experiência emocional, temos uma expressão do vínculo ódio, que se expressa na violência e arrogância com o analista. Em termos clássicos, pensaríamos na resistência, a qual, em pontos mais avançados da teoria de Bion, poderia significar uma manifestação de transformação em -K, o que afasta a possibilidade de a cliente “ser” ela mesma - transformação em O.
No entanto, se prosseguirmos com os desenvolvimentos na grade, teremos a emoção que nega a aproximação da realidade psíquica, à qual o analista se refere. Poderíamos considerar, no eixo genético, como linha C (mito) ou linha E (concepção), ambas na coluna 2.
Algo bastante interessante na rica personalidade da cliente se manifesta neste fragmento: “A sessão prossegue um pouco mais e, então, ela hesita e diz: ‘É que eu odiei o que você falou’”.
No item “Parte, talvez, de outra sessão”, vou tratar do que surge nesta passagem: “A cliente fica muito perturbada e me diz que, além de se sentar no meu colo e se abraçar comigo, teve a ideia de que eu colocava as mãos por baixo da sua calça e diz ter ficado excitada”.
Trata-se de informação da presença de excitação no momento da sessão, e que denota a intimidade que a vivência traz para o par e a possibilidade que ela teve com as sensações de sua sexualidade. Não considero esse episódio um acting-out, mas uma junção mente-corpo, o que nela significa um avanço no poder acontecer o surgimento das manifestações da tão temida sexualidade.
Se pensarmos em elementos sensoriais manifestos, podemos considerar a excitação como elementos b. No entanto, a sensação e a emoção estão sendo vividas e delas se dá notícia, o que implica a presença de função a e seu desdobramento, ou seja, a comunicação com afeto.
Considerando a grade em emoção, podemos colocar isso em C6, ou seja, mito em ação, diferente de atuação. Também poderíamos considerar como D6, preconcepção em ação.
Ao tentarmos transformações, perambulamos por aquelas em movimento rígido, projetivas, em alucinose, ou autísticas e não integradas (Korbivcher), sem encontrarmos guarida em nenhuma delas. Parece-me que a cliente caminha destemidamente para alguma verdade acerca de si mesma, mas não vejo como alcançar o episódio como transformação em K ou em O, embora haja traços que poderiam ser focalizados com uma ou outra ótica. Creio que grande parte das dificuldades se deve à nossa limitação: não podemos alcançar o todo; então cindimos, mente e corpo. O conceito de monismo mantém a integridade mente-corpo.3 Citemos Bion em seu último trabalho, “Como tornar proveitoso um mau negócio” (1979), no qual introduz o tema. Considero que, no início desse texto, ele desenvolve o tema presente no título, mas a maior parte dele me parece dedicada ao esclarecimento do conceito de monismo ou, em seus termos, self.
Volto agora ao problema da comunicação dentro do self. (Não gosto de termos que indicam “o corpo” e “a mente”, por isso uso “self” para incluir o que chamo de corpo ou mente, e “espaço mental” para posteriores ideias que venham a ser desenvolvidas. A exposição filosófica desta abordagem é o monismo.) (p. 471)
Nessa mesma linha de pensamento, Bion assinala: “Quando o analisando vem ao consultório, o analista deve estar sensível à totalidade de sua pessoa” (p. 471, grifo meu).4
Examinemos o trecho do terceiro bloco que se inicia com “Você sabe que eu não estou mais me sentindo assim”, já examinado do ponto de vista da grade em emoção. Deixemo-nos entregar à leitura dele sentindo o movimento evolutivo nas descrições que se seguem, abandonando a visão da escrita anterior. Podemos sentir um caminhar muito próximo entre analisando e analista, que vai além das palavras e das ideias. Parece ser mais um dueto.
1) “Eu tenho alguma coisa para mostrar, para dar, e não é apenas no corpo”: confiança.
2) “Depois ele retornou ao curso anterior e toda a vegetação voltou a florescer. Eu me sinto assim, parece que você, tendo a paciência que tem comigo, me permite achar que eu possa me encontrar e viver melhor, como já estou vivendo”: esperança.
3) “Sabe, ontem, quando saí daqui, quase voltei para agradecer a você. Parece que eu estou tendo iniciação na minha própria sexualidade, de que eu tenho tanto medo e vergonha”: gratidão.
Proponho que, a partir dessa nova visão, a dupla permitiu-se adentrar uma vivência humana que tenho designado como prazer autêntico (Rezze, 2021b), conceito que difere das muitas formas que o prazer pode adquirir e que me parece essencial considerar no dia a dia da clínica. Essa investigação se faz de forma a afastar a influência das teorias fortes (Rezze, 2010) - de Freud, Klein, Bion e outros expoentes da psicanálise.
Ainda nessa nova visão, a dupla adentrou uma vivência que Bion sofisticadamente nomeou de transformação em O. “Tornar-se” não se refere a um O cliente ou um O analista, mas a um O comum, que se estabelece entre os dois, dando o sentido de um par, algo inefável que emana do texto selecionado e que o leitor também pode alcançar, dependendo de seu estado de alma.
Refletindo sobre essas descrições, eu as denomino transformações em K (não em conhecimento, para permitir uma penumbra de associações), que visam fazer uma aproximação com o indescritível O.
Refletindo sobre intuição
Para “ser” ou “tornar-se” O, é necessário um instrumento mental que chamo de intuição.
Ao avaliar as situações clínicas apresentadas, creio ser possível afirmar que o trabalho deste analista foi essencialmente intuitivo, embora o leitor possa discordar amplamente dos caminhos tomados.
Bion deixa claro o que ele entende como intuição ao descrever a diferença entre o objeto de trabalho da medicina e o da psicanálise: para a primeira, a realidade sensorial; para a última, a realidade psíquica. Freud faz uma diferenciação da mesma natureza: realidade material e realidade psíquica. Já quanto à intuição, no que diz respeito às transformações em O, há uma referência que se pode tomar: intuição psicanaliticamente treinada. No entanto, a aproximação maior de Bion se faz com a máxima enunciada por Kant e de amplo conhecimento, “A intuição sem o conceito é cega, e o conceito sem a intuição é vazio”. “Segundo Kant, os objetos são-nos dados por meio da sensibilidade, e só esta produz intuição” (Mora, 1977, p. 223). Isso não se coaduna com “tornar-se” ou “ser” O, que está livre de qualquer conceito ou conhecimento. A minha concepção de intuição se apoia aproximadamente no seguinte: “O vocábulo intuição designa em geral a visão direta e imediata de uma realidade ou a compreensão direta e imediata de uma verdade” (Mora, 1977, p. 222).
A lacuna que ficaria na citação de Kant, entre intuição e conhecimento, não é preenchida por Bion quando ele considera que O pode transformar-se em conhecimento (K), através de T a e T b, quando as emanações de O se encontram com a personalidade em ponto que pode evoluir para produzir conhecimento. Creio que essas conjecturas imaginativas e racionais necessitam de reforço quando Bion introduz o conceito de fé, que ele diferencia de fé religiosa.
O conceito de O, conforme estas minhas considerações, amplia-se na psicanálise quanto a qualquer trabalho clínico e qualquer teorização, pois, originário da filosofia, ele ganha status e liberdade. Ele representa um desafio, pois seria um estado que pode ser vivido pelo homem, embora dele não se possa ter um conhecimento imediato (Bion, 1965/1983, pp. 165-166).