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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.3 São Paulo  2023  Epub Nov 04, 2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n3.10 

Artigos

Do amor à melancolia1: Constituição e transformação

Del amor a la melancolía: constitución y transformación

From love to melancholy: constitution and transformation

De l’amour à la mélancolie : constitution et transformation

Patrícia de Campos Lindenberg Schoueri2 

2Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), São Paulo. patriciaschoueri@gmail.com


Resumo

A partir do poema de Keats “Ode à melancolia”, entrelaçado a um caso clínico, a autora percorre pari passu a busca de um sujeito que se ausenta, se apresenta na ambiguidade e pode ser escravizado pelo deleite da dor e das ruínas do self. Propõe uma reflexão sobre os caminhos a trilhar na procura de uma comunicação que afete esses aspectos mortos e desvitalizados para a vida relacional, de modo a poder, ao contatá-los, iluminar sua existência/vitalidade. Para tanto, é preciso contar com a intuição e a inspiração, nos moldes do que faziam as Musas, filhas de Zeus com Mnemosine, permitindo que o ritmo da palavra cantada, a poesia, expressasse algo “perdido” na memória. Através do objeto estético, é possível restabelecer a comunicação interna, estimulada pelo externo, ao despertar o contato com a verdade originária, sensual. O fluir da conversa na sala de análise, com palavras ditas despretensiosamente, já que a mente crítica lança nelas uma luz que as esconde, busca restabelecer a comunicação viva com os aspectos “mortos” por meio de um afeto orquestrado a quatro mãos. Essa forma de estar e se comunicar se aproxima da forma como um poema se constitui.

Palavras-chave: experiência estética; melancolia; poesia; inspiração; Keats

Resumen

A partir del poema de Keats “Oda a la melancolía”, entrelazado con un caso clínico, la autora recorre pari passu la búsqueda de un sujeto que se ausenta, se presenta en la ambigüedad y puede ser esclavizado por el deleite del dolor y las ruinas del yo. Propone una reflexión sobre los caminos a seguir en la búsqueda de una comunicación que afecte a estos aspectos muertos y desvitalizados para la vida relacional, de modo que, al entrar en contacto con ellos, se pueda iluminar su existencia/vitalidad. Para ello, es necesario apoyarse en la intuición y la inspiración, en la línea de las Musas, hijas de Zeus y Mnemosina, que permitían que el ritmo de la palabra cantada, la poesía, expresara algo “perdido” en la memoria. A través del objeto estético, es posible restablecer la comunicación interna, estimulada por lo externo, al despertar el contacto con la verdad originaria, sensual. El flujo de la conversación en la sala de análisis, con palabras pronunciadas sin pretensiones, ya que la mente crítica arroja sobre ellas una luz que las oculta, busca restablecer la comunicación viva con los aspectos “muertos” mediante un afecto orquestado a cuatro manos. Esta forma de ser y de comunicarse se asemeja a la manera en que se constituye un poema.

Palabras clave: experiencia estética; melancolía; poesía; inspiración; Keats

Abstract

Based on Keats’ poem “Ode to Melancholy”, intertwined with a clinical case, the author goes pari passu through the search for a subject that is absent, presents itself in ambiguity and can be enslaved by the delight of pain and the ruins of the self. She proposes a reflection on the paths to follow in the search for communication that affects these dead, devitalized aspects to relational life, so that, by contacting them, we can illuminate their existence/vitality. To do this, it is necessary to rely on intuition and inspiration, along the lines of the Muses, daughters of Zeus and Mnemosyne, who allowed the rhythm of the sung word, poetry, to express something “lost” in memory. Through the aesthetic object, it is possible to re-establish internal communication, stimulated by the external, by providing contact with the originary, sensual truth. The flow of conversation in the analysis room, with words spoken unpretentiously, since the critical mind sheds a light on them that hides them, seeks to re-establish living communication with the “dead” aspects through an affection orchestrated by four hands. This way of being and communicating is similar to the way a poem is constituted.

Keywords: aesthetic experience; melancholy; poetry; inspiration; Keats

Résumé

A partir du poème de Keats « Ode à la mélancolie », entrelacé à un cas clinique, l’autrice parcourt pari passu la recherche d’un sujet qui s’absente, se présente dans l’ambiguïté et peut être asservi par la délectation de la douleur et les ruines du moi. Elle propose une réflexion sur les voies à suivre dans la recherche d’une communication qui touche ces aspects morts et dévitalisés pour la vie relationnelle, afin que, en les contactant, nous puissions éclairer leur existence/vitalité. Pour ce faire, il faut s’en remettre à l’intuition et à l’inspiration, à l’instar des Muses, filles de Zeus et de Mnémosyne, qui permettaient au rythme de la parole chantée, la poésie, d’exprimer quelque chose de « perdu » dans la mémoire. Grâce à l’objet esthétique, la communication interne, stimulée par l’externe, peut être rétablie par le contact avec la vérité originaire et sensuelle. Le flux de la conversation dans la salle d’analyse, avec des mots prononcés sans prétention, puisque l’esprit critique les éclaire en les cachant, cherche à rétablir une communication vivante avec les aspects « morts » par le biais d’une affection orchestrée à quatre mains. Cette manière d’être et de communiquer s’apparente à la manière dont se constitue un poème.

Mots-clés: expérience esthétique; mélancolie; poésie; inspiration; Keats

Prólogo

Podemos contar uma história. Podemos, de outra forma, conduzir o leitor a compartilhar, viver uma história. Essa é a intenção deste texto. Trilhar com o leitor o caminho percorrido, com suas angústias e incertezas frente ao desconhecido, no atendimento a um caso clínico para “falar com o morto”. Partimos de um momento inicial, vivido com grande intensidade e iluminado pela articulação das três estrofes de um poema de John Keats, e seguimos o trajeto até o momento atual, após oito anos de análise.

Introdução

O que dizer sobre o amor e sua falta, sua perda? Como lidar com essa inevitabilidade, benfazeja em sua essência primeira, já que constitutiva de nossa humanidade, mas às vezes causadora dos mais atrozes sofrimentos, já que nos põe mortos em vida?

A psicanálise se ocupa do amor, aqui tratado como vínculo humano que inaugura nossa existência. Na teoria e na prática, vivemos vínculos afetivos que nos guiam e pautam a nossa prática com nossos pacientes: a intersubjetividade, “reformulada” em intrassubjetividade, é constituída por forças de ligação e de desligamento, dualidade da qual não escapamos.

A experiência emocional pode ser capturada em sua forma mais plena por uma dupla conexão: pelo sensorial, no que tange à experiência com o mundo externo, e pela intuição, no que tange à captura do que emana do mundo interno.

A apreensão intuitiva do que experienciamos diante do amor e sua perda parece ser mais bem captada pela arte, especialmente na literatura e na poesia (Green & Kohon, 2005). Metonímias e metáforas vêm ao nosso encontro num resgate urgente do que sentimos, disponibilizando essas forças emocionais para a sua comunicação, liberando-nos assim de sua intensa carga afetiva.

Caso não encontremos essas saídas na relação entre o interno e o externo, podemos, aos moldes do Etna ou do Vesúvio, sucumbir ao transbordamento de uma lava bruta, incandescente, a qual, se não causa destruição direta, transformando o vivo em pó, pode nos carbonizar, nos mumificar em vida.

Desse modo, metáforas e metonímias, tão apropriadas nas artes e especialmente na poesia, são muito bem-vindas para nosso equilíbrio psíquico. Os poetas nos falam, nos levam ao encontro de nossas mais recônditas experiências. John Keats, no frescor de seus 20 anos, escreveu a “Ode à melancolia”, que usarei como meu guia nesse percurso do amor à melancolia, desenhando e apresentando ao leitor, de maneira viva, o que seria o mergulho em um estado melancólico.

A psicanálise, muitas vezes considerada como arte, também se apoia no uso que podemos fazer dessa forma de entrar em contato com - e comunicar - o que se passa na nossa realidade interna, no seu eterno diálogo com a realidade externa. Acompanhar e participar de certo modo do sonhar que nossos pacientes nos contam ou com eles criar uma maneira de “sonhar” estando acordado é nosso mister, uma vez que, com isso, pomos em evidência essa forma de pensar a experiência emocional. Assim, abre-se a comunicação, seja com a alteridade externa, seja com nós mesmos (quando podemos nos considerar uma alteridade para nós).

Melancolia desde sempre

No, no, go not to Lethe, neither twist

Wolf’s-bane, tight-rooted, for its poisonous wine;

Nor suffer thy pale forehead to be kiss’d

By nightshade, ruby grape of Proserpine;

Make not your rosary of yew-berries,

Nor let the beetle, nor the death-moth be

Your mournful Psyche, nor the downy owl

A partner in your sorrow’s mysteries;

For shade to shade will come too drowsily, And drown the wakeful anguish of the soul.

Não, não vás ao Lete, nem retorças as raízes

Em feixes do acônito para forjar o vinho venenoso;

Nem deixes tua pálida fronte ser beijada

Pela beladona, uva rubi de Prosérpina;

Não faças teu rosário com as bagas dos teixos,

Nem deixes o besouro, ou a mariposa da morte

Ser tua lúgubre Psique, nem a coruja de penas macias

Ser parceira dos mistérios da tua dor;

Sombra a sombra letárgica virá, E afogará a angústia desperta da alma.

JOHN KEATS, “Ode à melancolia”

Recebo uma ligação telefônica de uma paciente que já atendo há alguns meses. Ela me diz estar muito mal. Logo depois, vem até mim em um estado de confusão. Chega lentamente e diz que está se estranhando, que tudo está fora de lugar, que está perdida…

PACIENTE: Liguei para você no domingo, para a psiquiatra ontem. Já tentei de tudo e parece que eu estou só afundando…

ANALISTA: Como afundando?

PACIENTE: Eu estou perdida, desesperançada. Não estou conseguindo me envolver com nada. Faço as minhas coisas, mas sem sentir…

Foi tomando conta de mim um sentimento de urgência e desespero; um desejo imperativo de agarrá-la para não perdê-la, não perder o contato pessoal e emocional com ela.

O estado de minha paciente progride apesar do esforço de todos à sua volta, e um dia ela me diz que quer dormir para sempre. Pergunto se quer morrer, ao que me responde que não havia pensado nisso. Eu me senti um tanto deslocada da realidade, que de tão angustiante não poderia ser pensada por mim. Ela já estava morta em vida e, portanto, não caberia pensar em morrer.

Hoje, a voz do poeta vem ao meu encalço, esclarecendo-me e ajudando-me a expressar o que vivi naquele período. Em seu lamento marcado pela negativa, pela morte que seria desejável que não acontecesse ou não houvesse acontecido, anuncia-nos a ausência do outro, da alteridade. Não há alguém que responda, pois se trata de se dirigir a algo “morto”. Aqui cabe pensar se esse outro seria uma alteridade do mundo externo ou a própria alteridade do poeta em sua relação consigo mesmo.

A primeira estrofe de “Ode à melancolia” apresenta uma abundância de símbolos da morte na tradição grega e nos leva pelo caminho de uma recomendação para que a morte não ocorra, ou de um chamado ao que é morto, chamado que é também prece, visto que nos oferece a imagem de um rosário que, embora feito com amoras venenosas, implica a busca da fé, da esperança. Essa imagem parece nos remeter a um paradoxo: como pode algo venenoso levar à salvação? Ocorre-me que também nos fala do lugar da ambiguidade, onde a possibilidade de morte se encontra lado a lado com a possibilidade de algo novo, vivo.

A poesia, com seus recursos de linguagem, consegue expressar essa condição de não sabermos com quem o poeta fala. Do mesmo modo, eu pensava com quem estava falando na sala de análise. Quem estava lá, perdida, morta de alguma forma para o mundo relacional? Qual é a linguagem possível para atingir, afetar um “morto”? Assim como o poeta fala da morte de um outro e talvez de si mesmo, teríamos nós, para sermos efetivos, que falar ao morto como falaríamos ao nosso “morto” - tratar o morto fora e dentro de nós como uma alteridade, para que paradoxalmente o que está morto possa viver, já que, visto e tratado sintônica e empaticamente como um outro, aclararia uma situação que só pode acontecer se houver vida anímica?

O uso extenso e contínuo que o poeta faz da prosopopeia chama a atenção, porque parece ser uma maneira de falar que atinge o que é paradoxal - dá vida de caráter humano ao inanimado, ao deificado, ao que está ausente. Seria essa uma linguagem possível ou a melhor linguagem possível com minha paciente naquele momento?

Além disso, o poeta recomenda a evitação de um tipo de escape narcótico que obnubila a consciência na busca de uma forma de se esquivar da angústia. Essa obnubilação, entretanto, acaba por levar a um estado em que o desespero e a desesperança tornam-se dramaticamente saboreados.

Teria minha paciente entrado no Lete? Essa palavra grega significa “esquecimento” e se opõe a alethea, à verdade. Nesse seu movimento de fuga da realidade psíquica, entra num estado de impotência que é comunicado e captado por todos que a cercam de perto - sua família e os profissionais. Mais do que impotência, entra num estado em que uma dissociação radical a faz sentir-se morta na alma, apesar de um corpo que respira e pulsa. Não sente mais nada; sua alma está morta.

Parecia-me que repetíamos uma situação de decepção com um outro em quem precisava e queria confiar, mas que em sua incompetência falhou, deixou-a perdida. Nesse estado de desconexão, perde-se, não sabe mais nada de si e não sente mais nada. Esse estado se instalou após ter sugerido a ela que procurasse um psiquiatra, pois poderia se beneficiar de uma medicação. Era um movimento arriscado, porque ela já tinha sido medicada anteriormente, o que havia lhe causado intensa decepção na relação com o marido, que não “aguentara” a sua dor, a sua irritabilidade, a sua “suposta loucura” e pedira a um psiquiatra que a medicasse. Ficou “dopada” por um dia e sentiu-se uma doente, uma incapaz mentalmente. Eu, entretanto, naquele momento, percebendo não haver condições de continência para o grau de irritabilidade e de agressividade que ela experimentava, me lancei nesse arriscado caminho. Dois dias depois de iniciar uma medicação antidepressiva, minha paciente entrou nesse estado de desconexão de si mesma, estado que durou cerca de três meses.

No mundo das ambiguidades

But when the melancholy fit shall fall

Sudden from heaven like a weeping cloud,

That fosters the droop-headed flowers all,

And hides the green hill in an April shroud;

Then glut thy sorrow on a morning rose,

Or on the rainbow of the salt sand-wave,

Or on the wealth of globed peonies;

Or if thy mistress some rich anger shows,

Emprison her soft hand, and let her rave, And feed deep, deep upon her peerless eyes.

Mas quando o ataque da melancolia cair

Súbito do céu qual nuvem em pranto,

Que revigora as flores cabisbaixas,

E vela a verde colina na mortalha de Abril;

Farta então a dor na rosa da manhã,

Ou no arco-íris da onda salgada na areia,

Ou na abundância das peônias globulares;

Ou se tua amada demonstrar ira intensa,

Ata-lhe a mão suave, e a deixa delirar,

E nutre-te fundo, fundo nos seus olhos ímpares.

JOHN KEATS, “Ode à melancolia”

A segunda estrofe é aberta pelo aparecimento repentino, inexorável e suave do estado melancólico. Freud e Keats usam a mesma imagem de algo que cai e cobre o ser - “A sombra do objeto cai sobre o eu” (Freud, 1917/2013, p. 61) e “[Cai] súbito do céu qual nuvem em pranto, que revigora as flores cabisbaixas” (Keats, 2001, p. 423), de forma a cobri-las todas. Abre-se, assim, um campo da experiência onde as coisas são e não são ao mesmo tempo, numa tentativa última de sobreviver à preponderância da falta/ausência, levando a uma solução paradoxal - pagar pela vida do ausente com a própria vida. É um acordo semelhante àquele em que “se vende a alma para o diabo”: buscar vida significativa por meio da morte do significado, vitalidade por meio da desvitalização - e indo ao extremo, encontrar a coisa em si, destituída agora de qualquer sentido.

Esses versos lançam luz sobre o fato de que, quando a melancolia cai sobre o sujeito, ela passa a alimentar e iluminar tudo o que foi até então vivo e belo com seu colorido sombrio. Essa seria uma situação que acontece de maneira abrupta, como desenlace da instalação de um estado melancólico, estado em que a consciência está obnubilada e as ambiguidades preponderam, deixando o sujeito perdido, sem referências, em condição de morte psíquica. Ocorre, então, um tipo de inversão entre o que é vivo e o que é morto, além de, nesse campo, o eu e o outro, sua contraparte, não se distinguirem, visto que esse eu ainda não está unificado e a identidade não se estabeleceu. É o campo do eu-outro vivido como uma unidade.

Recebi essa paciente alguns meses antes como uma moça angustiada, cuja vida “interrompeu” o curso que vinha tomando com a doença e morte do pai. Este era uma figura idealizada, por quem nutria muitos sentimentos ternos, além da ideia de que ele é que a salvaria do mundo negativado e tumultuado que experimentava na relação com a mãe. Ele, na sua competência profissional e na capacidade de se excluir das angústias do mundo ao se proteger em atividades intelectuais, em isolamento, parecia ser sua tábua de salvação.

Sua identificação com ele era evidente - a aparência física, a atividade profissional, o lugar na família -, sendo o pai sua fonte de inspiração. Mas isso parecia não ter sido o bastante: quis ser sua fonte de vida, quis ser ele, substituindo-o nas suas funções, nas relações, e até mesmo, principalmente, na sua ausência.

A ambiguidade transpassa todo o poema, pondo-nos em contato com o fio da navalha. A parte que melhor a representa pode ser entendida como a sugestão de que o estado melancólico possa se associar às coisas belas da natureza, aliviando o sofrimento, ou pode também significar que ele possa consumir de forma intensa essas mesmas benesses, invertendo-as, tornando o que é vivo em morto. Tudo dependerá de como leremos ou que uso faremos do verso “Then glut thy sorrow on…” (Bloom, 2007).

As ambiguidades expressas no estar melancólico nos aproximam da ideia do sublime, misto de beleza, dor e terror, através da ideia do inatingível, grandioso e infinito. Entramos, assim, em contato com a falta, com a ausência, naquilo que ela tem de mais originário e constitutivo. Caímos no campo do inconsciente originário.

Como Alice no país das maravilhas, podemos nos sentir ansiosos, buscando apressadamente um tempo que não se encontra. Todos os dias são iguais, igualmente desaniversários, além de o espaço também não se mostrar delimitado, uma vez que ele pode nos levar a inúmeros caminhos desconhecidos e talvez à terra de ninguém ou do nunca. Não se esgotam as referências a esse estado de mente.

No segundo mês desse estado desconectado, ela me diz:

“Eu me sinto uma criminosa, por isso fico na prisão.”

Faço alguma pergunta (criminosa, como assim?) que provoca um silêncio, e então ela diz que não se lembra do pai. Não tem sentimentos ternos como aqueles que temos para com os que partem…

“Eu me sinto um bicho. Sou um nada.”

Podemos então pensar que, nessa matriz protomental em que a confusão prepondera, ela se encontra aprisionada na ambiguidade, onde só existe vida estando morto.

O altar do prazer do e no nada

She dwells with Beauty - Beauty that must die;

And Joy, whose hand is ever at his lips

Bidding adieu; and aching Pleasure nigh, Turning to poison while the bee-mouth sips:

Ay, in the very temple of Delight

Veil’d Melancholy has her sovran shrine,

Though seen of none save him whose strenuous tongue

Can burst Joy’s grape against his palate fine;

His soul shalt taste the sadness of her might,

And be among her cloudy trophies hung.

Vive com a Beleza - com a Beleza que deve morrer;

Com a Alegria de mãos aos lábios sempre erguida

Dizendo adeus; e junto ao dolorido Prazer, Tornado veneno enquanto a boca aspira:

Sim, no próprio templo da Delícia

Velada, a Melancolia tem seu soberano santuário,

Jamais visto a não ser por quem a árdua língua

Arrebenta a uva da Alegria contra o céu da boca;

Sua alma provará a tristeza da sua força, E entre seus troféus de neblina ficará erguida.

JOHN KEATS, “Ode à melancolia”

Se na primeira estrofe a prosopopeia exige uma resposta do morto sem sucesso, há um sujeito que vê o efeito da melancolia, o seu instalar através do nublamento da consciência. Na segunda estrofe, esse estado de mente se instala e o sujeito se confunde com ele, perde suas referências, a ponto de perder seus significados. Por fim, na terceira estrofe, o sujeito é completamente expulso de si mesmo, e reina apenas a melancolia, do seu altar (Pereira, 2020).

Em algum momento no começo do poema, houve a sugestão de que, a partir da imagem do rosário, o estado melancólico, com seu presságio de morte, ao cair sobre o que é vivo (mortalha de Abril), poderia proteger os campos verdes e nutrir as flores necessitadas, e que desse estado seria possível chegar tanto à criatividade como à extrema tristeza, com destruição dos sentidos - tanto à vida como à morte. O desenlace da terceira estrofe nos leva à instalação completa do estado melancólico, com todo o seu potencial desvitalizador.

Agora, estamos em contato com o “morto” que se alimenta da alegria e da beleza ao idealizá-las e invertê-las. Ainda mais do que isso, parece instalar-se um estado de mente que se alimenta prazerosamente de uma gratificação libidinal ao se encontrar na dor, nas ruínas de um self. Podemos pensar que o sujeito fica então dominado e escravizado por esse deleite (Joseph, 1991).

O poema de Keats me capturou num momento de busca de uma forma de significar aquilo que eu não conseguia significar, uma ancoragem para experimentar com minha paciente essa descida ao Hades, ela cindida e eu ancorada em mim mesma, mas sempre através da cultura.

A “Ode à melancolia” me trouxe um tipo de confirmação de que somente através da metonímia de diferentes metáforas podemos, de algum modo, nos aproximar da ideia daquilo que não pode ser nominado, algo relativo à experiência da morte, do infinito. Assim, a imagem do rosário como uma sequência de orações estrutura o poema.

Discussão ou o caminho

Chamou-me a atenção um evento que aconteceu duas vezes em um pequeno espaço de tempo e que acabou me levando a escrever este texto. “Caiu-me” nas mãos a “Ode à melancolia” de Keats. Não consigo retraçar o trajeto de sua “queda”, mas posso dizer que, ao cair, eu a peguei, e com certa sofreguidão a dissequei, a incorporei e gestei o que dessa experiência pudesse sair. Ao mesmo tempo, fiz uma viagem a Istambul, lugar que se mostrou único para mim. Um amigo sugeriu a leitura de um livro de Orhan Pamuk chamado Istambul, sobre a história da cidade tecida conjuntamente com as memórias do autor, que diz nunca ter querido deixar sua cidade, enaltecida e admirada atualmente por seu passado glorioso e pelo que dele restou. Um lugar onde se respira o esplendor das ruínas. Pamuk sustenta a ideia de que Istambul é uma cidade melancólica, e novamente eu me debruço com prazer nessa viagem.

O que nos leva a captar que determinadas situações/realidades podem nos ser úteis, ou melhor, o que nos leva a deixar-nos ser capturados por elas? Essa questão deve transitar no mesmo espaço daquelas que podem ser formuladas assim: que tipo de comunicação interna, ou que tipo de comunicação entre o interno e o externo, permite que tal “captura” se dê? Qual é a função e que uso podemos fazer dessa situação?

Parto aqui da “teoria” ou premissa de que essa captura acontece em função de um “chamado” inconsciente, que ao encontrar seu objeto leva a uma realização. Poderíamos dizer que uma preconcepção levou a uma concepção (Sandler, 2005). Assim, algo se deu, algo nasceu, e um lampejo de um possível/ desejado conhecimento apareceu em mim.

Em 1817, numa carta aos seus irmãos George e Tom, John Keats descreve claramente as etapas que devemos percorrer para entrar em contato com algo que está em nossa mente, mas que de algum modo não está acessível à nossa consciência - mais do que isso, algo que tem uma intensa carga afetiva. No dizer de Keats, capacidade negativa seria “quando um homem é capaz de ser entre incertezas, mistérios e dúvidas, sem qualquer irritação que o faça sair em busca dos fatos e da razão” (Scott, 2005, p. 60). Continua a carta sugerindo que alguns poetas podem se satisfazer com esse estado, o que estaria ligado à prioridade da experiência da beleza, enquanto outros não prescindiriam da busca por um tipo de resposta, o que abortaria a “viagem” nesse desconhecido.

Certamente, a beleza da “Ode à melancolia” e de Istambul me pôs em contato com algo desconhecido, ambíguo, que produziu, entre outros sentimentos, incerteza e dúvida sobre para onde eu iria a partir desse contato emocional. Fui parar na minha paciente tomada pela intensa experiência emocional de “perdição” que com ela adentrei. Perdição como estar perdida, confusa, atônita, surpreendida, e perdição como captura num “lugar” estranho, que se apresentava em nossa relação, mas que apontava para uma experiência comum, embora diferente, na individualidade de cada uma. Quanta ambiguidade e estranheza!

Meu interesse pelo poema me levou a um “entroncamento” da experiência emocional por ele suscitada e aquela vivida com minha paciente. Sigo agora o caminho que me conduziu até ele.

Sobre a intuição e a inspiração

A mente humana tem uma função anímica, que dá vida ao inanimado. O que seria a memória, do ponto de vista da biologia, senão um registro concreto, morto, desvitalizado, quando olhado do ponto de vista da vida emocional? Como uma pedra-carta,3 fica em busca de um afeto vivido no real do presente para então ganhar vida.

Assim como a pedra-carta, a memória por si só é pesada, pois nos comunica que algo já não é mais, já que foi e agora jaz em seu seio. Ela, entretanto, esse morto, é imprescindível à vida e pode ganhar vida, passar a existir fora de seu leito fixo, inflando-se novamente pelo afeto que a eleva, a faz voar e vir pousar no presente. Seria um tipo de ressurreição seguido de uma reencarnação? Ou um fantasma? Uma transmutação?

A tradição grega nos fala das Musas, que inspiram os poetas e também as profecias. Filhas de Zeus com Mnemosine, inspiradoras da música, permitiam ainda que o ritmo da palavra cantada, a poesia, expressasse algo “perdido” na memória. Perdido no sentido de não mais ser, mas também no sentido de, ao não ser, não encontrar nenhuma forma de trazer o não ser à existência presente, pois mesmo não sendo está lá. Mais do que isso: somos constituídos por “não seres”, por memórias que acabam por constituir o âmago do nosso ser, o nosso inconsciente pessoal.

O ritmo, o afeto, quando ligado a uma memória “bruta”, parece dar-lhe vida através da palavra cantada, a poesia, ou da palavra profética. Há algo de mágico na palavra cantada que une o passado, o presente e o futuro. A palavra cantada, expressão das Musas, surge num momento anterior à escrita, para dar ao ser humano notícias daquilo que não se pode falar ou conhecer, algo da ordem do sagrado, seja ele nefando ou inefável (Torrano, 2009). Em Hesíodo, seria a própria criação do mundo; aqui em nossos dias e em nosso trabalho, seriam as marcas originárias do ser de cada um de nós, o nosso mundo particular, o sagrado de cada um. Remete-se ao que não deve ou não pode ser dito, já que sagrado, originário, traz em si a marca de um conhecimento impossível à razão e assim se expressa de forma aberta, deixando os sentidos serem espreitados, entrevistos, intuídos, porém jamais aprisionados na linguagem factual ou conceitual, abstrata. É dito, mas com palavras cantadas que o vento leva, que nos escapam, mas que conseguimos seguir à distância, como as “palavras aladas” dos versos de Homero. Ganham vida anímica no presente, vindas de um passado que é, portanto, de uma marca do não ser, e podem ainda gerar um campo de abertura para o futuro, visto que, ao serem constitutivas, também dão notícias do que virá.

Assim, aquilo que está morto, fixado, o ponto de origem, pode ganhar vida e abrir uma perspectiva de criação. As Musas também presidem as artes e as ciências, referência a um estado mental que, em contato próximo com o originário, e portanto “morto”, se faz presentificar no ato criativo.

Sobre o encontro, o objeto estético

O objeto estético seria aquele que nos leva a adentrar o mundo do originário, fonte de vida, mas também fonte de destruição. Leva-nos a encontrar o belo ou o sublime, o esplendor ou o estranho.

Esse passo parece-me ser o inicial, essencial para haver a possibilidade de povoar novamente uma mente em que as ligações entre os sentimentos e seus significados foram cortadas, erradicadas, deixando a terra-mãe estéril e árida. Dela nada brota.

Há então necessidade de que uma comunicação interna aconteça para dar vida à memória. Fiquei me perguntando, em relação à minha

PACIENTE: para onde foi o afeto? Como ele pôde desaparecer, deixando assim em estado inanimado sua contraparte corporal?

O afeto dissociado de uma experiência pode transformá-la em algo bruto, petrificado e inerte; as ligações que geram a comunicação interna se rompem. Como no quadro Paisagem com lanternas, de Paul Delvaux, a bela dama sem face, já que esta não nos é mostrada, fita um enterro que se dá na profundidade da tela. Os fios elétricos que ligam as luminárias, as quais poderiam iluminar o interior, estão cortados. Essa imagem despertou em mim uma vontade de chamá-la, chamar-lhe a atenção, fazê-la se virar e olhar para o mundo além de si mesma, para fora.

Paul Delvaux, Paisagem com lanternas, 1958, óleo sobre unalit, 122 x 158 cm. Museu Albertina, Viena, Áustria.

A memória em seu estado inerte, inanimado, não pode alçar à consciência, onde poderia ganhar vida, sendo útil ao pensamento. Parte do sujeito fica morta para ele mesmo, mas não é enterrada. Encontra-se a caminho de, paralisada, fixada, rumo à aceitação de sua existência na memória. Algo fica a meio caminho de se instalar na memória de forma íntegra e aceitar a ausência, a sua não existência na dimensão do real. Estamos no campo da paralisia, que pode ir tomando conta da vida mental de forma gradativa, de modo que o sujeito vai se apequenando, se distanciando de si, ao mesmo tempo que, num movimento desesperado de impedir a desconexão que se instala, fixa-se cada vez mais na cena de seu enterro. Constituem-se, assim, aspectos mortos-vivos.

O objeto estético nos chama para a construção de uma comunicação interna, estimulada pelo externo, mas com foco em nós mesmos, ao despertar o contato com a verdade originária, sensual, sem os disfarces que os processos psíquicos posteriores nos levam a usar. A partir desse contato com o originário, exercemos nossa capacidade de nos relacionar com o outro e realizar nossos desejos. Inicialmente, precisamos ser, desenvolver um senso próprio de existência, para depois podermos desejar (Williams, 2018).

Aqui importa a capacidade de manter uma comunicação e não se deixar levar ou iludir pela negação ou pela descarga em ato, que teriam o efeito de “cortá-la”. Esse corte na comunicação interna seria uma forma de repetir o “corte”, a separação ou a ausência de maneira por demais indiscriminada, matando no ninho a possibilidade de construção de um sentido para a experiência da falta (Williams, 2018).

Nossa função está em restabelecer essa comunicação, retecer a trama sensual, com seu ritmo e forma explicitados pelo que vemos, ouvimos ou ainda sentimos pelo tato ou, ao fecharmos os olhos, pelo que emerge em nós de maneira inesperada e impensada.

Sobre a poiesis na sala de análise

Quando a conversa flui, num levar-se pelo interesse mútuo, na presença do corpo, mas na busca inesgotável da alma, num movimento em ambos os sentidos, algo significativo está se dando.

Quando a conversa acontece em seu ritmo próprio a quatro mãos, somos inflados de ânimo, interesse, o que aprendi se referir a algo que ocorre entre seres, seres com vida anímica.

Tecendo palavras ao mesmo tempo com um fio que brilha até no escuro, ou talvez principalmente no escuro, desafiamos todas as nossas conquistas científicas. Há, assim, a tessitura da mortalha de Laerte, rede fina que sustenta a alma e pede repouso após seu trabalho incansável. A porção da alma que já viveu, que já foi, pede paz e tranquilidade, em um repouso merecido após o incansável trabalho de viver.

Passou o momento, estamos no reino do não existir mais. O tempo faz seu trabalho, pede outra ação. Contraditoriamente, precisamos de um tempo, aquele do não mais existir, para existir em outro canto, deixando espaço para um ainda por vir a existir. Ambíguo, confuso, às vezes esse tempo tece o acolhimento do ontem, para que pacificado permita ao hoje vir à tona, à luz do dia; tranquilidade, para que o amanhã espere seu próprio tempo de existir, para que não ofusque o hoje que preme por vir à luz.

Torna-se, então, a mais vital poção, que guardada em frascos transparentes da memória exala seu olor e brilho, pronta a ser fisgada.

Assim, o fluir da conversa na sala de análise, nossa câmara nupcial, nosso pequeno jardim, fonte de criação construída a quatro mãos, promove o clima que permite brotar um botão, pequeno, mas promissor. Ele invade a mente de um dos dois, pedindo para ser transformado, pedindo para soltar-se. E como um pássaro preso numa gaiola, preso que estava sem poder, ganha vida para o fora, ressurge, transforma-se como uma fênix e voa como palavras aladas, ganhando vida e abrindo-se para o espaço, para serem usadas de formas infinitas.

São essas as palavras que dizemos despretensiosamente, visto que a mente crítica lança nelas uma luz que as esconde. São esses os brotos, os lampejos de ser que precisam brotar. Fazem parte do nosso labor diário. Podem vir na forma do que denominamos livre associação ou, melhor, surgir na forma de uma nota dissonante, chamando a atenção como o punctum das fotografias de Barthes (1980/2015) ou o brinco de pérola da tela de Vermeer.

São pequenas pedras preciosas, que vão nos adornar, como a nos proteger com seu brilho do contato direto com a vida pulsante; vão vir na frente, como um batedor nos protegendo dos perigos das jornadas. Podem, assim, até mesmo ganhar vida eterna em nós.

Na maior parte das vezes, somos nós, os analistas, a tecer, mas nem sempre… Nossos pacientes, talvez de forma mais discreta, também tecem. Essa é uma atividade conjunta.

O grande desafio é quando a contraparte, a mente do outro, está “morta”, com sua face a se recusar a nos olhar, como na tela de Delvaux, entretida e muitas vezes, mais do que isso, fixada e embalada na dor da ausência, daí tirando sua razão de ser (Joseph, 1991). Nessa situação, ficamos paralisados, às vezes amortecidos ou sonolentos, aquele sono mortífero que tudo mata. Nada acontece, e somos fisgados para esse cenário de repetição, que como um vício só traz mais morte.

Essa forma de estar e se comunicar se aproxima da maneira como um poema se constitui, guardando semelhança também com o que se refere à sua formação e função. Esse modo de funcionar pode se expressar numa sessão por meio de uma palavra, uma frase, uma letra de música. É um estado mental que se liga e expressa algo mais integral, um aspecto conciso e vivo do todo.

A poesia nos põe em contato com o que somos, e não com o significado que os fatos ou pensamentos podem ter. Ao lermos ou ouvirmos uma poesia, ela nos toca em nossa essência, em algo originário do ser de cada um, deixando entrever no poema algo que igualmente logo nos escapa, não podendo ser reduzido a um único sentido ou a um único momento ou experiência. “A experiência se dá como um nomear aquilo que, até ser nomeado, carece propriamente de existência” (Paz, 1956/2012, p. 164).

Festas e férias, um período atual

Como na poesia de Keats, o primeiro movimento ao me encontrar com a minha paciente é o de exortá-la a não se deixar levar, não se desprender do mundo que a cerca. Chamá-la para se virar, olhar para fora e fazer contato.

Estamos às portas das festas de fim de ano, e minha paciente está se desligando e com medo de novamente romper com o mundo externo e emudecer para ele. Minha programação pessoal inclui três semanas de recesso. Durante a última sessão antes das férias, sinto-me premida a oferecer-lhe para manter suas sessões nesse período. Não há propriamente um pensamento meu que elaborasse essa pressão interna, e diante dela cedo e ofereço a manutenção de nossa ligação, o que ela aceita.

Esse é o estado de mente descrito na segunda estrofe de “Ode à melancolia”, onde se instala o vício da quase morte, com um prazer crescente, insensato e mórbido, tornando este a razão de existir, já que passa a ser a presença viva e pulsante da falta.

Não demora muito, percebo que o meu movimento de resgate, além de ser em vão, pode servir para alimentar esse vício da quase morte, uma vez que as palavras nesse campo podem estar a serviço da repetição e, desse modo, ser mais um ato de escape da experiência do que permitir que haja contato real com aquilo que está quase morto, desconectado.

A terceira estrofe do poema parece dar alguma pista sobre o caminho a seguir. Faz isso de maneira espelhada, visto que o próprio sujeito encontra em si mesmo o espectro da experiência estética, alçando-se a um regozijo frente à beleza, num encontro com a alegria. Encontro mortífero, pois espectral, que não alimenta a alma, mas ao contrário a envenena.

Mas a pista parece ter sido dada: busca de um encontro estético, prenhe de experiência emocional compartilhada, farta em sua ambiguidade e excludente de racionalidade.

Quarta-feira, uma sessão

Após um longo período de discurso negativado, cheio de impossibilidades, árido e até certo ponto movido apenas por um sentimento colado à ideia de impotência, penso em ler para ela um pequeno poema que havia recebido em função da passagem do ano. A imagem da esperança, seja como uma louca desvairada que se atira do 12º andar do ano-velho, um prédio, no último dia do ano, e se põe no meio da rua, seja como uma menininha de olhos verdes que se encontra nesse mesmo local da rua, pareceu-me poderosa. Assim, li para ela o pequeno poema, que emocionou a nós duas. Ela olha para mim e diz: “Acho que vai passar. Às vezes, acho que nunca vai melhorar, que não tenho mais remédio, mas acho que vai passar. Sinto-me como uma criança perdida, precisando de colo e muito sozinha”.

1Trabalho apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e comentado por José Garcez Ghirardi, doutor em literatura inglesa, e pela psicanalista, membro efetivo da SBPSP, Vera Regina Fonseca Montagna.

3“Muito antigamente, antes de os humanos inventarem a escrita, eles buscavam uma pedra que representasse seus sentimentos e a davam a outra pessoa. Quem recebia a pedra percebia o que o outro sentia, pelo peso e pela textura. Por exemplo, a textura lisa significava uma índole pacífica, e a rugosa, uma preocupação com os outros” - fala do protagonista do filme A partida (Takita, 2008, 1:47:12).

Referências

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Recebido: 18 de Maio de 2023; Aceito: 01 de Setembro de 2023

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